SOARES-SILVA, J.

Nos últimos anos vários autores vêm entendendo a questão da identidade e seus diversos multifacetamentos sob o ângulo das relações sociais, ou seja, como construtos que se fazem no discurso. (FAIRCLOUGH, 2001; MOITA LOPES, 2001; 2002; 2003; RAJAGOPALAN, 1998; RUBEN, 1998; são alguns exemplos). As análises que abordam as identidades culturais em sua relação com práticas de linguagem (identidades de gênero, sociais de classe, profissionais, nacionais) partem do pressuposto teórico de que as identidades são construções social e culturalmente situadas, em oposição a uma suposta essência subjetiva que produziria a identidade de cada indivíduo. Como conseqüência dessa construção social, entende-se que as identidades são formadas na relação imprescindível e necessária com a alteridade. É também corrente nessas análises, focalizar os sujeitos como identidades fragmentadas e multiformes, em constante mobilidade num mundo em que as referências são cada vez mais cambiantes e fragmentadas e no qual os modelos fixos e perenes deixaram de existir. Assim as identidades se apresentam em um quadro de transitoriedade e fragmentação.

Levando em conta essas concepções, me considero, além de diversas outras múltiplas identidades, homem e branco. Homem não porque sou dotado de características cromossomicamente indeléveis que me encaixam em uma taxonomia masculina, mas por uma série de fatores embebidos em relações sociais e construções discursivas (e por isso identitárias) que me nomeiam como homem. Um desses fatores é a alteridade como espaço da marcação da diferença, ou seja, o "sou homem" só existe porque há o contraste com o "não sou homem" ou com o "sou mulher" (ao usar homem e mulher aqui não pretendo suscitar discussões sobre as significações e a abrangência dos conceitos imbricados nesses termos).

Na perspectiva socioconstrucionista do discurso e das identidades sociais, segundo Fairclough (2001) e Moita Lopes (2003), a identidade que cada pessoa possui é entendida como uma construção social que se dá nos e pelos discursos, os quais podem nos posicionar, por exemplo, como mulher, como negro, como índia ou como professor; "as pessoas são em grande medida posicionadas em identidades de acordo com sua vinculação dentro de um discurso" (SHOTTER & GERGEN apudMOITA LOPES, 2003: 24). Também me nomeio como branco não por possuir uma pigmentação de pele aclareada, pois depois de um dia exposto ao sol posso estar diferente nesse aspecto; mas branco, por estar inserido em um conjunto de práticas sociais que me privaram de sofrer qualquer tipo de preconceito em relação à minha cor. Considero-me, portanto, produto de uma branconormatividade que me concedeu uma série de oportunidades na vida e que a maioria das pessoas, discursivamente construídas como negras, não conseguiram.

Dessa forma, a interação social é vista como responsável pela constituição da sociedade, que por sua vez é construída através de um infindável número de discursos que se entrecruzam. Para Gee (1990), "cada pessoa é membro de muitos discursos e cada discurso representa uma de nossas múltiplas identidades" (p.99). Sendo construtos de natureza social, evidentemente, dependendo dos interesses políticos da ordem social dominante, as identidades sociais tanto podem ser suprimidas quanto promovidas (Kitzinger apud Moita Lopes, 2003: 13). Assim, quando estou na sala de aula ensinando língua inglesa, a minha identidade de professor é evocada e passo a operar o poder de um determinado lugar marcado e constituído para essa especificidade, um lugar que me concede esse poder. Ao entrar na sala da graduação, agora como aluno, e começar a ouvir minha professora, minha identidade de professor é suprimida enquanto a de aluno é emersa, passo a operar o poder de um outro lugar, de uma outra forma.

Se pensarmos que o caráter multifacetado das identidades nos possibilita a vinculação a vários discursos e também contra-discursos aos discursos dominantes, pensamos na idéia da resistência, entendendo que a resistência também opera o poder.Para Foucault, "resistência é um elemento das relações estratégicas nas quais se constitui o poder. A resistência se apóia, na realidade, sobre a situação à qual combate." (1984, p.28) Pensando sobre esse conceito de resistência, me lembro de uma recente discussão que tive na sala de aula na graduação com uma professora, onde falávamos sobre o caso Raposa Terra do Sol. Ao pergunta-la sobre as razões apresentadas para a não demarcação contínuas das terras ela disse que aqueles índios já fora aculturados porque trabalham como vaqueiros e manuseiam máquinas tão bem quantos os moradores não-índios daquela região. Quando comentei que o fato de fazerem isso não os faz menos-índios ou não-índios, pois é uma questão de sobrevivência e subsistência e que absorver novas culturas, naquele contexto, não significa desindianizar-se e nem os tira o direito constitucional às terras, ela disse: "se ao menos fossem índios mesmo, com flechas e tal".

É nesse sentido que se encaixa perfeitamente o conceito de políticas de identidade, de que fala Woodward (2000, p. 34), "afirmando a identidade cultural das pessoas que pertencem a um determinado grupo oprimido ou marginalizado". Tais políticas se baseiam no recrutamento de sujeitos por meio do processo de formação de identidades e se torna importante para a mobilização política. Esse processo se dá tanto pelo apelo às identidades hegemônicas quanto pela resistência dos movimentos sociais, ao colocar em jogo identidades que ocupam espaços à margem da sociedade.

