UMA ESCOLA TEM QUE SER MAIS DO QUE QUADRO-DE-GIZ

Maria Onice Esteves

Resumo:

Muitas são as questões que justificam uma mudança profunda no modo de fazer educação, principalmente em nosso país. Numa sociedade tão heterogênea e tão injusta como a nossa, não podemos ficar de braços cruzados, esperando que algum milagre aconteça, porque os milagres nunca vêm do alto. Este artigo apresenta uma reflexão sobre a escola e o fazer pedagógico em nosso país e convida as pessoas que pensam e fazem educação a uma tomada de atitude. Precisamos reformular, em nós, os objetivos educacionais e, com eles, toda a escola, se quisermos uma sociedade mais justa e humana.

Palavras-chave: Escola. Fazer pedagógico. Identidade cultural.

Há séculos, quando se fala em aprender e em ensinar, o nosso imaginário nos reporta à escola. E, inevitavelmente, a vemos sempre a mesma: cadeiras e mesas para os alunos, cadeira e mesa para o professor, quadro... com pouquíssimas variantes: uma estante, um armário... quem sabe um quadro-de-pregas ou um flanelógrafo... muitos alunos, um professor, uma sineta que toca e liberta todos os que estão lá dentro, condenados ao ofício da instrução.

Alguns há que digam que não importa o ambiente e sim a disposição. Então aparecem modismos, tais como o de colocar as carteiras em círculos, para não dar a idéia da fila ou mesmo para democratizar o ambiente. Outros que já pudemos ouvir atestam que ensinar — e fazê-lo bem — não depende do espaço em que nos encontramos, nem do material de que dispomos; que a criatividade precisa superar esses pequenos empecilhos; que é possível trabalhar em ambientes até muito mais hostis do que as salas de aula. Muitos até não conseguem concebê-la de outra forma. Todos esses discursos permeiam o fazer pedagógico nas salas de aula brasileiras e muitas vezes, tal como coloquei aqui, não se sabe bem quem disse o quê.

Está claro que o processo ensino-aprendizagem não pode estar condicionado apenas pelo ambiente em que ele se dá; mas também está claro que o ambiente muito diz daquilo que se faz na escola. Com relação a esta eloqüência do ambiente, Kenski (2000) comenta:

Os prédios das escolas nos contam histórias. […]A disposição e uso dos móveis e equipamentos nas salas e laboratórios definem a ação pedagógica. A imagem apresentada pelas bibliotecas e salas ambientes, espaços e quadras de esportes, pátios, jardins e centros de convivência comunicam visualmente a filosofia de trabalho da escola. O espaço é uma das linguagens mais poderosas para dizer do fazer da escola. (p. 125)

Desta forma, que tipo de ação pedagógica é desenvolvida numa sala de aula sem ventilação, mal iluminada, que possui um quadro-de-giz, bancas universitárias quebradas, com os pregos perigosamente à mostra, uma mesa e uma cadeira para o professor? Uma escola onde, quando chove, não pode haver aula porque não fica um caderno sem ser ensopado; e quando faz sol, ninguém consegue sequer respirar. Que tipo de atividade se pode imaginar ser desenvolvida aí?

Poder-se-ia dizer, então: "Ah, mas a escola tem o pátio..." Sim, um pátio enorme, como de costume em algumas escolas públicas... sem árvores, sem bancos, sem brinquedos... o pátio, só: exposto ao sol ou à chuva... inóspito, nada convidativo. Um lugar que, além de não ser o melhor para se-fazer-coisa-alguma, também não é aproveitado para mais nada. Nem mesmo no intuito de modificá-lo.

Fazendo parte do ambiente escolar, mas não do aspecto físico da escola, estão as aulas monótonas, com um exercício passado no início do dia e que morosamente se perpetua por infindáveis horas, dando lugar, depois do recreio, ao exercício ­novamente a ser copiado e que será levado para ser feito em casa. Dia após dia... mês após mês... e, para os que repetem, ano após ano... Uma rotina sem fim e sem razão de ser.

Querer-se-ia, então, fugir da sala; e chegando ao pátio, fugir do pátio. Enfim... fugir da escola.

Contrariando toda essa paisagem, o discurso vigente é o de que escola é que é lugar de criança. Mas o que se faz para que isso realmente seja verdade, para que a escola seja lugar de criança? Tal como nos diz Redin (2000, p.81), não podemos mais confiar nesses discursos que não passam daquilo que eles são: discursos. Em suas palavras, "[…] já não temos grande confiança nas teorias explicativas nem nas teorias que fundamentam os processos, as decisões: porque estes e estas não satisfazem. Estamos à espera da construção de novos paradigmas, porque os atuais faliram".

