UNIVERSIDADE ESTADUAL VALE DO ACARAÚ - UVA

CENTRO DE FILOSOFIA, LETRAS E EDUCAÇÃO - CENFLE

CURSO DE LETRAS

 

UMA ANÁLISE DO CONTO "A MENOR MULHER DO MUNDO" NUMA ABORDAGEM DO GROTESCO E DO SUBLIME

Carla Janaina Ferreira de Sousa

 

RESUMO: O presente ensaio propõe a análise de aspectos grotescos e sublimes presentes no conto "A menor mulher do mundo", de Clarice Lispector. A instrumentação teórica para realização deste ensaio conta com os estudos BAKHTIN (1987), HUGO [s.d] e KAYSER (1986).

Palavras-chave: Clarice Lispector.grotesco. sublime.pequena flor.marcel pretre.

 

Este trabalho nasceu da curiosidade que se tinha a respeito de analisar os aspectos grotescos e sublimes presentes no conto "A menor mulher do mundo", utilizando para essa análise grandes autores na área de estudo do grotesco e do sublime, e um dos contos de Clarice Lispector, a qual sempre trabalha com aspectos de estranhamento e encantamento em suas produções literárias.

O teórico Kayser (1986), em seu ensaio sobre o grotesco, aponta o conceito e origem dessa palavra: "La grottesca e grottesco, com derivações de grotta (gruta), foram palavras cunhadas para designar determinada espécie de ornamentação, encontra em fins do século XVI, no decurso de escavações feitas primeiro em Roma e depois em outras regiões da Itália". (KAYSER, 1986, p.17-18). Esta pintura ornamental, o procedimento tende ao hidrismo das formas, uma vez que os corpos humanos surgem relacionados aos planos animal e vegetal, numa espécie de diluição das fronteiras acerca do ser humano.

A palavra sublime tem sua origem e significação no latim, vem da palavra em latim sublimis, entrou em uso no século XVIII, e indica uma linha estética, distinta do belo e do pitoresco, e que remete a uma gama de reações estéticas, com a sensibilidade voltada para aspectos extraordinários e grandiosos da natureza (para o sublime, a natureza é ambiente hostil e misterioso, que desenvolve no indivíduo um sentimento de solidão).

A autora Clarice Lispector narra no conto "A menor mulher do mundo", o encontro do explorador Francês Marcel Pretre e uma mulher africana de quarenta e cinco centímetros (nas profundezas da África Equatorial), justamente a menor do mundo que dá título ao conto. Diante tal acontecimento, Pretre informa à imprensa o encontro do menor dos menores pigmeus do mundo. Daí então, a fotografia da menor mulher foi publicada no suplemento colorido do jornal de domingo, e a tal imagem da menor mulher acaba causando diversas reações nos personagens ditos civilizados. Essas reações são narradas em seis cenas fora do ambiente de origem do início do conto. O texto termina bruscamente com a fala de uma velha fechando o jornal. Esse conto é narrado em dois espaços diferentes: primeiramente, é narrado em um continente da África, onde se dá o encontro do explorador Marcel Pretre e a Pequena Flor como foi citado antes. Num segundo momento, o conto é narrado em um continente longe da África, onde personagens "civilizados" contemplam a foto da Pequena Flor no jornal, encarando-a como coisa ou bicho. Essa alternância dos ambientes, levada sempre por meio de cortes narrativos, prossegue: um retorno ao cenário africano, e seguindo, já nas últimas linhas do conto, por um ressurgimento do espaço urbano na cena em que uma velha aparece fechando o jornal.

Logo no inicio do conto, podemos notar a presença de aspectos grotesco na descrição que a autora faz da personagem da menor mulher: "[...] Pretre defrontou-se com uma mulher de quarenta e cinco centímetros, madura, negra, calada. "Escura como um macaco”. (LISPECTOR, 1998, p.68). "[...] O nariz chato, a cara preta, os olhos fundos, os pés espalmados. “Parecia um cachorro”. (LISPECTOR, 1998, p.70). Essas comparações animalescas que autora faz da personagem, acaba deixando aparência dessa personagem algo diferente do paradigma imposto pela sociedade, e isso causa estranheza nos personagens ditos civilizados. Clarice tenta misturar os traços humanos da pequena mulher com os traços animais ao fazer essas duas comparações. "[...] A mistura de traços humanos e animais é uma das formas mais antigas do grotesco". (BAKHTIN, 1987, p.276).

