RESUMO: Richard Francis Burton (1821-1890) foi um explorador aventureiro de vida movimentada; foi cônsul inglês em Santos entre 1865 e 1869, deixando, sob a forma epistolar, uma importante narrativa sobre a Guerra do Paraguai (1864-1870) e sobre o contexto dos países beligerantes. Nos interessa, aqui, refletir a forma como Francisco Solano Lopez (governante paraguaio entre 10 de setembro de 1862 e 1 de março de 1870) é representado pelo referido viajante, pensando seus relatos como importante fonte histórica a antropológica. PALAVRAS-CHAVE: Teoria da História; Guerra do Paraguai; Relato de viajante Burton é uma das personalidades mais marcantes do século XIX. Falava 29 idiomas e vários dialetos, disfarçava-se com muita facilidade, o que lhe possibilitou viver entre os povos do Oriente e da África. Estudou sobre a cultura de povos asiáticos e africanos, fato que permite verificar um pioneirismo em relação a Antropologia e os estudos etnológicos, especialmente dado a suas produções e expedições ligadas à Royal Geographical Society e Antrhopological Society of London, por volta da década de 1860. Burton peregrinou à cidade de Meca em 1853, (sagrada e proibida aos não muçulmanos) disfarçado de afegão; também foi à Harar, capital da Somália, de onde nenhum outro homem branco havia saído com vida. (RICE, 1991, p. 231) Juntamente com John Haning Speke, como já mencionamos, explorou a região dos Grandes Lagos africanos, promoveu a busca pela nascente do Rio Nilo, descobriu o lago Tanganica Antes da posição consular em Santos, em 1861 foi nomeado cônsul em Fernando Pó (atual Bioko), no mesmo ano em que casou-se com Isabel, numa cerimônia católica. No Brasil, Burton percorreu, Rio das Velhas, o Rio São Francisco, esteve em Minas Gerais, na Bahia, no Rio de Janeiro, em São Paulo, produzindo importantes relatos sobre a terra, a gente, a geografia, etc. Tais relatos sobre o Brasil fora publicados em Londres, no ano de 1969 na obra titulada Explorations of the Highlands of Brazil, uma ano depois seria publicada Letter from the battlefield of Paraguay, também em Londres. Em Londres, Burton teve Karl Marx como colega de pesquisa em algumas salas de leituras nas grandes instituições de Londres (RICE, 1991, P. 19) o Historiador Eward Rice, na tentativa de traçar um breve panorama do contexto histórico na época de Burton, ressalta que A Revolução Industrial estava em pleno florescimento, transformando o verdejante campo dos poetas ingleses em montes de miseráveis escórias humanas; as potências europeias tinha recortado o mundo em colônias, protetorados e esferas de influência; as invenções que diariamente modificavam o perfil do cotidiano surgiam em avalanche e, à medida que aumentava a alfabetização, ideias de toda espécie – revolucionárias, intelectuais, científicas e políticas – se alastravam por todo o mundo com a força de uma epidemia. (RICE, 1991, p. 19) Segundo Alexander Gebara “durante as décadss de 1850 e 1860 o nome de Burton esteve associado as viagens de exploração e, principalmente, a geografia e a antropologia inglesas”. (GEBARA, 2010, p. 121) Burton era membro da Royal Geogrephical Society de Londres a qual financiava parte de suas expedições. GEBARA comenta a imporância de Burton para a referida instituição inglesa, enfatizando que Ele contribuiu com artigos nas publicações da sociedade desde 1854, quando publicou um texto sobre sua viagem à Meca. O auto recebeu uma medalha de ouro em 1859 por sua exploração da África Oriental e pela “descoberta” do lago Tanganika durante a expedição, iniciada três anos antes, em companhia de John Hanning Speke, e esteve bastante envolvidos nos acalorados debates sobre as origens do Nilo, que donnavam boa parte dos interesses da [Royal Geogrephical Society] RGS para com a África naquele momento. (GEBARA, 2010, p.121) Muitos e diferentes autores escreveram e escrevem sobre o conflito conhecido como Guerra do Paraguai e, consequentemente, se posicionam diferentemente sobre o líder paraguaio servindo-se de pressupostos que lhes são particulares. De maneira didática podemos dizer que a Guerra do Paraguai teve três versões predominantes na historiografia brasileira: Primeiramente a versão Oficial, depois a versão revisionista a qual, à