A escola, tal como ela se apresenta em muitos casos, não é lugar nem de professor — que também não a suporta — muito menos de criança. E muitas dessas crianças sabem disso. Sabem e dizem, com seu comportamento, apesar de, muitas vezes, estes serem considerados desviantes ou inadequados. Caberia aqui perguntar: desviantes de quê? Inadequados para quê? Ou para quem?

O resultado de uma escola absolutamente desinteressante fica expresso, portanto, nos índices de repetência e de evasão escolar, guardando as devidas proporções de outros fatores que igualmente intervêm para que os fatos em questão se dêem. E não é culpa das crianças, apenas, como querem muitos professores com os quais já tive a oportunidade de conversar a esse respeito. Algumas vezes, culpa-se a fome e a falta de merenda... culpam-se também os pais, que não insistem e não se importam com o estudo dos filhos ... culpa-se a própria criança, dizendo que ela não quer nada com a vida ou que, coitadinho dele, não consegue aprender, deve ter algum problema... Contrariando principalmente essas últimas falas, Carvalho diz que:

Um dos sinais de saúde mental dessa meninada é a evasão da escola. Porque tal como elas funcionam na maioria dos Estados, na maioria das realidades brasileiras, as escolas não atendem às expectativas, às demandas, às exigências de um processo verdadeiramente pedagógico, de aquisição, de elaboração de um conhecimento, que é a demanda que a meninada traz para nós, uma demanda que chega de mil formas, com mil máscaras. Cabe ao educador, dentro de um processo de capacitação e com competência, fazer uma tradução e uma leitura dessas demandas, e devolver isso ao menino de uma forma organizada, sistemática, e ir construindo um saber. A escola não funciona assim, e a meninada que está aí reage muito saudavelmente a isso. Com essa reação, eles tentam dizer para o povo que não estão satisfeitos com essa escola, não gostam dessa escola, essa escola não atende às suas necessidades. (1993, p. 104)

Não é que agora faremos apenas as vontades das crianças. Não. Mas o que elas querem e precisam tem que ser levado em conta. Nós sabemos e falamos repisadas vezes que a escola é mais que a sala e mais que o pátio. Mais que o quadro e mais que o giz. Sua função não se restringe a oferecer apenas um ambiente sadio e agradável ao educando para que ele possa passar o seu tempo. Ainda que modificássemos a parte física da escola, faltaria muito a ser feito.

A escola é o ambiente no qual a sociedade vai buscar fomento para sua dinâmica. A ela foi dada a responsabilidade de cuidar para que a vida da sociedade não se esfacele, para que o homem possa continuar sobrevivendo num mundo hostil, pois que o ser humano, mesmo sendo um animal fraco, conseguiu fazer-se em toda parte do globo, simplesmente devido a sua capacidade de fazer cultura, de aprender com os outros e de ensinar aos outros. Sem esta tendência pedagógica, a espécie humana não teria sobrevivido às primeiras intempéries ambientais e estaria, já, extinta.

Não havemos, pois, de encontrar gênios ou imbecis em nossas salas de aula. Não será dos gênios a tarefa de melhorar a humanidade, mas de todos em conjunto. Isto precisa ser levado em conta quando nos propomos a ajudar outras pessoas a conhecerem o mundo. Segundo Laraia (1995, p. 46):

O homem […] é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridos pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções. Estas não são, pois, o produto da ação isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de toda uma comunidade.

Em uma sociedade contemporânea, é a escola que tem a responsabilidade de abarcar em seu seio todas as nuances da sociedade a que ela atende, para que o espírito de comunidade esteja ali envolvido e as pessoas se sintam parte integrante da própria escola e a vejam como uma parte extremamente importante de si mesma.

Não é mais possível admitir uma escola cujo objetivo seja crivar o grupo, esfacelando-o, e dele separando os melhores dos piores. Essa escola não quer pessoas e as pessoas reais, de carne e osso, com defeitos, completamente diferentes umas das outras não vão fazer (e não vão querer fazer) parte dela. Estaremos lutando contra a corrente e achando ainda que a história é feita por heróis predestinados à glória e à fama. Não precisamos buscar os melhores, nem precisamos ser melhores... precisamos ser: em plenitude. E isso não é pouco.

Citando Haroldo Conti, um escritor argentino atormentado pela idéia de que sua literatura fosse politicamente inútil para sua gente, Galeano comenta que seus contos descreviam a vida e suas nuances, como elas aconteciam e que "ao contar o que somos, nos ajudam a ser, porque como vai se converter em protagonista da história, fazendo a história em vez de padecê-la, um povo que ignora a sua identidade?" (1993, p.157).

