Resumo: Pouco a pouco, os textos cedem lugar às fotos. Olha-se cada vez mais. Lê-se cada vez menos. De quebra, uma igreja bonitinha.

Uma igreja bonitinha

Era uma vez uma igreja. Uma igreja bonitinha, naturalmente.

À porta estava escrito  em letras invisíveis: Entrada Proibida.

Se me perguntarem por que “naturalmente”, eu respondo: porque isto pretende ser uma fábula, e nas fábulas, ainda que pretensas,  uma igreja bonitinha  é a coisa mais natural do mundo.

Se me pedirem explicações do tipo vem cá, as letras não podem ser invisíveis, pois, se o fossem,  como ler ‘Entrada Proibida’?,   eu respondo:  quem falou em ‘ler’? Eu disse apenas que à porta  estava escrito ‘Entrada Proibida’. Nem passou pela minha cabeça que alguém se ocupasse em ler o aviso. Não sou ingênuo, sei muito bem que ler é hoje uma atividade prescindível. Assim sendo,  se  ler  é prescindível,  as letras podem ser invisíveis e ninguém vai notar a defecção.

Caso se insista na arguição, alegando o surgimento de alguém  interessado, eu respondo: interessado em quê?

Se me replicarem que o interesse incide sobre o geral das considerações, eu respondo: cite pelo menos  uma particularidade. Conduzirei melhor o pensamento se conhecer o que mais  interessa.

Se me informarem que interessa conhecer mais de perto essa igreja que proíbe a entrada de fiéis, com inteira  pertinência eu pergunto: por que?

Se me disserem:   porque não é lógico, e o absurdo bloqueia a compreensão,   eu respondo: obrigado por levar a sério a minha fábula. Mas é preciso entender que o absurdo, se bem tratado, pode encaminhar verdades  inimagináveis.

Se me cobrarem fundamentação,  eu respondo: convém  não esquecer que a verdade habita entre os nossos pensamentos, ou seja, entre as representações que fazemos da realidade. Melhor ainda, habita  entre as ligações e associações dos nossos pensamentos e representações.  

Se me pedirem para trocar em miúdo essa teoria,  eu respondo:   sem afastar um pé desta capsula    mostrarei como   a verdade surge da associação de pensamentos e representações, ainda que absurdos.  Acompanhem. Num primeiro estágio  surgiu a representação abstrusa de uma igreja inacessível a fiéis,  e  um aviso absurdo escrito com letras invisíveis. Na sequência, bastou aduzir a hipótese de uma interpelação - vem cá, as letras não podem ser invisíveis, pois, se o fossem,  como ler ‘Entrada Proibida’? -  para deflagrar  o conhecimento  da primeira grande verdade produzida nesta associação de pensamentos, a qual verdade, uma vez liberada, expande-se   nestes termos: pouco a pouco, os textos cedem lugar às fotos. Olha-se cada vez mais. Lê-se cada vez menos.

Se me apertarem contra a parede e exigirem de mim a segunda verdade, eu repondo:   assim como o absurdo das letras invisíveis levou ao conhecimento da primeira verdade, o absurdo de proibir a entrada de fiéis na igreja bonitinha leva à segunda que, neste contexto, admite mais de uma tradução. Primeira tradução: do jeito que as coisas andam é melhor ficar em casa, aliás, em conformidade com o que aconselha o Doce Rabino da Galileia, em Mateus 6;5 : quando orardes, ide para o vosso quarto, e fechai a porta, e orai ao Pai em segredo; e o vosso Pai, que vê em segredo, vos recompensará.

Ora, se não vou sair de casa, pouco se me dá que me proíbam de entrar seja lá onde for.

Segunda tradução: é preciso rever urgentemente o papel decisivo das igrejas na obra de reconstrução do mundo. Separar o joio do trigo e parar de brincar com coisa séria.

Por fim, se quiserem me censurar, alegando que generalizo, que ataco injustamente todas as igrejas, eu respondo: de jeito nenhum.

E mesmo que atacasse  não haveria o menor perigo. Afinal, a primeira verdade - a verdade da leitura prescindível - dá ampla segurança aos eventuais incomodados com a segunda.