1 - INTRODUÇÃO

Em 1680 é visto no céu francês o cometa Haley e com ele aparece, também, novas interpretações do porquê de sua aparição, que não as racionais, mas sim supersticiosas. Por exemplo, ele era visto como um aviso divino de que os pecadores se arrependam e sofram suas respectivas penitências, ou, o cometa indicava o início de tempos difíceis, como guerras ou fome. Então, surgiram-se muitos preconceitos e especulações sobre o cometa, que em sua maioria eram religiosas. A Igreja católica, que era monopólio das religiões na França, criou muitas superstições a fim de intimidar e controlar seus fieis através do medo, usando a aparição do cometa como argumento principal. Pierre Bayle se vê contra essas argumentações preconceituosas sobre o cometa e elabora argumentações que contrariam as religiões e alguns dos seus conceitos, que são utilizados para controlar a multidão. Baseado em seus argumentos, este trabalho tem como objetivo, realizar uma crítica à religião como não formadora da moralidade e sociabilidade nos indivíduos.


2 - RELIGIÃO COMO INCENTIVADORA MORAL E SOCIAL


Não se pode negar que a religião incentiva a boa moral e a sociabilidade entre os povos, senão, as igrejas não teriam um grande público que vão até ela para possuir conforto espiritual, e também, o que vemos nos cultos religiosos são palavras que negam o crime como um todo, desta forma, vemos que a religião possui sim conceitos que ajudam a moralizar e a socializar. Nesses termos éticos ou morais, o homem, quando tem a necessidade de realizar alguma ação relevante à sua vida, ele não mais se norteia em concordância à sua natureza, ele procura algo maior que isso, que é a revelação divina. Valls (1994) descreve que, "a revelação de Deus não é uma exposição teórica, mas é toda ela voltada para a educação e o aperfeiçoamento do homem. O homem busca ser santo, como Deus no céu é santo"

Os homens se ignoram por si próprios, e que, na menor de suas dificuldades, se deixam tomar pela esperança e pelo medo. Tomados por tais males da alma, esses estão aptos a acreditar em qualquer coisa que possa resolver suas dificuldades, e é aí que surgem os problemas, pois, o homem fragilizado pelo medo e pela esperança por dias melhores, como também tendenciado a acreditar em qualquer coisa que retire seu medo e lhe ofereça os tempos que tanto deseja, o mesmo começa a crer em superstições, assim, tornando-se escravo dela. Por exemplo, um idólatra é capaz de matar dezenas de animais para que na sua região possa chover e assim sua plantação dê a quantidade suficiente de frutos para serem vendidas lucrativamente.


3 ? O MEDO E SUPERTIÇÃO COMO FUNDAMENTOS DA RELIGIÃO


O medo é a causa que dá origem, alimenta e mantém a superstição, e assim, enquanto houver medo haverá superstição e se existe superstição1, então se tem uma das melhores ferramentas para governar as multidões. É válido ressaltar que, de acordo com Hume em seu livro "História natural da religião", toda superstição é quase sempre odiosa e opressiva. Um exemplo do uso do medo através de superstição, é quando uma determinada religião diz, em seus cultos, que caso o fiel não dê o dízimo que Deus "deseja" ele também não terá nada em troca, exceto o castigo por sua avareza. Dessa forma, o homem religioso só realiza algo para adular sua divindade no intuito que essa mesma divindade o reconheça como tal e dê-lhe proteção -financeira de preferência- como recompensa dos seus atos, e que, tal reconhecimento e assistência seja o mais rápido possível. Dessa forma, tanto a idolatria como a adulação são alimentadas, o que é uma contradição se analisarmos a Bíblia, pois, a mesma diz em Romanos 1:22-23: "Dizendo-se sábios, tornaram-se estultos, e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, e de aves, e de quadrúpedes, e de répteis.", ainda em Êxodo 20:3-4 é dito que "Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que há em cima no céu, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra."; proibindo assim a adoração aos ídolos ou imagens.

Sabe-se que o medo existe em qualquer pessoa e que ela é invariável e inconstante, e o que a alimenta não é, obviamente, a razão, mas sim as paixões; sabemos que as paixões geram o ódio, a inveja, a fraude, a cólera, e outros enfermos do espírito. Como o povo não possui conhecimento, já que conhecimento é consequência do bom uso da razão, então, a plebe é uma vítima certa das superstições. É nesta fraqueza que o Estado, sob a capa da religião, e também a própria religião, utiliza-se da superstição para controlar a multidão.

