Há muitas “pontes” entre o mundo de Machado de Assis e o nosso.

(Hélio de Seixas Guimarães) 

A crônica que trata este estudo pertenceu à seção Bons dias! da Gazeta de Notícias ente 1888 e 1889 em que Machado de Assis era responsável. Todas as suas colaborações para este jornal abriam-se saudando os leitores, como naquele tempo se saudava um conhecido na rua com “Bons dias!”. E com tal simulação de diálogo com o anônimo leitor, sujeito que era necessário seduzir, Machado de Assis encerrava a crônica sempre com a expressão oposta: “Boas Noites!”

O texto em questão, foi publicado em 19 de maio de 1988[1], seis dias depois da assinatura da Lei Áurea conforme nos diz a História brasileira, Lei pela qual foi declarada extinta a escravidão no Brasil.

Uma breve síntese do enredo elucidará melhor a análise que se pretende.  O texto é narrado em primeira pessoa e conta, claro que de forma ambígua e irônica, um fato que poderia representar o gesto de um cidadão exemplar naquela época: a libertação de um escravo.

Conta o narrador que já previra toda a história da libertação dos escravos, visto que “Eu pertenço a uma família de profetas apès coup, post factum, depois do gato mortoe que por isso mesmo, “na segunda- feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.”[2]

Assim, reúne em sua residência para um jantar, umas cinco pessoas, entretanto “as notícias dissessem trinta e três ( anos de Cristo)”.

Neste jantar ou banquete, o narrador  vaidosamente, por duas vezes, parece sugerir alguma semelhança de suas ações com as de Jesus Cristo, visto que se levanta da cadeira com uma taça de champanha declarando que assim como as idéias pregadas por Cristo, restitui a liberdade a seu escravo Pancrácio. Em suas palavras, ele afirma que a Nação devia seguir o exemplo dele, de um cidadão exemplar. Nestas circunstancias, o humilde escravo entra abruptamente e abraça seus pés. Diante da cena, um dos amigos, possivelmente sobrinho do narrador, brinda o notório e primeiro ato de abolição. O narrador confessa modéstia, mas se envaidece com os cartões que o parabenizam, e  imagina-se já estampado em uma tela a óleo.

Posteriormente, o narrador conta que depois de concedida a “liberdade” a Pancrácio, para “ir para onde quiser”, oferece-lhe “casa amiga, já conhecida” além de um ordenado de seis mil-réis que pode crescer e que “No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete “[3] . A partir daí, começa a contar sua vivência com Pancrácio, e parece que o “ex”-escravo quer mesmo “andar bem” para que seu ordenado aumente ou porque só sabe mesmo viver nesta condição, visto que o “bom Pancrácio” aceita tudo. Já no dia seguinte aceita passivamente um peteleco por não escovar bem as botas do “Ex”-dono e daí em diante, o narrador confessa que vive despedido alguns pontapés, “um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo de filho do diabo; cousas todas que ele recebe humildemente, (Deus me perdoe) creio que até alegre”.[4]

Finalmente o narrador declara que seu plano está concluído, já que pretende ser deputado. Para tanto, vai publicar em circulares aos eleitores seu ato de profunda e elevada humanidade para com os negros escravos, fato que, segundo ele, comoveu a todos, além de afirmar, por suposições, que o escravo libertado por ele sabe ler, escrever e contar. Ainda, auto elogia-se afirmando que “os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à Lei, mas os que se antecipam a ela.

Diante desse enredo sugestivo, interessa destacar que a ironia do autor é facilmente percebida. Isto ocorre desde a primeira linha do texto, visto que já o inicia com palavras estrangeiras: uma expressão francesa “apès coup” e outra latina: “post factum”. À primeira vista tais expressões sugerem um público familiarizado com línguas estrangeiras, capaz de compreender a equivalência das expressões. Entretanto, sabe-se que enquanto Machado produzia sua obra, 80% da população brasileira era analfabeta.

 Além disso, as expressões “apès coup” e “post factum” pode acionar uma observação metalingüística sobre o texto, quando quer dizer algo como: “Depois de o fato ter acontecido”. Daí, o pressuposto de o autor aludir ao jornalismo, pois de certa forma, também pertencer a esta família, que se expressa sempre depois dos fatos. “Eu pertenço a uma família de profetas apès coup, post factum, depois do gato morto”.[5]  

Interessa destacar a concepção de Maria Lúcia Dal Farra. Ela entende que o narrador configura-se como uma impostação criada pelo autor a fim de fazer evidente certo interesse peculiar na obra. Segundo ela, “Sabe-se, pois, que tanto os narradores quanto as personagens são performances do autor que se localiza por trás deles, mas que não deixa se surpreender em cena” [6]

A partir das expressões que abrem o texto, o leitor pode começar a desconfiar da seriedade do conteúdo. Com isso, levantar hipóteses de que toda a crônica pode ser entendida mediada por um caráter pungente que propõe uma leitura nada ingênua, através de uma narrativa onde o autor parece estar se divertindo à custa do próprio personagem que narra.