partir de 1970, viria a contrapor a historiografia oficial, na década de 90 alguns autores propõem uma nova visão, opondo-se ao revisionismo. No que diz respeito à Lopez, este foi tratado ora como herói, ora como vilão, dependendo dos interesses, das particularidades e das foliações teórico-filosóficas e metodológicas do pesquisador. Na obra Letter from the battlefield of Paraguay , publicada em Londres (1870), Richard Burton reuniu 27 missivas, a primeira datada de Montevidéu em 11 de agosto de 1868, e a última escrita em Buenos Aires em 21 de abril de 1869, depois de visitar os campos de batalha por duas vezes (de 15 de agosto a 5 de setembro de 1868 e de 4 a 18 de abril de 1869). As informações do autor são de um verdadeiro “repórter” e vêm preencher algumas importantes lacunas na memória da guerra. Refletiremos aqui a forma como Francisco Solano Lopez (governante paraguaio entre 10 de setembro de 1862 e 1 de março de 1870) é representado na obra de Burton, já que anteriormente realizamos uma discussão entre duas concepções históricas marcantes na historiografia brasileira. O relato de Richard Francis Burton, entre outros viajantes estiveram no Paraguai no período da Guerra, são de extrema importância para a análise da Guerra do Paraguai. Tais relatos narram diversos episódios do conflito, a partir dos quais podemos analisar as representações de personagens do conflito, as produzidas no palco das batalhas, etc. Por ser estrangeiro e possuir ideologias, costumes, características culturais diferentes, a percepção de um viajante pode ser mais aguçada que a maioria dos habitantes. Isso se deve ao fato de suas experiências anteriores estarem fora daquela realidade. Dessa maneira suas impressões foram definidas pelos sentidos dos observadores, por sua bagagem cultural e por sua visão particular de mundo. No caso de Burton sua obra Cartas dos Campos de Batalha do Paraguai, reúne uma série de relatos e descrições dos lugares por ode passou. Visitou os países beligerantes e produziu uma série de entrevistas com oficiais, governantes e pessoas comuns. A referida obra foi publicada pela primeira vez por Tinsley Brothers, em Londres no ano de 1870; trata-se de missivas endereçadas a um destinatário anônimo “Z...”, ao qual narrava as impressões do teatro da Guerra. Num retorno à cidade de Buenos Aires, Burton escreve no dia 20 de setembro de 1868, a 22º com o título, A conspiração às atrocidades de Lopez. Embora já tivesse citado o governante paraguaio em diversas cartas anteriores, nesta, ele conversa com pessoas que estiveram ligadas diretamente à Solano Lopez, entre eles o Tenente-Coronel Thompson, Charles A. Washburn, entre outros. O primeiro teria sido abordado por Burton ainda no Paraguai, mas esse oficial, quando perguntado sobre as crueldades de Lopez, disse à Burton “ sei muito pouco sobre o assunto e provavelmente ninguém sabe muito”. (BURTON, 1997, p. 384) Burton decidiu então buscar informações a esse respeito, fora do Paraguai. A partir de fevereiro de 1868 o exército aliado começou a espalhar notícias a respeito de alguns atos cruéis por parte de Lopez, mas seriam apenas rumores até esse momento. Por essa época o exército aliado começou a escutar uma sucessão de rumores no tocante a torturas e execução de paraguaios e também de funcionários estrangeiros refugiados. O assunto era novo. Até então o Marechal-Presidente preservava um certo espírito de moderação e. a despeito das notícias que sempre ganham asas a respeito do inimigo, não podia ser acusado de crueldade. P. 348 Burton ressalta que no ano de 1864, mais precisamente no mês de julho a obra de Mr. M. Mulhall titulada The Cottonfields of Paraguay and Corrientes, dava conta de enaltecer o governo de Lopez frente suas nações vizinhas. Na referida obra lia-se o seguinte: “Agradeci ao presidente por sua gentileza e retirei-me muito disposto a julgar favoravelmente um país com um governante tão inteligente, afável e progressista” [p.106] E acrescentou [Mulhall]: “O governo do presidente Lopez não só é o mais adaptado ao povo paraguaio, como é, além disso, um modelo de ordem e progresso que as administrações argentinas, uruguaias, bolivianas, chilenas, venezuelanas, colombianas e outras da América do Sul poderiam