Ianna Arruda[1]

Rômulo Alves Dias[2]

 

Sumário: 1 Introdução; 2 A crise do Estado Democrático de Direito no Brasil; 3 Ativismo: uma manifestação legítima do judiciário?; 4 O ativismo judicial na Suprema Corte; 4.1 A construção da tese da infidelidade partidária; 5 Considerações finais; Referências.

 

RESUMO

Apresenta a crise do Estado Democrático de Direito no Brasil. Aborda o fenômeno do ativismo judicial como um expansionismo do Poder Judiciário. Mostra a diretriz ativista adotada pelo Supremo Tribunal Federal. Apresenta o caso da infidelidade partidária como fruto de ativismo da Suprema Corte.

Palavras-chave: Crise do Estado Democrático de Direito. Paradigma da separação dos poderes. Ativismo judicial. Infidelidade partidária.

1 INTRODUÇÃO

 

É notório que o Estado brasileiro entrega menos à população do que prega o texto constitucional. O salário mínimo está longe de atender as necessidades básicas do trabalhador, a saúde pública é caótica, a educação pública peca em qualidade e abrangência. Os exemplos da insuficiência da prestação positiva estatal são inúmeros.

Mesmo uma análise perfunctória do problema mostra que o executivo e o legislativo estão atuando aquém do constitucionalmente esperado, o que obviamente resulta em prejuízo no exercício dos direitos fundamentais sociais dos cidadãos.

O corolário do passivismo do executivo e do parlamento é o aumento da busca pelo judiciário para que a garantia dos direitos fundamentais seja plena. Mas em que medida o judiciário, em especial o STF, está transbordando em suas atribuições e atuando como verdadeiro legislador positivo? Provavelmente a resposta perpassa pela perquirição do paradigma da separação dos poderes e pelo instituto do guardião da Constituição.

Delimitar o espaço de atuação de cada poder é tarefa árdua, pois as linhas fronteiriças sofrem constantes tentativas de abalroamentos. Ademais, a acalorada discussão entre Kelsen e Schmitt sobre quem deveria ser o defensor da Constituição ganha novamente espaço nessa desarmonia entre os poderes (LORENZETTO, 2009). A tese kelseniana de um Tribunal Constitucional foi adotada pela maioria das democracias modernas, mas o fenômeno da judicialização da política dá ensejo a revisitar as críticas de Schmitt quanto à legitimidade de um órgão sem o suporte da representação popular em se arvorar como defensor da Lei Maior que consubstancia os valores mais caros de um povo.

 

2 A CRISE DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO NO BRASIL

 

O Brasil é considerado um país de modernidade tardia. Em geral, pretende-se utilizar essa denominação para retratar que o Estado brasileiro pulou etapas para atingir o seu caráter democrático formal e, como de costume, vendeu-se para o povo uma nova faceta do mesmo status quo, como se fosse uma transformação social. Assim ocorreu com a abolição da escravatura, com a Independência do Brasil e com a Proclamação da República (STRECK, 2003).

Essa nova "transformação" foi formalizada na Constituição de 88 que cunhou que os brasileiros estão sob a égide de um Estado Democrático de Direito. Streck (2003) discorre sobre o caminhar histórico desde o Estado absolutista, passando pelo Estado Liberal de Direito, pelo Estado Social e desemborcando no Estado Democrático de Direito. Para a realidade pátria, tem-se que o Brasil viveu na fase da ditadura militar o uso das leis como instrumento de dominação, em que o desrespeito aos direitos individuais contrastava  com o que se espera da prestação negativa de um Estado Liberal. Quando esse regime não mais encontrou sustentação, a Carta de 88 foi promulgada e o Brasil não teve o tempo necessário para maturar as questões sociais do modo como ocorreu nos países europeus adeptos do Welfare State.  Ou seja, nunca houve de fato por aqui a experiência de um Estado de Providência Social.

Independentemente da turbulência que resultou na instauração desse novo contexto, cabe perquirir como extrair o máximo da nova ordem constitucional. Primeiramente, frise-se que nos Estados de Direito o governo é das leis e não dos homens. Noutras palavras, até os governantes têm seus poderes limitados pelas normas legais. Segundo, o conteúdo das leis é agora norteado por uma ideologia que mescla o liberalismo (garantia de direitos individuais), a questão social (prestações positivas para uma condição mínima de vida digna) e o regime democrático (igualdade material resultante da participação do povo nas decisões do governo) (STRECK, 2003).  

