1. Introdução

Desde sua primeira publicação em 1966 o Traité des objets Musicaux de Pierre Schaeffer tem sido uma obra referencial para a composição e para o estudo da música contemporânea, principalmente as que se enquadram na vertente acusmática. Dentro desse panorama, o Traité também se tornou obra teórica central para o estudo e desenvolvimento de estéticas musicais que colocam a percepção como fundamento para a construção de técnicas e procedimentos composicionais. Diversos autores deram seguimento ao trabalho de Schaeffer no intuito de completar e expandir sua perspectiva de música contemporânea, dos quais podemos destacar Simon Emmerson (1987), François Bayle (1993) e Michel Chion (1994). É a noção de acusmática que possibilita a colocação da percepção (écoute para Schaeffer) como foco central para a atividade composicional. Essa transformação de foco da dupla fazer/ouvir para um ouvir/fazer, entendendo o fazer como o próprio processo composicional, é decorrente de um amplo estudo e críticas às posturas tradicionais da atividade musical ocidental.

Schaeffer parte de uma análise, breve, porém profunda da situação da música que lhe era contemporânea, esboçando alguns problemas a serem resolvidos e críticas a posturas composicionais dominantes de sua época. Aponta para as transformações que a musicologia deveria enfrentar, decorrentes das mudanças das noções de escala de alturas como base para a construção musical; o crescente desenvolvimento de formas de produção sonora, advindas dos equipamentos eletrônicos e dos instrumentos não ocidentais; os problemas que a crítica musical enfrentava por não apresentar nem conteúdo nem terminologia apropriada para a explicação do fenômeno musical.

O autor afirma que o surgimento da postura estruturalista em música, do início do século XX, foi uma reação a esses "impasses" da musicologia, já que fica justificada, em meio a tal crise, o apoio sistemático em parâmetros "seguros" da física. Dessa forma, Schaeffer refere-se à perspectiva estruturalista como geradora de uma música a priori, por esta colocar a construção e manipulação abstrata de símbolos musicais, que apresentam uma analogia com parâmetros acústicos, como fato primeiro em relação à escuta. Criticando essa postura que não toma a experiência do material sonoro que ocorre na escuta, Schaeffer sugere uma alternativa que inverta a ordem da conduta composicional estruturalista e a denomina de música concreta e posteriormente de música experimental.

 

2. Les Quatre Écoutes

O autor lança-se então à uma descrição do funcionamento da escuta baseando-se em situações e ações específicas de um ouvinte hipotético. Divide a escuta em quatro tipos funcionais:

1.Écouter: É disponibilizar o ouvido, interessar-se por. Eu me dirijo ativamente a alguém ou a alguma coisa que me é descrita ou assinalada por um som. (Schaeffer 1966, p. 104)

2.Ouïr: É perceber pelo ouvido. Por oposição a escutar, que corresponde à atitude mais ativa, aquilo que ouço é aquilo que me é dado na percepção. (Schaeffer 1966, p. 104)

3.entendre: É o estágio da escuta no qual ocorrem as qualificações do ouvir, dependendo de uma intenção. Segundo Schaeffer, a origem etimológica da palavra aponta que entender é "ter uma `intenção´. Aquilo que entendo, aquilo que me é manifesto, é função dessa intenção." (Schaeffer 1966, p. 104).

4.Comprendre: Realizado a partir da qualificação do entender, é o ato de perceber um sentido onde o som torna-se um signo que possui relações com um código cultural. (Schaeffer, 1966, p. 104)

O quadro de funcionalidades da escuta é a base sobre a qual o autor fundará toda a sua investigação sobre a atividade musical para a construção de uma vertente acusmática e experimental, ao lidar com o fenômeno sonoro. É a partir dele que Schaeffer realiza uma análise das diferentes situações de escuta decorrentes de diferentes situações humanas.Posteriormente, propõe uma descrição do fenômeno musical para além daquela fornecida pela física acústica. Para que tal tarefa seja exeqüível, o autor recorre à noção de redução fenomenológica de Edmund Hussler. Tal noção será de suma importância para a construção do seu objeto sonoro e este por sua vez será a base para o desenvolvimento de seu solfejo.