Essa comparação animalesca, a autora faz também em outros trechos: "Os Bantos os caçam em redes, como fazem com os macacos. E os comem. Assim: caçam-nos em redes e os comem. A racinha de gente, sempre a recuar e a recuar, terminou aquarteirando-se no coração da África, [...]. Por defesa estratégica, moram nas árvores mais altas". (LISPECTOR, 1998, p.69). Nesse trecho, Clarice novamente faz uma comparação animalesca em relação o modo de vida dessas tribos com a vida de um animal (macacos) que tem um modo de vida selvagem, moradia, comunicação através de não-linguagem e alimentação. Essa questão da alimentação nos remete ao aspecto grotesco, a tribo Likoualas era caçada e devorada como fosse um animal, algo que causa repulsa e estranheza.

Analisarmos outro aspecto grotesco presente na descrição da personagem: "O nariz chato [...]. Parecia um cachorro". (LISPECTOR, 1998, p.70). A presença do grotesco corporal baseado no nariz da personagem. Segundo Bakhtin que discute a questão do nariz, colocando-o como um elemento importante na imagem grotesco do corpo: "[...] O grotesco começa quando o exagero toma proporções fantásticas, e quando o nariz de um indivíduo se torna o focinho de animal ou um bico de pássaro [...]". (BAKHTIN, 1987, p.276). Clarice focaliza mais o nariz da personagem, comparando-o ao um nariz (focinho) de um cachorro.

Outro aspecto grotesco corporal presente na descrição da personagem é fato dela está grávida: "[...] Nos tépicos humores silvestres, que arredondam cedo as frutas e lhes dão uma quase intolerável doçura ao paladar, ela estava grávida". (LISPECTOR, 1998, p.68). A Pequena Flor agora não surpreende ou causa estranheza (no explorador e nos demais personagens) somente pelo tamanho, mas também pelo fato de estar grávida, esses fatos acabam abrindo um espaço para a ternura e ao mesmo tempo incomoda Pretre e os demais personagens, reforçando o sentimento de estranheza e um obscuro temor: quem a vê, pressente alguma ligação com ela, compartilha um de sua natureza curiosa e repulsiva, que denuncia muito abertamente ao lado grotesco de cada um (dos personagens). O sentimento de repulsa fica bem explícito no seguinte trecho: "[...] Foi neste instante que o explorador, pela primeira vez desde que a conhecera, em vez de sentir curiosidade ou exaltação ou vitória ou espírito científico, o explorador sentiu mal-estar". (LISPECTOR, 1998, p.73). Esse aspecto grotesco da gravidez é trabalhando em um dos trechos do teórico Bakhtin acerca de um dos aspectos mais marcantes do corpo grotesco, indicado pelo teórico como um corpo sempre em formação, no seguinte trecho:

[...] Os principais acontecimentos que afetam o corpo grotesco, os atos do drama corporal - o comer, o beber, as necessidades naturais (e outras excreções: transpirações, humor nasal, etc.) a cópula, a gravidez, o parto, o crescimento, a velhice, as doenças, a morte, a mutilação, o desmembramento, a absorção por outro efetuam-se nos limites do corpo e do mundo ou nas do corpo antigo e do novo; em todos esses acontecimentos do drama corporal, o começo e o fim da vida são indissoluvelmente imbricados". (BAKHTIN, 1987, p.277).

Observamos também logo no início do conto a presença de aspecto sublime, quando o personagem Pretre sente uma necessidade imediata de ordem ao encontra uma mulher de uma pequenaz surpreendente e características tão diferentes, acaba tentando nomear, classificar, encaixar essa primitiva dentro de sua visão de mundo: "Sentindo necessidade imediata de ordem, e de dar nome ao que existe, apelidou-a de Pequena Flor". (LISPECTOR, 1998, p.69). Ao tempo em que a Pequena Flor era algo desconhecido e totalmente diferente para o explorador Pretre, ele sentiu necessidade de traz - lá para seu mundo (uma forma de familiarizar), nomeando a menor mulher com o nome de Pequena Flor, um sentimento inexplicável pela coisa desconhecida (algo sublime) até então. Pretre também sentiu necessidade de colher dados a respeito da Pequena Flor (uma forma de aproximar-se da coisa desconhecida).

Em outro trecho do conto, podemos notar também a presença do sublime: "Nesse instante Pequena Flor coçou-se onde uma pessoa não se coça. O explorador - como se estivesse recebendo o mais alto prêmio de castidade a que um homem, tão idealista, ousa aspirar - o explorador, tão vivido, desviou os olhos".(LISPECTOR, 1998, p.70). O sublime em relação à reação do explorador que presencia a figura da Pequena Flor se coça onde um ser humano não se coça, e ele desvia os olhos como se estivesse ganhando o mais alto prêmio de castidade, apesar de cena ser inesperada e diferente. Essa cena onde a Pequena Flor se coça, nos leva também ao um aspecto grotesco, já que autora Clarice deixa explícita a frase “onde uma pessoa não se coça”, nos leva acreditar que esse onde seria um lugar inaceitável ou esquisito para uma pessoa civilizada se coça.