Para a concreção dos ditames constitucionais, o Brasil adotou, a reboque das demais democracias modernas, o princípio da supremacia e da rigidez constitucional (BARROSO, 2012). Ora, se o governo agora é das leis, é necessário que a lei fundamental (a Constituição) tenha hierarquia superior sobre as demais, fazendo com que normas infraconstitucionais sejam afastadas quando em afronta à Lei Maior. A rigidez, por outro lado, impede que quóruns não privilegiados típicos de normas infraconstitucionais alterem o texto constitucional de acordo com a conveniência da maioria governante.

Ademais, completa o tripé teórico de sustentação da democracia brasileira a separação dos poderes com base nas funções de administrar (poder executivo), legislar (poder legislativo) e julgar (poder judiciário). Nenhum poder deve ter hierarquia sobre os demais e devem trabalhar de forma cooperativa para suprir as necessidades do verdadeiro detentor do poder, o povo.

Entretanto, a apregoada harmonia desse modelo é enevoada por inúmeros motivos quando do exercício prático das mencionadas funções, sendo que se percebe nesse momento histórico uma maior influência do poder judiciário (BARROSO, 2011), muito em razão da crise que existe entre os poderes, derivada das promessas não cumpridas pelo tão cultuado Estado Democrático de Direito.  Essa perigosa conjuntura atual da democracia brasileira está cimentada no descumprimento dos preceitos e garantias sociais constitucionalmente previstas na Carta Magna (BARROSO, 2011). Na prática, percebe-se que as prestações positivas elencadas na Constituição de 88 ainda são muito mais um conjunto de boas intenções para virtualmente aplacar as necessidades do povo do que substancialmente ações transformadoras para o bem-estar da comunidade.

Repisando-se que atualmente a força estatal se encontra segregada em funções ou "poderes" exercidos por diferentes órgãos, cabe verificar quem teria a incumbência de carregar a pecha dessa crise: o executivo, o legislativo, o judiciário ou uma combinação deles. Não se pode mais simploriamente dizer que a culpa é do "governo", como se estivéssemos em uma monarquia absolutista caracterizada pela concentração e personificação do poder, pois desse jeito se torna nebuloso o caminho para entender o problema.

O ideário de poderes harmônicos e independentes entre si poderia ser visto como engrenagens colaborativas que impulsionam a sociedade para uma evolução. Contudo, uma análise histórica mostra um cenário diferente. Como que em um cabo de guerra triplo, em diferentes épocas um poder ganha musculatura em relação aos outros dois e amealha mais terreno de influência (RAMOS, 2010). Porquanto, é assente que a análise da instabilidade estatal passa pela visualização dos limites de atuação de cada poder, suas deficiências, as omissões em suas ações e o transbordamento desses limites pela invasão em competências típicas de outros poderes.

Atualmente o holofote incide sobre o judiciário, que com suas interpretações "criativas" (ativismo judicial), supostamente construídas com fulcro no espírito constitucional, se arvora de possuidor da palavra final, com especial impacto quando diz mais do que o expresso no ordenamento jurídico (BARROSO, 2011). Assim, a função jurisdicional se transmuta em legislativa, pois o judiciário cria direitos que a bem da verdade deveriam ser objeto da atividade legiferante nuclear do parlamentar.

 

3 ATIVISMO: UMA MANIFESTAÇÃO LEGÍTIMA DO JUDICIÁRIO?

 

Está superada a questão da Constituição como mera carta de intenções programáticas. Constituição é norma, é lei, tem força cogente. Isso reforça a necessidade de que seja imputada a alguma instituição dentro do Estado Constitucional o encargo de fiscalizar os possíveis desrespeitos aos preceitos da Carta Magna.

 Esse controle de constitucionalidade está intrinsecamente ligado com a jurisdição constitucional e foi emblematicamente assentado após o caso Marbury vs Madison nos Estados Unidos. Em síntese, a Suprema Corte americana defendeu a tese da supremacia da Constituição, da nulidade de lei que a afronte e alçou o judiciário como intérprete cabal da Lei Maior (BARROSO, 2012).

O judiciário então abandonou a posição de espectador, de postura apenas reativa, e isso trouxe reflexos no delicado equilíbrio do sistema tripartite das democracias modernas (RAMOS, 2010). Ter o paradigma da palavra final parece ter conferido um trunfo aos juízes que poderiam de forma definitiva dizer o direito no embate tanto com o executivo quanto com o legislativo.