Estes preconceitos retiram do homem sua racionalidade e assim, impossibilitando-o do livre uso da razão, como também, a capacidade de entender se algo é verdadeiro ou não, apagando-se, assim, a luz do entendimento e acendendo a luz divina ou conhecimento revelado, que tem como seu fim, a obediência a Deus. Ainda com o pensador, não é a religião em si que causa esses males ao povo, mas sim, a forma que ela é interpretada e o mau uso dessa interpretação. Espinosa faz um livre exame da Escritura, recusando-se a afirmar qualquer coisa que não lhe fosse dito com clareza. Neste exame, ele entende que na Escritura, a razão é totalmente livre, sendo assim, cada um terá a possibilidade de interpretar os fundamentos da fé do jeito que lhe for mais conveniente e não criticar a fé de outrem, exceto se ela possui atitudes denegrecíveis.

Bayle sustenta duas ideias básicas em relação às religiões: A primeira é que o medo constitui o fundamento de toda a religião e a segunda é que existe um fosso entre a razão e a fé. O pensador sustenta suas ideias através do argumento de que seria contraditório Deus criar tudo que nos cerca simplesmente para ser idolatrado, ele não precisa disso, e se precisasse, assim como criou tudo, poderia muito bem inserir o sentimento de idolatria em nós, no mesmo âmbito das necessidades vitais, isto que, é querendo ou não, a idolatria seria essência da vida.

Pensa-se que a religião é como se fosse uma espécie de bússola orientadora da moralidade, porém, se concordarmos com Bayle quando ele afirma que o medo constitui o fundamento de toda religião, então, a religião não tem participação na qualificação moral de alguém, assim, ela é indiferente à sociabilidade.


4 ? PLURALIDADE RELIGIOSA E A TOLERÂNCIA CIVIL


Como a razão é livre e podemos interpretar a Escritura como desejamos, então, abre-se as portas para uma pluralidade religiosa, porém, essa pluralidade é vista de forma negativa porque irá por discórdias entre as pessoas e o Estado, assim, lesando a paz social e praticando apologia à uniformidade religiosa. Bayle contesta tal ideia. Ele afirma que a uniformidade religiosa, além de desnecessária, é perigosa. Para o pensador, uma religião tirana sobre todas as outras, ou seja sem tolerância, usaria a força para aplicar suas leis e violaria a liberdade racional dos indivíduos. Há de se concluir que a intolerância e a violação da liberdade constitui o basilar das guerras religiosas. Para o francês, somente com a atuação de dois princípios distintos pode interromper a imposição da uniformidade religiosa: O pluralismo religioso e um poder político forte de imparcial religiosidade que possibilite a convivência pacífica de todos. Quando se tem um equilíbrio político e religioso, então se tem a tolerância civil. De acordo com Santos (2004, p. 45), referenciando-se a Bayle


a tolerância não é uma condescendência indiferente, mas um respeito à diferença do Outros, à liberdade de consciência do indivíduo, à paz social e à vida política: ela tem bases racionais, obedece à leis da moral universal, e por isso é justa nos seus princípios e nos seus fins.


Portanto, para o Bayle, é de suma importância a existência da tolerância civil porque com ela, todas as pessoas teriam liberdade para manifestar suas crenças.

De acordo com o Francês, a tolerância só pode emergir pela via filosófica e não por instâncias teológicas, pois, se a intolerância é contraditória aos princípios da luz natural, então, é impossível partir de Deus qualquer apologia ou aprovação de tal prática e que, para haver um discurso sobre a tolerância é necessário "definir o critério a partir do qual se pode discutir sobre bases comuns a questão da tolerância, trilhando caminhos próprios e abrindo novas perspectivas sobre o mesmo debate" (Santos, p. 39)

Certamente, Bayle apresenta ao século XVII uma visão não só positiva da tolerância, mas também inovadora quando se trata sobre o direito da consciência individual. Levar à tona esse direito à consciência individual era algo muito complicado, pois, teria que contrariar Santo Agostinho, e assim, contrapor a toda uma tradição secular. Bayle afirma que a longa tradição religiosa justificava sua intolerância, e pior, acusa Santo Agostinho de partícipe de tal intolerância. Ele afirma isso analisando o livro "Cidade de Deus" de Santo Agostinho, pois, há muitos pontos em seus textos que o fazem pensar assim, por exemplo, de acordo com o professor Santos (2004), a carta 185 de Santo Agostinho diz: "Há perseguição injusta, àqueles que fazem os ímpios à Igreja de Cristo". Para Bayle, perseguir alguém porque o mesmo tem um visão religiosa divergente à igreja, seria colocar em contradição os princípios universais da moral e por isso não válido.