No início do terceiro parágrafo, mais uma expressão estrangeira demonstra a intenção do autor de parecer mais sábio e mais elegante: “coup du milieu” expressão francesa que significa uma taça de bebida que se toma entre dois pratos em um jantar. Entretanto, tal impressão de demonstrar-se culto é imediatamente, como no primeiro momento, desconstruída. Assim, movido por motivação nacionalista declara entre parênteses: “mas eu prefiro falar em minha língua”.

O tempo todo o narrador se comporta de forma muito ambígua. Percebe-se que ele pretende vender uma imagem de si fazendo teatro e colocando-se na condição de um cidadão capaz de se antecipar à Lei. Entretanto, o leitor observa a representação do gesto de justiça através do diálogo assimétrico, visto que, ao longo da conversa, Pancrácio, simbolicamente permanece na posição subalterna. Pancrácio apenas reforça as falas do narrador, isso corrobora para nos mostrar como Machado pode sim, ter sido um profeta político, social e histórico, já que consegue predizer o que ocorreu efetivamente depois da emancipação dos escravos: sem uma política de integração, muitos “Pancrácios” não tiveram escolha, e permaneceram trabalhando para seus “EX?” senhores.

A fixação do símbolo do novo status de homem livre, o salário, demonstra oscilação, visto que de “pequeno ordenado”, passa a seis mil-réis a serem aumentados, caso Pancrácio ande bem, para oito ou sete mil-réis. Diante dessa observação, compreendemos a definição de Dal Farra sobre ponto de vista é ótica. Ela diz que ponto de vista é a visão do narrador, enquanto que a ótica consiste na visão do autor. Dentro desse raciocino afirma; “a ótica pertencente ao autor-implícito é muito mais ampla que o ponto de vista que ele empresta ao narrador.” [7]

 Assim, o ponto de vista do narrador do texto em questão, nos faz perceber como o narrador vê o universo assalariado, e o que nos choca é como tal ponto de vista que reproduz a época de 1888 se adéqua perfeitamente em nossa atualidade pós-moderna. Logo, mais uma vez, mediante a percepção que temos da ótica do autor, dizemos que Machado não é um profeta post factum como o narrador se define de maneira até metalingüística, mas sim, um profundo observador do futuro social.

Neste texto, é possível perceber um engajamento social que naturalmente remetemos mais uma vez à contemporaneidade: a transformação de Pancrácio de escravo em empregado não impede a violência da qual é vítima. Dessa forma, percebemos no texto que qualquer ameaça física que o tamanho de Pancrácio, mais alto que o narrador quatro dedos, represente para seu (ex)-senhor, se dissipa. Aliás, o desenrolar do texto evidencia que a violência ocorre na direção oposta.

Para considerarmos a ótica do autor, uma ótica que chega a ser  privilegiada com um certo tom de profecia, basta que observemos e comparemos a realidade de Machado ou de Pancrácio com a realidade contemporânea. Assim, concluiremos, pois, que em qualquer tempo a dominação é passível de ser maquiada, a liberdade pode ser uma entidade abstrata para muitos e a violência configurar-se como um monstro de várias faces. Daí, poderemos atentar para o convívio social do qual participamos e reconhecermos nele, os diversos Pancrácios que compõem esse mesmo contexto.

Notamos no trecho no qual o narrador afirma agir com violência contra seu (ex)-escravo, “cousas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até com alegria.” [8] um envolvimento sutil e velado entre visão e ótica, segundo a definição de Dal Farra.

 Neste trecho, o autor termina por se expor muito mais que o narrador. Tal fato é percebido quando o narrador menciona peteleco, pontapés, e puxões de orelhas como corretivos aplicados por ele a Pancrácio e, de acordo com seu ponto de vista, por ele aceitos humildemente e até com alegria. Entretanto, já que esse mesmo ponto de vista define tais ações como “impulsos naturais” de forma defensiva, por que o pedido de perdão a Deus?

Vale realçar que este pedido encontra-se entre parênteses, e que no texto, aparecem colocações interessantes com tal recurso em cinco ocasiões:

  1. Quando o narrador revela que o número de pessoas do jantar era a mesma quantidade dos anos de Cristo, colocação que demonstra pretensão de se igualar aos feitos de Cristo;
  2. Quando afirma preferir falar sua própria língua, incoerência com as demonstrações de conhecimento de outros idiomas, uma velada e irônica modéstia;
  3. Quando ironicamente crê que quem levanta brinde para ele próprio é um sobrinho; fato que coloca sob suspeita a cena teatral do jantar;
    1. Quando pede perdão pelos “impulsos naturais” citados como forma de corretivos ao criado; ironia a “liberdade” concedida;
    2. Quando diz que se trata de simples suposições o fato de que seu escravo sabia ler, escrever e contar, confessa que pode estar mentindo, ou melhor, é  o parêntese quem desmente o narrador.

Diante de tal observação, que papel tem o parêntese no texto? Seria a consciência do narrador se justificando ao leitor ou seria o autor se divertindo com a escrita e com a leitura?

Melhor entender que a ótica do autor não se confunde com a visão do narrador, mas que encontra brechas, uma maneira de escapulir e penetrar o texto. Assim, podemos dizer que Machado fala através dos parênteses, de alguma forma ampliando a ironia implacável que não deixa de permear todo o discurso do narrador, mas que não satisfaz o autor, pois ele precisa desconstruir e contradizer tal discurso.

