Uma Análise Crítica do Princípio da Insignificância como excludente de punibilidade do ilícito penal de Contrabando ou Descaminho previsto no artigo 334 do Código Penal

Letícia Monteiro Cardoso Costa

Tassia Monayne Duarte de Melo

Sumário: Introdução; 1 O Ilícito Penal de Contrabando ou Descaminho Previsto no art. 334 do Código Penal; 2. O Princípio da Insignificância no Sistema Penal; 3. O Princípio da Insignificância como Excludente de Ilicitude e uma Análise Crítica da Norma Penal Frente a Casos Concretos; Considerações Finais; Bibliografia.

RESUMO

O presente artigo versa sobre a discussão a aplicação do princípio da  proporcionalidade do Direito Penal no artigo 334 que trata do Crime de Contrabando e Descaminho. O que gera um confronto principiológico ao aplicar o princípio da insignificância e deixar de aplicar os demais, visto que a aplicação de tal gera a excludente de ilicitude de uma conduta típica, jurídica e culpável.

PALAVRAS-CHAVE: PRINCÍPIOS DO DIREITO PENAL – CONTRABANDO E DESCAMINHO

INTRODUÇÃO

O tipo penal de contrabando ou descaminho está no contido no art. 334 do Código Penal:

 Importar ou exportar mercadoria proibida  ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria”. A pena: reclusão de um a quatro anos.

 1º - Incorre na mesma pena quem: 

a) pratica navegação de cabotagem, fora dos casos permitidos em lei; 

b) pratica fato assimilado, em lei especial, a contrabando ou descaminho; 

c) vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no País ou importou fraudulentamente ou que sabe ser produto de introdução clandestina no território nacional ou de importação fraudulenta por parte de outrem; 

d) adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal, ou acompanhada de documentos que sabe serem falsos. 

§ 2º - Equipara-se às atividades comerciais, para os efeitos deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências. 

§ 3º - A pena aplica-se em dobro, se o crime de contrabando ou descaminho é praticado em transporte aéreo

Primeiramente, é importante explanar, de forma breve, a classificação doutrinária elencando os elementos objetivos e subjetivos com base na posição de Greco e Nucci. Trata-se de um crime de forma livre, comissivo quanto aos núcleos importar e exportar, omissivo impróprio no que condiz com ao núcleo iludir. É um crime comum quanto ao sujeito ativo e próprio quanto ao passivo. Doloso com elemento subjetivo específico, segundo Nucci(2009,p.1111), que é o proveito próprio ou de terceiro. Greco não levanta a hipótese de elemento subjetivo específico. È um crime instantâneo, unissubjetivo, ou seja, pode ser cometido por apenas um sujeito. Pode ser unissubstistente ou plurissubsitente, sendo essa modalidade a única em que a tentativa é admitida. Não há modalidade de natureza culposa. A consumação ocorre no momento em que a mercadoria proíbida entra ou sai do país.O bem jurídico protegido é a administração pública.

O princípio da insignificância foi elaborado por Roxin, permitindo nos tipos penais excluir os danos considerados irrelevantes. Maurício Antonio Ribeiro Lopes(1997,p.20) considera que o Princípio da Insignificância é a válvula de resgate da legitimidade do Direito Penal, com andesamento de seu significado axiológico proporcional à qualidade de fatos que visa abstrata e concretamente reprimir. È imperativo uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal.

Na jurisprudência tal princípio é aplicado em casos de delitos de pouca relevância. Como é verificado no caso a seguir:

STJ - HABEAS CORPUS: HC 129340 SP 2009/0031624-0

HABEAS CORPUS. FURTO DE DUAS BLUSAS USADAS, AVALIADAS EM CATORZE REAIS. CRIME DE BAGATELA. IRRELEVÂNCIA DOS

ANTECEDENTES DO AGENTE. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ORDEM CONCEDIDA. 1. Se o valor dos bens é mínimo e da ação do réu não resulta lesividade para o patrimônio da vítima, deve ser reconhecido o crime de bagatela, que torna atípica a conduta. 2. A circunstância de registrar o agente antecedentes criminais não impede a aplicação do princípio da insignificância, porque se a conduta é atípica, desnecessária a análise dos atributos pessoais. 3.Ordem concedida para, reconhecido o crime de bagatela,

absolver o paciente.