Não podemos admitir que nossa escola continue a negar a identidade das crianças que a formam. E a noção de identidade pessoal não está desvinculada da identidade cultural, tantas vezes negada, rechaçada e considerada como de menor valor para muitos. Nossas crianças precisam sentir que a escola delas tem a cara delas,e não que as considera piores só porque são diferentes de muitas outras crianças que falam de outro jeito e se vestem de outro jeito e têm pais que possuem outros trabalhos, empregos — ou não possuem empregos... A escola precisa aprender a conhecer suas crianças antes de querer ensinar-lhes algo; e não considerar como incultura aquilo que elas trazem de casa e da rua.

O pensamento de Galeano (1993, p. 128), apresentado a seguir, pode ser considerado esclarecedor quanto a essa visão de incultura, muito presente em nossas salas de aula. Seu pensamento nos alerta para um detalhe interessante que é a riqueza do material que se pode obter fora dos portões da nossa escola:

Muitas vezes o que se considera incultura contém sementes ou frutos de uma outra cultura, que enfrenta a cultura dominante, apesar de não ter seus valores nem sua retórica. É costume desprezá-la, erradamente, considerando-se uma mera repetição degradada dos produtos cultos ou dos modelos culturais que o sistema fabrica em série; entretanto uma historinha de cordel é freqüentemente mais reveladora e valiosa que um romance profissional.

Não se trata aqui de condenar nossos alunos a se apropriarem apenas daquilo que a eles diz respeito de perto. Mas de fazer a escola proporcionar a ampliação de horizontes e não uma quebra de possibilidades, um desconhecimento e uma desvalorização de si. Redin (2000, p.71) considera a escola como "uma oportunidade de vivenciar experiências culturais mais amplas e diversificadas que a família, a rua, o trabalho não têm condições de propiciar". Uma oportunidade diga-se de passagem, é uma coisa que todo mundo quer. Mas as nossas escolas não têm se constituído nessa oportunidade, visto nossos alunos estarem fugindo dela.

A responsabilidade com nossas escolas e, por conseguinte, com nossos alunos é nossa, é verdade. No entanto, sabemos que o apoio das instâncias superiores é fundamental, pois necessitamos urgente reavaliar diversas posturas assumidas durante anos. Podemos sentir, nos bancos das universidades, uma grande lacuna na formação dos estudantes e que deveria estar sendo desenvolvida desde o início: pensar parece um tormento. Expressar o que se pensa, pior ainda. Não será esse o resultado de muitos anos considerando os alunos como consumidores de educação? Não terá sido a postura individualista, norteadora do ensino, a causadora desse entrave cognitivo? Como posso me atrever a pensar junto com alguém, a realmente estudar, se o meu colega é meu adversário, competidor?

Então a solução não estaria apenas em trazer os assuntos do dia-a-dia das crianças para a escola... e tudo estaria resolvido. Anna Rosa Santiago (s/d) vai mais além de escolher assuntos que façam parte do cotidiano da criança para desenvolver-lhes o pensar, e traça uma preocupação que deveria estar presente sempre que pensemos em educação, pois não podemos fugir de assumir nossas posturas políticas. Em suas palavras:

Além do campo específico do currículo em desenvolvimento, a escola e os sistemas educativos precisam atentar para as questões sociais; para o desemprego e a marginalização, que atingem camadas cada vez mais amplas da sociedade, refletindo-se na escola pública sob a forma de violência, abandono e rejeição; para os salários aviltantes do magistério; para a auto-estima abalada; para as dificuldades em qualificar e manter programas de formação continuada dos professores; para as demandas de participação e descentralização de decisões, limitadas pela burocracia escolar […] ( p.l)

Ou seja, mudar a escola não é tarefa apenas daqueles que estão dentro da escola. Höfling (2001) acrescenta que:

[…] uma sociedade extremamente desigual e heterogênea como a brasileira, a política educacional deve desempenhar importante papel ao mesmo tempo em relação à democratização da estrutura ocupacional que se estabeleceu, e à formação do cidadão, do sujeito em termos mais significativos do que torná-lo "competitivo frente à ordem mundial globalizada". (p. 5)

Esta afirmação nos remete de volta à problemática cognitiva, pois seres pensantes podem avaliar e modificar os quadros que avaliam, tomando decisões e ações significativas. Se não podemos, pois, modificar todo o sistema de ensino, precisamos, pelo menos, instrumentalizar nossos alunos para dificultar que eles venham a ser joguetes nas mãos de quem quer que seja.