Em determinado momento do conto, Clarice passa narra-o num cenário urbano, onde os personagens ditos civilizados vão ter a oportunidade de contemplar a foto da Pequena Flor. Diante da tal foto, os personagens têm reações diferentes. Essas reações que mostram o lado grotesco e sublime de cada um deles. Um desses personagens tem a seguinte reação diante da foto de Pequena Flor "[...], uma mulher, ao olhar no jornal aberto o retrato de Pequena Flor, não quis olhar uma segunda vez "porque me dá aflição". (LISPECTOR, 1998, p.70). Essa reação dessa personagem mostra o seu lado obscuro, a personagem tem certa repulsa pela imagem grotesca da Pequena Flor. Através do trecho a seguir, podemos ter a noção de como a foto da pequena africana foi publicada.

A fotografia de Pequena Flor foi publicada no suplemento colorido dos jornais de domingo, onde coube em tamanho natural. Enrolada num pano, com a barriga em estado adiantado. O nariz chato, a cara preta, os olhos fundos, os pés espalmados. Parecia um cachorro. (LISPECTOR, 1998, p.70).

Podemos observar a reação de outra personagem ao ver a foto: "[...] teve tal "perserva ternura" pela pequenez da mulher africana que - sendo tão melhor prevenir que remediar - jamais se deveria deixar Pequena Flor sozinha com a ternura da senhora. Quem sabe a que escuridão de amor pode chegar o carinho". (LISPECTOR, 1998, p.70). Esse sentimento da personagem mostra seu lado grotesco, a autora deixa implícito que esse amor pode ser algo obscuro, e quem sabe maldade que se esconde nessa ternura da senhorinha e o risco que a Pequena Flor pode estar submetida.

A autora retoma a narrativa no continente africano. Logo nessa retoma, observamos a presença do sublime no seguir trecho: "É que a própria coisa rara sentia o peito morno do que se pode chamar de Amor. Ela amava aquele explorador amarelo. [...] ela acrescentasse que também amava muito o anel do explorador e que amava muito a bota do explorador. [...]". (LISPECTOR, 1998, p.74). A Pequena Flor amava o explorador como amava também o anel e as botas dele, um sentimento ingênuo pelo ser desconhecido (Marcel Pretre) e pelos bens matérias desconhecidos: "Amor é não ser comida, [...], amor é rir de amor a um anel que brilhava [...]". (LISPECTOR, 1998, p.74-75).

O conto termina bruscamente com uma velha fechando o jornal e falando: "Deus sabe o que faz".

No conto clariceano, podemos extrair das palavras todos os matizes, ao lado obscuro e o mais glorioso dos personagens envolvidos no enredo. Clarice Lispector tem a preocupação de apresentar nas suas produções literárias o lado externo e interno dos seus personagens, atribuindo a eles características que remetem o aspecto grotesco e sublime.

Ao longo das discussões apresentadas até aqui, o presente texto propõe alguns dados reflexivos sobre a análise do conto "A menor mulher do mundo" numa abordagem do grotesco e do sublime, longe de conclusões finais. A leitura crítica desse conto, de Clarice Lispector, partindo para uma análise da abordagem do grotesco e do sublime presente no tal conto, poderá suscitar novas leituras e pesquisas, que com esta possam dialogar.

Este ensaio enfatizar as figurações do grotesco e do sublime presentes no conto "A menor mulher do mundo". Salientamos o fato de que a literatura clariceano apresenta de forma lacunar e sutil aspectos grotescos e sublimes.

A narrativa Clariceana é uma boa representa do que Victor Hugo apontou no prefácio de Cromwell, em 1827, a feiúra coexistindo ao lado da beleza, a disformidade próxima à graciosidade, fazendo ecoar concomitantemente o grotesco e o sublime.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: editora da UNB, 1987.

HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. Tradução do prefácio de Cromwell. Tradução e notas de Célia Berretini. São Paulo: Perspectiva, [s.d]. (Coleção Elos, vol.5)

KAYSER, Wolfgang. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1986. (Col. Stylus, vol.6)

LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto I. 5ªedição. São Paulo: Perspectiva, 1996 .

ROSENFELD, Anatol. Texto/Contexto II. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1993.

SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O império do grotesco. Ed. Mauad.