Mas ser o mediador da vontade constitucional (em última instância vontade do povo) confere ao judiciário legitimidade para abandonar o seu clássico passivismo e começar a invadir a competência dos outros poderes, em especial do parlamento, ao agir como verdadeiro legislador positivo?

O Estado Democrático de Direito é fruto de uma construção histórica pautada na substituição de dogmas sobre a origem e legitimação do poder. Por força das revoluções da era moderna, a concentração da força do monarca e seu princípio divino deram espaço para o poder oriundo do povo que, por impossibilidades práticas de exercê-lo de maneira direta, materializou sua atuação por meio da democracia representativa. Mas o exercício do poder é algo que facilmente se contamina pelo vírus do totalitarismo. Não importam quais sejam as suas raízes; é necessária uma topologia de distribuição da força do Estado para conter os abusos daqueles que estão na ocasião do governo (STRECK, 2003). Portanto, firmou-se nas democracias modernas alguma variante do modelo tripartite do poder proclamado por Montesquieu, que divide as funções estatais (administrar, legislar e julgar) entre diferentes órgãos, como uma tentativa de limitar o exercício do mando do governante.

A primeira vista, se o comando do Estado deve ser popular, nada mais natural que o poder legislativo tenha preponderância sobre os demais, pois seria o legislador o legítimo representante da vontade dos cidadãos. Contudo, verificou-se que a supremacia abusiva do parlamento é também uma fórmula de afastamento das intenções do Estado Democrático de Direito, pois se estaria à mercê dos desígnios da maioria da época que poderia atentar contra as liberdades individuais para se perpetuar no comando (RAMOS, 2010). Para isso editaria leis, conforme a conveniência do seu plano de poder.

A substituição do império dos reis pelos ditames do princípio da legalidade foi decisiva para a criação dos Estados modernos. Todos estariam sujeitos à lei, inclusive aqueles que estivessem no momento nas cadeiras de comando. Ressalte-se que a expressão "estivessem no momento nas cadeiras de comando" reflete um caráter essencial da democracia representativa: a rotatividade do poder.  Chega-se, portanto, em um corolário crucial dessa ilação: o império agora era das leis, não do parlamento (STRECK, 2003). E foi nessa atmosfera que ganhou força o constitucionalismo. Foram registrados em um documento os valores essenciais defendidos por um povo e todo o sistema jurídico orbitaria em torno dele (BARROSO, 2011). O nome Constituição revela o caráter do novo dogma instituído: os três poderes seriam constituídos por esse documento maior e, por isso, seus atos deveriam ser submetidos à ordem constitucional. Ou seja, nenhum dos três poderes deveria ser ilimitado. Mas para a concretização da supremacia constitucional, a Carta Magna deve ser rígida, noutras palavras, não passível de ser reformada por lei infraconstitucional. Se assim o fosse, o legislativo driblaria seus perímetros de atuação e se tornaria onipotente. 

Em suma, o Estado democrático de direito se lastreou nos princípios da separação de poderes e da supremacia constitucional (RAMOS, 2010). Contudo, no Brasil ambos ainda esbarram com os choques de realidade do exercício prático da democracia. Pergunta-se: a crise de representatividade do parlamento justifica a verdadeira legislação positiva do judiciário em suas decisões erga omnes? Noutras palavras, a tautologia da hierarquia constitucional oficialmente inaugurada pelo direito americano com o judicial review (BARROSO, 2012), juntamente com a ideologia dos magistrados de construir a norma a partir do texto legal, não estão falsamente servindo de pretexto para o judiciário, em especial o STF, exorbitar de suas atribuições ao penetrar nas atividades nucleares do legislativo (e do executivo), mesmo quando da defesa de direitos fundamentais?

Fato é que o parlamento arrefece com a inundação de medidas provisórias do executivo e com o ativismo judicial.  Tanto que o termo pejorativo "governo de juízes" está se tornando popular. Uma análise dos fundamentos do Estado democrático de direito obviamente é um caminho para entender melhor essa fase do amadurecimento da democracia brasileira. 

 

4 O ATIVISMO JUDICIAL NA SUPREMA CORTE

 

Não existe uma receita para a materialização da apregoada harmonia entre o executivo, o legislativo e o judiciário. Em distintos contextos espaciais e temporais há variações no espectro da separação dos poderes, sendo que é assente a não segregação absoluta das funções públicas. É na consubstanciação do desbordar dos limites de um poder com a interferência no núcleo essencial de outro que estaria configurada uma quebra do paradigma da separação das funções do poder. A inovação do modelo de Montesquieu se deu justamente na atribuição das funções públicas a distintos órgãos do Estado e não exatamente na instituição das funções em si. Segundo Ramos (2010), a grande problemática no Brasil é definir com clareza o momento do tangenciar de um poder no âmago dos demais, visto que a Carta Magna não se preocupou em positivar as funções, cabendo à doutrina conceituá-las com supedâneo nas competências constitucionais de cada poder. 