.

Assim, não é dada a continuidade da ação ao ser levantada a insignificância. Dessa forma, será analisado apartir de que ponto as condutas cocernentes ao ilícito penal de contrabando ou descaminho representam uma lesão ao bem jurídico tutelado. Em quais hipóteses o princípio da insiginificância será utilizado como excludente de ilícitude

O ILÍCITO PENAL DE CONTRABANDO OU DESCAMINHO PREVISTO NO ART. 334 DO CÓDIGO PENAL.

No termos do caput do artigo 334 do Código Penal o ílicito penal de contrabando e descaminho consiste em importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria.  A primeira parte encontra-se caracterizado o contrabando e na segunda parte o crime de descaminho, segundo Greco (p.525, 2011) também conhecido como contrabando impróprio.  Assim, importar e exportar representam o núcleo do contrabando enquanto iludir o de descaminho, sendo o objeto desse, conforme Nucci (p.1112, 2009), o pagamento do direito ou imposto.Trata-se de uma norma penal em branco, esses dois doutrinadores defendem que a proibição deve ser encontrada em outras leis, ou seja para que se conheçam quais mercadorias cuja importação e exportação é proíbida.

O parágrafo 1º do artigo 334 elenca quatro espécies de contrabando e descaminho, ou seja, outros fatos que recebem a mesma pena como punição. A primeira se refere a navegação de cabotagem fora dos casos previstos em lei. A navegação de cabotagem pode ser realizada, como disposto no artigo 2º, inciso IX da Lei nº 9432/47 , entre portos ou pontos do território brasileiro, por via marítima ou esta e as vias navegáveis interiores (hidroviárias), podendo ser realizada apenas por embarcações brasileiras salvo os casos previstos como exceções no artigo 178 parágrafo 3º da Constituição Federal.  A modalidade prevista na alínea b, consiste na prática de fato assimilado, em lei especial, a contrabando ou descaminho. Greco afirma que se  trata de fato previsto pela legislação especial comparado ao contrabando e descaminho. Como por exemplo o Decreto-lei nº 288/67, a Lei nº 4.906/65 e o Decreto-lei nº 399/68 possuem normas complementares do tipo do § 1º, b, do art. 334.

A hipóteses levantadas na alínea c são dispostas da seguinte forma:

 vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no País ou importou fraudulentamente ou que sabe ser produto de introdução clandestina no território nacional ou de importação fraudulenta por parte de outrem.

Dessa forma, só pode realizar tal tipo o agente que se encontre no exercício de atividade industrial ou comercial e pratique uma dessas condutas. Rogério Greco (p. 526, 2011) afirma que o delito deixaria de ser instantâneo com efeitos permanentes e passaria a ser um crime permanente podendo o autor ser preso em flagrante, além de modificar a contagem do prazo prescricional. Expõe também que na segunda parte da alínea c estaremos diante de um caso de receptação.

“Assim, não é a pessoa que, eventualmente, recebe algo de procedência ilícita que responderá pelos delitos do paragráfo 1º deste artigo. Quer-se punir o sujeito que, habitualmente, entrega-se ao comércio (termo que, por si só, implica em habitualidade) desse tipo de mercadoria. Por isso não configuraria uma conduta habitual, pode responder o autor por receptação (art 180, CPC) que é crime instantâneo.” (art. 334, parágrafo 1º alínea c)

O parágrafo 2º diz respeito a um delito de receptação que é especializado pela alínea “d” do parágrafo 1