vantajosamente imitar” [p. 91] (BURTON, 1997 p. 348) Burton menciona a informação dada pelo Tenente-Coronel Thompson de que após a vitória na Batalha do Riachuelo em 11 de junho de 1865, pela Tríplice Aliança o Presidente Lopez fez ver aos estrangeiros que ficara muito aborrecido ao saber que um marinheiro foi fuzilado por covardia na noite em que os navios voltaram a Humaitá, tendo sido colocado na cadeia durante a ação. Mas que, “sendo o caso com foi não lhe restava outra solução”. (BURTON, 1997, p. 348) Talvez uma informação que revela certa frieza de Lopez quando julgava necessário. Sobre o temperamento do marechal presidente Burton ainda ressalta que, A suspeita de traição e a firme determinação de combater até o último homem parecem ter influenciado desfavoravelmente o marechal-presidente. Além do mais, acredita-se que geralmente por essa época, ele se tornara viciado em vinho do Porto e tomado de crises de religiosidade. (BURTON, 1997, p.348) O viajante Burton descreve as impressões dos aliados a respeito de Lopez, na ocasião em que percorreu os campos de batalha e conversou com combatentes dos países envolvidos no conflito, entre agosto e setembro de 1868. Mas a opinião popular era bastante confusa a respeito do governante. Todos estavam falando da matança que envergonhava o governo dele, e como de hábito falou-se tanto que a parte menos crédula do público começou, a não dar crédito às notícias. As vítimas eram mortas e novamente trazidas à vida por meia dúzia de vezes no decurso de um ano. Quando deixei o Paraguai pela última vez as pessoas ainda hesitavam no que acreditar. (BURTON, 1997 p. 349) A tribuna de Buenos Aires, em 20 de fevereiro de 1869 “publicara uma longa lista de mortos e assassinados dando a entender que se tratava de uma transcrição do diário do General Resquin, que começava no dia 31 de maio de 1868”. (BURTON, 1997 p. 349) Entretanto, o próprio jornal era olhado com certa suspeição, tanto pelos paraguaios, pois poderia se tratar de uma estratégia de guerra. Burton menciona uma ilustre e importante testemunha, que segundo ele é de grande importância para pensar o comportamento de Lopez, principalmente com os estrangeiros. Tratava-se de “Charles Ames Washburn, minisro dos Estados Unidos e o único diplomata estrangeiro acreditado no Paraguai”. (BURTON, 1997 p. 349) Ambos já teriam sido apresentados no Rio de Janeiro em setembro de 1865. Em viagem pela Argentina, no início do outono de 1868 Burton encontrou com Washburn, (o qual representou os Estados Unidos no Paraguai entre 1861 e 1868). Burton comenta as declarações feitas por Washburn a respeito de Lopez, revelando, inclusive, possíveis atritos entre eles durante o período diplomático. Bastante mudado fisicamente [Washburn] estava vivendo num estado de excitação nervosa, numa atmosfera de terror e de suspeita felizmente estranhos ao clima de liberdade dos Estados Unidos. Muitas de suas declarações eram as de um homem, que, no fundo, não se poderia considerar responsável por seus atos. Dizia, por exemplo que todos os estrangeiros de Assunção estavam na cadeia e que, sem dúvida, a maioria deles seriam mortos sob o princípio de que “galo morto não canta”. (BURTON, 1997 p.350) As informações coletadas por Burton, seja no Paraguai ou mesmo em outros lugares que passou permitem ao viajante concluir que existiram uma série de torturas no Paraguai, por Francisco Solano Lopez, no contexto das batalhas; sejam estrangeiros ou paraguaios, alguns homens foram submetidos ao que o próprio título da XXII carta chama de atrocidades. Por fim, “as confissões de homens que foram provavelmente torturados para confessar são tratadas como comunicações confidenciais de criminosos políticos” (BURTON, 1997 p.351), conforme exposto nas últimas linhas da referida epístola de Burton. Referências Bibliográficas BARISTA, Eduardo Luis Araújo de Oliveira. Sir Richard Burton e Elizabeth Bishop: Pioneiros na tradução da literatura brasileira em língua inglesa. BURTON, Richard Francis. Cartas dos Campos de Batalha do Paraguai. Trad. José Lívio Dantas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército. 1997. BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. 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