Considerando o contexto de invasão de competências, obviamente o maior impacto do ativismo judicial se dá no topo da estrutura do judiciário. Quando o STF se posiciona não apenas afirmando o que não é constitucional, mas efetivamente dizendo qual deve ser a regra geral que vinculará a todos, parece que se cria um ambiente de usurpação da atividade típica do parlamento.

Não se deve olvidar que "a moderna dogmática jurídica, no entanto, de longa data já não endossa a crença de que as normas jurídicas tenham, invariavelmente, sentido unívoco, oferecendo uma única solução possível para os casos concretos aos quais se aplicam" (BARROSO, 2012, p. 78). Ou seja, o julgador não carrega mais a alcunha de boca da lei. Cabe então analisar quando efetivamente há invasão na competência típica do parlamento ou apenas criatividade interpretativa no âmbito da própria atividade de julgar. É nesse cenário que Ramos (2010) analisa casos difíceis concretos que passaram pelo crivo do Supremo Tribunal Federal e avalia o grau de exorbitância de nossa Corte Constitucional.

 

4.1 A construção da tese da infidelidade partidária

 

Um debate emblemático que ocupou os tribunais da cúpula ocorreu no caso da infidelidade partidária. Como é notório, as casas legislativas estão aferradas à imagem de inércia, fisiologismo, corrupção e pouca ou nenhuma aderência aos anseios populares. Os parlamentares concentram suas energias mais na viabilização de maneiras de se perpetuar no poder do que na discussão de matérias polêmicas que possam agravar ainda mais a infâmia dos políticos brasileiros (BARROSO, 2012).

A despeito do preceito mandatório da filiação partidária para o exercício de mandatos eletivos, não se visualiza nenhuma identidade na ideologia de valores entre os estatuto dos partidos e seus representantes nas casas do parlamento. Como os interesses são de caráter predominantemente individuais, era costumeiro a deserção de um deputado ou senador de uma agremiação partidária para se filiar a outra, em regra avultando um movimento migratório dos integrantes de pequenos partidos de oposição para compor a base aliada do governo (SOUSA; CUNHA, [201-]). Assim soçobrava a expectativa dos eleitores de verem os valores do povo representados pelos seus candidatos eleitos, porque todas as ideologias defendidas durante a campanha quedavam cabalmente esmaecidas por conveniências alheias à vontade popular. 

Frise-se que, a despeito da reprovação moral que incide na busca de interesses privados em detrimento do bem comum, o entendimento por muito tempo pacificado na jurisprudência é que a infidelidade partidária não constituiria motivo para a perda do mandato. O substrato que possibilitava esse posicionamento do judiciário era calcado em preceitos constitucionais expressos.

 

Art. 54. Os Deputados e Senadores não poderão:

I - desde a expedição do diploma:

a) firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes;

b) aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado, inclusive os de que sejam demissíveis "ad nutum", nas entidades constantes da alínea anterior;

II - desde a posse:

a) ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada;

b) ocupar cargo ou função de que sejam demissíveis "ad nutum", nas entidades referidas no inciso I, "a";

c) patrocinar causa em que seja interessada qualquer das entidades a que se refere o inciso I, "a";

d) ser titulares de mais de um cargo ou mandato público eletivo. (BRASIL, 1988).

 

Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:

I - que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior;

II - cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;

III - que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada;

IV - que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;

V - quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição;

VI - que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.

§ 1º - É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas.

§ 2º Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa. 

§ 3º - Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.

§ 4º A renúncia de parlamentar submetido a processo que vise ou possa levar à perda do mandato, nos termos deste artigo, terá seus efeitos suspensos até as deliberações finais de que tratam os §§ 2º e 3º. (BRASIL, 1988).

 

Percebe-se que a infidelidade partidária não está elencada no rol de possibilidades para a perda de mandato eletivo, nem sequer indiretamente pelas hipóteses para perda de direitos políticos previstas no art. 15 da CF/88. Dogmaticamente não parece ser verossímil perder o mandato quando da desfiliação do partido.