A identidade conformada pelos movimentos sociais é essencializada na "verdade da tradição" e nas raízes da história, fazendo um apelo à realidade de um passado possivelmente reprimido e obscurecido, no qual a identidade que vem à tona no presente é revelada como um produto da história. Historicizam também a experiência, enfatizando as diferenças entre grupos marginalizados como uma alternativa à universalidade da opressão. Considera-se aqui, portanto, a política de identidade a partir dos movimentos sociais. "Para aquele que ocupa a posição dominante, a unidade basta. (...) Aquele que está na posição de dominado é que precisa ser sensível à pluralidade, à multiplicidade, para que haja possibilidade de deslocamentos." (ORLANDI, 2003, p.18)

Pensando na produção e compreensão da escrita como um conjunto de práticas sociais participantes de um processo de construção identitárias e formação discursiva, além de ser definitiva nas afirmações das políticas de identidade, entendemos que a questão do letramento não deve ser entendida como um conjunto de habilidades a serem aprendidas pelas pessoas, mas como um conjunto de práticas sociais, inferidas de eventos que são mediados por textos. A noção de eventos salienta a natureza situada do letramento, indicando, por sua vez, que o letramento não é o mesmo em todos os contextos. Há, nesse sentido, diferentes letramentos (no plural), cujos sentidos podem estar associados a diferentes domínios de atividade (casa, escola, lugar de trabalho, igreja, rua, lojas, órgãos oficiais, etc.), a aspectos particulares da vida cultural (letramento acadêmico, letramento no lugar de trabalho), a diferentes sistemas simbólicos (letramento eletrônico ou virtual, letramento musical, cinematográfico, etc.). Sendo de natureza localizada, o letramento, conforme define Hamilton e Barton (1993:3), "é basicamente o que as pessoas fazem; é uma atividade localizada no espaço."

Portanto a escrita de um texto é feita por alguém que está falando de um determinado lugar localizado em um contexto específico. Dessa forma um texto escrito representa mais do que a manifestação de habilidades ou domínio lingüístico que um autor possa ter. Ele depende de informações determinadas pelas práticas sociais e culturais nas quais o escrevente está envolvido. Para Fairclough, "os textos como elementos dos eventos sociais (...) causam efeitos – isto é, eles causam mudanças" (2003, p.8). Assim quando na infância eu escrevia as cartas para Jesus pedindo presentes (meu pai dizia que papai Noel era coisa do diabo), eu estava escrevendo de um lugar marcado, específico, a minha identidade daquele momento estava imbricada em um discurso regido por uma relação de poder através da minha escrita.

Ao falar de escrita trata-se, então, não de uma entidade autônoma e independente de fatores externos, mas de uma atividade situada sócio-historicamente (Bronckart, 1999), além de ser determinada, também, por um contexto cognitivo. Segundo Barton (1998: 7) "essas práticas de escrita padronizadas por regras sociais que regulam o uso e distribuição de textos, prescrevendo quem pode produzi-los e quem tem acesso a eles."

Referências

BARTON, David. Preface: literacy events and literacy practices. In: HAMILTON, M [et al]. Worlds of Literacy. Clevedon: Multilingual Matters Ltda, 1998.

BRONCKART, J. P. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. Trad. Anna Rachel Machado e Péricles Cunha. São Paulo: EDUC, 1999.

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: UnB, 2001.

___________________.Analysing discourse. Textual analysis for social research . Nova York: Routledge, 2003.

FOUCAULT , Michel, an Interview: Sex, Power and the Politics of Identity; entrevista com B. Gallagher e A. Wilson, Toronto, junho de 1982; The Advocate, n. 400, 7 de agosto de 1984, pp. 26-30 e 58. Esta entrevista estava destinada à revista canadense Body Politic. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento. 

GEE, J.P. Identity as an analytic lens for research in education. Review of Research in Education. v.25, p.99-125.Bristol: The Falmer Press, 1990.

HAMILTON, M.; BARTON, D.; IVANIC, R. Worlds of Literacy. Clevedon: Multilingual Matters Ltda, 1993.

MOITA LOPES, Luiz Paulo da.Práticas narrativas como espaço de construção das identidades sociais: uma abordagem socioconstrucionista. In: RIBEIRO, B.; LIMA, C.; DANTAS, M. T. (Org.). Narrativa, identidade e clínica. Rio de Janeiro: Ed. IPUB-CUCA, 2001.

__________________________. Identidades fragmentadas. Campinas: Mercado de Letras, 2002.

___________________________(org.). Discurso de identidades: discurso como espaço de construção de gênero, sexualidade, raça, idade e profissão na escola e na família.Campinas: Mercado das Letras, 2003.

ORLANDI, E. P. Colonização globalização, tradução e autoria científica. In:GUIMARÃES, E. Produção e circulação do conhecimento: Política, ciência, divulgação. Campinas: Pontes, 2003.

RAJAGOPALAN, Kanavillil. O conceito de identidade em lingüística: é chegada a hora para uma reconsideração radical? In: SIGNORINI, Inês. (org.) Língua(gem) e identidade. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1998.

RUBEN, G. R. Teoria da identidade: uma crítica in: Tempo Brasileiro, Brasília: Universidade de Brasília, 1998.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.