Assim, confirma sua presença implícita tanto na ironia do discurso narrativo, como nas evidentes críticas dos parênteses. Se assim não o fosse qual a coerência entre a visão do narrador e o que expressa nos parênteses? Além disso, cabe ao leitor questionar, por que o narrador faria tais suposições e expressões?

O cinismo do narrador abrange também o mundo intelectual e os professores, visto que uma pessoa como Pancrácio, falante de um português precário para a época, subalterno e subserviente, pudesse, pela simples suposição de saber ler e escrever, vir a ser professor de Filosofia.

Nota-se que a ironia chega ao extremo do cinismo, e já não se limita apenas aos parênteses. No trecho em que o narrador se declara um astuto e estratégico político “o meu plano está feito; quero ser deputado.”, a ótica do autor se apresenta, já que durante todo o texto o discurso do narrador encontrava-se protegido pelo tênue véu da ironia. Neste trecho, pelo contrário, o narrador se liberta de sua máscara de sarcasmo e entrega-se ou abandona o discurso dando oportunidade ao autor implícito dos parênteses, de se manifestar. Assim, por instantes, o autor deixa-se surpreender em cena. É neste ponto que veicula sua opinião sobre os poderes públicos definindo-os como “retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.”

A ótica implícita no texto conota profecia não no sentido místico, mas porque se adéqua perfeitamente a qualquer tempo quando se observa a dialética entre dominante/dominados.

A impressão que temos é que Machado quer retratar o clima político do Brasil da época da abolição. Entretanto, segundo Domício Proença Filho, crítico literário, a obra ficcional de Machado de Assis não se configura como um espelho explícito do Brasil, mas como “fruto do que ele pensa sobre a realidade e não do que ele observa dessa realidade.”[9]. De qualquer forma, não se descarta a possibilidade de a ótica implícita do autor garantir permanência e atualidade dos conteúdos multissignificativos e evidenciar certas características do nosso psiquismo para nos aproximar de outros seres humanos e perceber a equivalência de atos e fatos ao longo ou em qualquer tempo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS:       

ASSIS, Machado. Bons Dias! IN: CENPEC- Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. Revista: Olimpíadas de Língua Portuguesa- Escrevendo o Futuro - Na Ponta do Lápis- ano IV – nº 08, edição especial, fevereiro de 2008.

                                          

CENPEC- Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. Revista: Olimpíadas de Língua Portuguesa- Escrevendo o Futuro - Na Ponta do Lápis- ano IV – nº 08, edição especial, fevereiro de 2008.

 

DAL FARRA, Maria Lúcia. O Narrador ensimesmado, São Paulo: Ática, 1978.

 

FILHO, Domício Proença Filho, IN: CENPEC- Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. Revista: Olimpíadas de Língua Portuguesa - Escrevendo o Futuro - Na Ponta do Lápis - Entrevista: A obra, o escritor e seus leitores. Construtor genial de personagens e situações, ano IV – nº 08, edição especial, fevereiro de 2008.

 



[1] CENPEC- Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. Revista: Olimpíadas de Língua Portuguesa- Escrevendo o Futuro - Na Ponta do Lápis- ano IV – nº 08 edição especial, fevereiro de 2008.

[2] ASSIS, Machado. Bons Dias! IN: CENPEC- Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. Revista: Olimpíadas de Língua Portuguesa- Escrevendo o Futuro - Na Ponta do Lápis- ano IV – nº 08 edição especial, fevereiro de 2008. P. 14, 15.

[3] Op. Cit.

[4] ASSIS, Machado. Bons Dias! IN: CENPEC- Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. Revista: Olimpíadas de Língua Portuguesa- Escrevendo o Futuro - Na Ponta do Lápis- ano IV – nº 08 edição especial, fevereiro de 2008 P. 14, 15.

[5] ASSIS, Machado. Bons Dias! IN: CENPEC- Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. Revista: Olimpíadas de Língua Portuguesa- Escrevendo o Futuro - Na Ponta do Lápis- ano IV – nº 08 edição especial, fevereiro de 2008 P. 14, 15.

[6] DAL FARRA, Maria Lúcia. O Narrador ensimesmado, São Paulo: Ática, 1978, p. 128.

[7] DAL FARRA, Maria Lúcia. O Narrador ensimesmado, São Paulo: Ática, 1978, p. 128.

[8] ASSIS, Machado. Bons Dias! IN: CENPEC- Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. Revista: Olimpíadas de Língua Portuguesa- Escrevendo o Futuro - Na Ponta do Lápis- ano IV – nº 08 edição especial, fevereiro de 2008, P. 14, 15.

 

[9] FILHO, Domício Proença Filho, IN: CENPEC- Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária. Revista: Olimpíadas de Língua Portuguesa- Escrevendo o Futuro - Na Ponta do Lápis-Entrevista: A obra, o escritor e seus leitores. Construtor genial de personagens e situações, ano IV – nº 08 edição especial,  fevereiro de 2008, p. 04.