Mas houve uma mudança em sentido diametralmente oposto ao entendimento que estava ossificado. O estopim para a discussão foi a consulta feita ao TSE pelo Partido da Frente Liberal (atual Democratas), em que

 

o Tribunal Superior Eleitoral, por maioria de votos, respondeu que 'os Partidos Políticos e as coligações conservam o direito à vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda.' (RAMOS, 2010, p. 245)

 

Ao tentar dar efetividade concreta a tese do TSE, três partidos buscaram junto à Câmara dos Deputados a investidura de suplentes, alegando que os titulares dos cargos haviam se desfiliado. Contudo, o pedido foi indeferido e a questão foi levada a julgamento no Supremo Tribunal Federal.

Desprestigiando o legislativo e procurando remediar a crônica falta de lealdade aos valores partidários, o STF corroborou, por maioria, a tese do TSE. Porém a lacuna no ordenamento representada pela falta de um regramento expresso sobre o tema necessitava de uma construção principiológica para fundamentar os argumentos da decisão. O suporte encontrado para isso foi que a obrigatoriedade da filiação partidária (art. 14 § 3° CF/88) teria como consectário que o mandato pertenceria ao partido e não ao candidato eleito. Sagazmente não se investiu de ilicitude a desfiliação partidária, já que esta conduta encontra suporte constitucional (art. 5° inc. XVII CF/88).

A perda do mandato seria apenas uma consequência lógica do transfuguismo (SOUSA; CUNHA, [201-]). A crítica de Ramos (2010, p. 249) é ferrenha ao pugnar que essa hipótese de perda de mandato "configura um dos episódios mais característicos de ativismo judiciário de toda a história daquela Excelsa Corte". O renomado doutrinador pugna que não cabe ao STF derivar uma norma regra a partir do princípio da representação partidária proporcional, pois essa inovação legislativa carece inelutavelmente de emenda à Constituição.

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A mudança de postura do judiciário para encarnar um agente mais ativo no Estado Democrático de Direito se coaduna com o ideário contemporâneo da Constituição como norma cogente e com o modelo de aplicabilidade das leis visando à extração máxima das potencialidades constitucionais. O direito é maior que o ordenamento jurídico e a interpretação não deve ficar adstrita à letra legal.  Também está consolidado nas democracias atuais a necessidade de um órgão que defenda a Constituição e garanta a supremacia da Carta Magna. No Brasil esse papel cabe ao judiciário, em especial ao STF, no exercício da jurisdição constitucional.

Contudo, quando algum órgão não ocupa adequadamente o seu espaço de poder, haverá um expansionismo de outro. Atualmente é o judiciário que está se assenhorando da função nuclear do legislativo. O parlamento em seu papel democrático imperfeito perde legitimidade popular e dá azo ao STF verdadeiramente legislar. Assim, deturpa-se o conceito de guardião da Constituição (garantir que cada um ocupe adequadamente seu espaço de poder) e se ingressa em um processo de judicialização da política.

Diversos casos apresentam esse ativismo judicial. A lide sobre a infidelidade partidária ganhou um destaque relevante porque a interferência envolveu a criação de um regramento sobre o exercício do mandato dos parlamentares, sem o devido suporte dogmático. Avolumam-se críticas ao judiciário quanto a essas posturas invasivas.

Entretanto, ainda não se vislumbra claramente qual a efetividade de importantes discussões em sede no atual parlamento, face a crise de representação do legislativo. A tese do judiciário como um guardião constitucional cônscio de seus limites de atuação é um campo fértil para discussões teóricas. Não obstante, no plano prático da eficácia das decisões de um defensor mais contido, fica a dúvida do grau de comprometimento dos legisladores em levarem a cabo discussões fundamentais para o país que envolvam interesses das mais diversas matizes, como é o caso da reforma política. O fato é que agora a intensidade do talante da toga se espraia na democracia brasileira. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial - direito e política no Brasil contemporâneo. Atualidades jurídicas - Revista do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Belo Horizonte, ano 1, n. 1, jul./dez. 2011.

BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2015.

LORENZETTO, Bruno Meneses. O debate entre Kelsen e Schimitt sobre o guardião da Constituição. In: CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI, 18., 2009, São Paulo. Anais... Disponível em: . Acesso em: 17 maio 2015.

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010.

SOUSA, Júlia Maia de Meneses Rocha de; CUNHA, Jânio Pereira da. A fidelidade partidária à luz do ativismo judicial: limites e ilegitimidade democrática. [201-]. Disponível em: . Acesso em:  17 maio 2015.

STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolzan de. Ciência política e teoria geral do Estado. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

 

 

[1] autora

[2] autor