Como já foi dito, Bayle fez da tolerância, algo positivo, antes disso, a tolerância era visto como uma virtude de todo o ser fraco, já a intolerância se apresentava positiva porque dizia respeito à integridade moral. Contra tal concepção, esse pensador afirma que a tolerância é fundada na razão, e que tem como principal ideal, a preocupação com o Outro, derivando, assim, a paz social. Para SANTOS (2005, p. 45), em concordância a Bayle,


"a tolerância não é uma condescendência indiferente, mas um respeito à diferença do Outro, à liberdade de consciência do indivíduo, à paz social e à vida política: ela tem bases racionais, obedece às leis da moral universal, e por isso é justa nos seus fins"


Bayle visualiza a tolerância como um dever de obediência dos ditames da consciência de cada um, pelo bem interior que ela possibilita, afastando todo o tipo de preconceito e superstição.


5 - PAIXÕES NATURAIS COMO FORMADORA DA MORAL


Um dos grandes pensadores da ética e moral na modernidade foi David Hume, este, em concomitância à Bayle, entende-se que a moralidade do homem certamente independe de qualquer religiosidade, então, devemos saber que é um risco medir a moralidade de alguém baseando-se na sua religiosidade. Em relação à moralidade e a religião no homem, HUME (2005, p. 118) afirma que,


os deveres que um homem cumpre como amigo ou como pai parecem referir-se simplesmente a seu benfeito ou a seus filhos, e ele não pode faltar a esses deveres sem romper todos os vínculos da natureza e da moralidade. Uma forte inclinação pode impulsioná-lo a cumpri-los. Um sentimento de ordem e de obrigação moral une sua força à força desses vínculos naturais, e o homem por inteiro, se é verdadeiramente virtuoso, é conduzido ao seu dever sem qualquer esforço ou violência. Ainda no caso das virtudes que são mais austeras e mais dependentes da reflexão, como espírito público, o dever filiar, a temperança ou a integridade, a obrigado moral, tal como a compreendemos, descarta toda a pretensão a um mérito religioso; e a conduta virtuosa não é mais aquilo que devemos à sociedade ou a nós mesmos.


Se a religião não tem potencialidade para formar uma moralidade no indivíduo, então, o que forma? De acordo com Bayle, são as paixões naturais que formam a moralidade. Como as paixões nos faz seduzir pelas coisas e então passamos a desejá-las, com esses desejos, fazemos nossas escolhas, sejam elas más ou boas, porém, melhor para si. Fazendo referência a Aristóteles, a escolha é quem dá origem à ação, como todo ação visa algum bem, então, não existe escolha sem razão ou disposição moral. No capítulo dois da Ética a Nicômaco, ele diz:


a excelência moral é uma disposição da alma relacionada com a escolha, e a escolha é o desejo deliberado, segue-se que, para que a escolha seja boa, tanto a razão deve ser verdadeira quanto o desejo deve ser correto, e este deve buscar exatamente o que aquela determina. (ARISTÓTELES, 2001, p. 114)


Portanto, de acordo com Bayle, é a conveniência que faz do homem um indivíduo obediente às leis morais, acabando por defender, também, o ateísmo contra as acusações de Espinosa, que afirmara que o ateísmo era uma doença ou uma extravagância mental e também contra Locke, que não tolerava o ateu.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Com a tolerância civil, a liberdade religiosa se torna possível, porém, se houver centralização das crença em somente um religião, então, haverá um espécie de tirania religiosa, com isso, tal liberdade é fadada ao fracasso, portanto, a tolerância é importante, mas não é necessária se não houver pluralidade religiosas.

Conclui-se então que a religião, baseado em Bayle, apesar de ser um ente sociabilizadora e moralista, ela possui conceitos que não a responsabiliza como uma formadora de sociabilidade e moralismo. A partir do momento que as pessoas se desvincularem dos medos e das superstição, elas se tornarão menos perigosas à sociedade, pois, estão agindo de acordo com razão, assim, fará da sua consciência, o melhor meio de agir de acordo com suas necessidades e sem infringir na liberdade alheia, tornando-se uma pessoa justa e moralmente correta.





REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. trad: Mário Gama Kury. 4ªed. Brasília: UNB, 2001.

HUME, David. História natural da religião. Trad. Jaimir Conte. São Paulo: UNESP, 1ª Ed. 2005.

SANTOS, Antônio Carlos dos. Variações filosóficas. Entre a Ética & a Política. Aracaju, Editora UFS, 2004.

VALLS, Álvaro L. M. O que é ética. 8ª Edição. São Paulo: Brasiliense, 1994. 82 p.