 º. Assim, Greco também defendee que aplica-se, in casu, o parágrafo 2º a extensão do conceito de atividades comerciais. Ainda em relação ao parágrafo 2º, Nucci (pag.1112, 2009) aborda que houve uma equiparação entre o comerciante regularmente estabelecido com a pessoa que também comercializa as referidas mercadorias embora em contexto limitado ou residencial. Faz referencia a habitualidade do crime devido as expressões “exercício da atividade industrial” ou “exercício da ativiade comercial”, ou seja, para que haja a configuração do tipo penal é necessário a existência de condutas reiteradas no tempo. A causa de aumento de pena é tratada no parágrafo 3º. O dispositivo determina que a pena será aplicada em dobro caso o contrabando ou descaminho for praticado em transporte aéreo. Ainda buscando respaldo na posição de Nucci, esse aumento é necessário devido a dificuldade de se detectar o ingresso ou a saída irregular das mercadorias.

O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NO DIREITO PENAL

O estudo de tal princípio se torna necessário dentro deste artigo uma vez que este princípio tem sido utilizado em caráter decisório em julgados anteriores que tratam da conduta descrita no art. 334 do Código Penal Brasileiro.

De acordo com Diomar Ackel Filho o princípio da insignificância tem origem no direito romano e ficou parado no tempo (apud PAMPLONA, p. 17, 2008). E foi cunhado pela primeira vez por Claus Roxin em 1964, que voltou a repeti-lo em sua obra  Política Criminal y Sistema Del Derecho Penal, partindo do velho adágio latino mínima curat praetor (BITENCOURT, p. 51, 2011).

Dentro do direito penal brasileiro podemos entender que, por meio do princípio da insignificância (ou bagatela), o juiz, à vista da desproporção entre a ação (crime) e a reação (castigo), fará um juízo (valorativo) acerca da tipicidade material da conduta, recusando curso a comportamentos que, embora formalmente típicos (criminalizados), não o sejam materialmente, dada  a sua irrelevância (QUEIROZ, p. 30, 2001).

Com base no que foi dito por Queiroz podemos entender que uma conduta mesmo sendo crime pode não ser criminalizada se nesta couber o uso do princípio da insignificância. Porém ao usar o princípio da insignificância para não punir uma conduta típica, punível e culpável podemos estar frente a um não cumprimento da norma penal. Uma vez que já configurado o crime o agente deveria receber sanção correspondente ao ato praticado. Para que seja aplicada a sanção existem os princípios da taxatividade, proporcionalidade e legalidade.

Partindo de um pensamento crítico sob a análise o uso do princípio da insignificância, podemos entender que ele derruba o uso  dos outros citados anteriormente. Bitencourt defende que se uma conduta típica não possui capacidade lesiva ao bem jurídico de relevância material pode ter sua tipicidade afastada, configurando assim uma atipicidade no caso  concreto. E que essa falta de lesividade ao bem jurídico tutelado deve ser levada em consideração ao grau de intensidade da ação do agente (p. 5, 2011).

Mas o uso dos outros princípios? Uma vez que o juiz deve aplicar o que está em lei, posto que, a proporcionalidade, a taxatividade e  a legalidade necessitam de enunciado normativo para exercer seus poderes de criminalizar e punir determinadas condutas enquanto que o princípio da insignificância se aplica pelo juízo de valor do magistrado.Segundo Nucci nos princípios da:b

Legalidade – não há crime, nem pena sem expressão legal;Taxatividade – o tipo penal incriminador deve ser bem definido e detalhado para não gerar qualquer dúvida quanto ao seu alcance e aplicação; Proporcionalidade – as penas  devem ser proporcionais à gravidade da infração penal (p. 75, 2007).

Podemos afirmar que o princípio mais afetado seria o da proporcionalidade. Pois o legislador determina a pena de acordo com a reprovação social de determinada conduta, por isso cada crime possui uma lei diferente, e o magistrado fazendo uso do princípio da insignificância não pune o agente pela sua conduta argumentando falta de lesividade ao bem jurídico. Mas se não ocorresse essa lesividade o legislador não teria inserido tal bem jurídico como passivo de lesão por meio de condutas de agentes criminosos.