Segundo Gardner (apud ANTUNES, 2001) e sua teoria das Inteligências Múltiplas, possuímos oito inteligências: a lingüística — ou verbal —, a lógico­-matemática, a espacial, a sonora — ou musical —, a cinestésico-corporal — ou do movimento —, a naturalista e as pessoais, separadas em intrapessoais e interpessoais. Nilson José Machado, da USP, aceita, ainda, uma nona, que é a inteligência pictórica. Segundo Antunes, Gardner ainda estuda a possibilidade de uma outra, a existencial.

Na verdade, não importa quantas inteligências ou quantos tipos de utilização ou quantos campos de ação de nossa inteligência vamos descobrir ainda. O que importa é nossa ação conjunta para ajudar a desenvolver junto com nossos alunos toda a gama de possibilidades — ou, pelo menos, a maior quantidade possível delas — que eles têm.

De acordo com Morin (2002):

[…] O problema cognitivo é de importância antropológica, política, social e histórica. Para que haja um progresso de base no século XXI, os homens e as mulheres não podem mais ser brinquedos inconscientes não só de suas idéias, mas das próprias mentiras. O dever principal da educação é de armar cada um para o combate vital para a lucidez. (p.33)

Ainda segundo Candau (s/d):

A escola está chamada a ser […] mais do que um locus de apropriação do conhecimento socialmente relevante, o científico, um espaço de diálogo entre diferentes saberes […]e linguagens; […] é no cruzamento, na interação, no reconhecimento da dimensão histórica e social do conhecimento que a escola está chamada a se situar. […] Devem ser enfatizadas a dinamicidade, a flexibilidade, a diversificação, as diferentes leituras de um mesmo fenômeno, as diversas formas de expressão, o debate e a construção de uma perspectiva crítica plural. (p. 14)

É esta lucidez que quer Morin, numa escola dinâmica como pede Candau,que devemos buscar, de forma divertida e agradável. De forma ousada, num ambiente de satisfação, onde se queira estar, para onde se faça questão de ir, por se ter certeza de que lá é o nosso lugar, não só das crianças, mas de todos aqueles que, juntos, desejem acender a luz. Precisamos lutar, pois como bem disse Galeano (1993, p.131), "a culpa do crime nunca é da faca".

REFERÊNCIAS

ANTUNES. Celso. Como desenvolver conteúdos explorando as inteligências múltiplas. 3a ed, Petrópolis: Vozes, 2001.

CANDAU, Vera Maria. Reinventar a Escola. Petrópolis: Vozes, s/d.

CARVALHO, Marco Antônio Cândido de. Pedagogia de Rua: princípios extraídos de uma análise prática. IN: GROSSI, Esther Pillar & BORDIN, Jussara. Construtivismo Pós-Piagetiano: um novo paradigma sobre aprendi:;agem. lOa ed., Pertópolis: Vozes, 1993.

GALEANO, Eduardo. Ser como eles. Rio de Janeiro: Revan, 1993.

HOFLING, Eloísa de Mattos. Estado e Políticas (Públicas) Sociais. IN: Cadernos CEDES. v 21, n 55, Campinas, nov, 2001. Disponível em www.scielo.br.

KENSKI, Vani Moreira. Múltiplas Linguagens na Escola. IN: Linguagens, espaços e tempos no ensinar e aprender. ENDIPE. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. lOa ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

LIMA E GOMES, Idéia Rodrigues de. A escola como espaço de pra:;er. São Paulo: Summus,2000.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Trad. Catarina Eleonora da Silva e Jeanne Sawaya, 5a ed.,São Pulo: Cortez, Brasília: UNESCO, 2002.

REDIN, Euclides. O Espaço e o tempo da criança: se der tempo a gente brinca. 3a ed, Porto Alegre: Mediação, 2000.

SANTIAGO, Anna Rosa Fontella.A viabilidade dos PCN como Política Pública de intervenção no currículo escolar. Artigo disponível em www.anped.org.br. s/d.

TELES, Maria Luiza Silveira. Filosofia para Crianças e Adolescentes. 4a ed, Petrópolis: Vozes, 2002.

Artigo apresentado à Universidade Federal do Pará, 2007.

Pedagoga Especialista em Formação Docente na Amazônia, pela Universidade Federal do Pará, Campus de Castanhal.

A Teoria das Inteligências Múltiplas […][coloca] em questão processos anteriormente descritos para explicar sistemas neurais que envolvem a memória, a aprendizagem, a consciência, as emoções e as Inteligências de maneira geral. (ANTUNES, 2001, p. 12)