O uso do princípio da insignificância gera, contudo discordância doutrinária, em especial às causas inseridas no artigo 334 do Código Penal Brasileiro, em que os Tribunais optam  pelo uso de tal princípio com base em lei federal que se encontra fora do código em uso. Greco não concorda com o uso do princípio da insignificância sobre os tipos penais com base em outras normas, causando assim a excludente de ilicitude_ (p. 954, 2011).

O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA COMO EXCLUDENTE DE ILICITUDE E UMA ANÁLISE CRÍTICA DA NORMA PELNAL FRENTE A CASOS CONCRETOS

Ao fazer uso do princípio da insignificância, o magistrado chega à excludente de ilicitude. Assim como já foi falado o agente não recebe a devida sanção pela sua conduta delituosa. Para Greco como já foi abordado, o artigo 334 é uma norma penal em branco. E o princípio vem sendo aplicado constantemente por Tribunais aos quais chegam os processos criminais referentes a este artigo.

Nucci afirma que, pode-se aplicar, nesse contexto, o princípio da insignificância. A introdução, no território nacional, de mercadoria proibida, mas em quantidade ínfima, ou  o não pagamento de pequena parcela do imposto devido configuram típicas infrações de bagatela, passíveis de punição fiscal, mas não penal (p. 990, 2007).

Nucci já fala de valores ínfimos o que nos levaria a crer se tratar de valores baixos. Mas não é tão simples assim. Como base os magistrados tem utilizado uma lei especial na valoração do juízo de valor.

Percebe-se portanto, que para efeitos de aplicação do princípio da insignificância aos delitos de contrabando e descaminho, nossos Tribunais Superiores estão levando em conta as disposições contidas no artigo 20 da Lei nº 10.522, de 19  de julho de 2002, que dispõe sobre  o cadastro informativo dos créditos não quitados de órgãos e entidades federais, com a nova redação dada pela Lei nº 11.033/2004 (GRECO, p. 952, 2011).

A lei citada por Greco versa que, “serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais)”.

Com base nesse enunciado normativo que gera a discussão sobre o valor que causa a excludente de ilicitude. Uma vez que tal valor é utilizados pelos tribunais apenas para o conteúdo do artigo 334 do Código Penal. Aos outros ilícitos penais em que valores pecuniários estão envolvidos não há nada que os correlacione. A maior crítica dos  doutrinadores é que quem deixa de pagar os devidos impostos à União sai impune se o valor não ultrapassar o limite de dez mil reais, e quem furta em valores irrisório acaba no sistema prisional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A tutela dos bens jurídicos, necessários ao homem e a sociedade, quando ameaçados ou lesados cabe ao direito penal. O princípio da insignificância é aplicado quando a ameça ou lesão não possuem muita relevância.  Ao realizar a análise do ilícito penal de contrabando ou descaminho com o princípio da insiginificância foi possível verificar que  a excludente de ilícitude está sendo aplicada pelos tribunais superiores conforme  previsto artigo 20 da Lei nº 10.522, um valor correspondente a 10 mil reais. O que vem sendo alvo de crítica para doutrina. Como foi mencionado anteriormente cabe punição penal aos agentes do crime de furtos de valores  bem inferiores e apenas punição fiscal aqueles que praticam contrabando ou descaminho na hipótese do dispositivo da Lei nº 10.5222.

Assim, o princípio da insignificância só pode ser aplicado nas hipóteses que o contrabando ou descaminho tenha ocorrido por não ter atendido a cota limite estipulada em lei. Existindo a vontade de causar dano ao bem jurídico tutelado, porém não de forma significativa. Cabendo assim as sanções administrativas e fiscais, ficando isento do direito penal.

REFERÊNCIAS

 

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas-corpus no 12934-0, da 6a Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial.5ª ed. Niterói: Impetus,2009. v.3.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

RIBEIRO LOPES, Maurício Antônio. Princípio da insignificância no Direito Penal: análise à luz da Lei 9.099/95 – Juizados Especiais Criminais e da jurisprudência atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997. p. 20