Além da divisão da escuta em quatro funcionalidades, Schaeffer organizará posteriormente formas diferentes de agrupar tais funcionalidades. Uma subdivisão que apresenta relevância para este texto é a organização do quadro de funcionalidades da escuta em dois pólos opóstos: Banale/Praticienne. Na abordagem crítica de Windsor (1995), para a análise de música acusmática, encontramos corroboração à relevância da descrição desses dois modos de percepção tal qual realizada por Schaeffer, de forma a opor dois pólos que são responsáveis pela caracterização de uma escuta de dia-a-dia (banalle) e de uma escuta especializada (praticienne) que remete à um sistema simbólico.

This is not to suggest that Schaeffer's ideas per se have no relevance to the analyst. His discussions of the relationship of listening to culture and nature, his perspicacious accounts of the problems inherent within traditional views of listening and musical discourse (Schaeffer, 1966) have been instrumental in defining the challenges posed by the acousmatic and have been instrumental in shaping this thesis. (Windsor, 1995, p. 34)

A descrição das funcionalidades da escuta organizada nesses dois pólos será de suma importância para as reformulações que apresentamos no presente artigo. Porém para chegarmos aos resultados pretendidos realizaremos uma revisão no quadro das quatre écoutes para posteriormente retornarmos a esse ponto.

A delimitação schaefferiana das quatre écoutes apresenta algumas inconsistências decorrentes de redundâncias conceituas. Na definição de écouter, que descreve uma escuta "mais ativa" que a presente na definição de ouïr, não fica claro quão mais ativo deve ser o comportamento para ser caracterizado como écouter. Schaeffer considera que tal atividade de um suposto sujeito, própria do escutar, centra-se na busca da fonte sonora (referencialidade), o que não ocorre no ouvir. O problema aqui apontado está na tentativa de separar as funções que ocorrem no escutar e no ouvir. Para Schaeffer o ouvir seria a atividade realizada por um ouvido que recebe estímulos de um mundo dado e que não realiza nenhum tipo ação sobre eles. Aqui podemos apontar ao menos três problemas para a descrição da percepção, a saber: a) um ouvir que é incessante; b) um mundo dado antes da experiência do mundo; c) um sujeito suposto antes da experiência[1].

a) para o autor (Schaeffer 1966, p. 104)o sujeito jamais cessa de ouvir e encontra-se em um mundo que jamais cessa de estar ai. Em uma experiência de dia-a-dia estamos constantemente realizando escolhas de hábitos de audição que resultam em um cessar de ouvir algo para ouvir outro algo. A psicologia ecológica de Gibson e Baeteson, a fenomenologia pontyana e a ciência cognitiva atuacionista de Maturana e Varela, mesmo com suas diferenças de abordagens, oferecem uma explicação mais adequada para tal conduta. De acordo com tais áreas de estudos, é necessário a substituição de uma abordagem da percepção como um receptor[2] de sensações, que conduz os estímulos ao processamento interno, para as abordagens: ecológica, fenomenológica e autopoiética, que apresentam a noção de sistemas perceptivos, que se fazem no seu viver, isto é, na sua história de acoplamentos estruturais com o meio. Tais sistemas caracterizam-se por uma ação no meio em busca de um acoplamento adequado com a situação vivida. No conhecido exemplo do coktail-party phenomenon (Gibson 1966, p. 84), o indivíduo orienta sua atenção e passa a ouvir especificamente aquilo que quer. O sistema auditivo se auto-ajusta através do tensionamento do músculo estapédico que regula o padrão de tensão da membrana timpânica de acordo com o controle do sistema nervoso central, para melhor detectar o padrão sonoro desejado (Guynton e Hall, 1997). Se a membrana timpânica está ajustada para ressoar a um tipo de padrão sonoro, não irá ressoar com outros padrões, resultando numa seleção e, portanto, na interrupção da audição de tais padrões sonoros, os quais podem estar sendo ouvidos por outras pessoas com outros padrões de comportamento auditivo.

b) para que a descrição de Schaeffer de um ouvir passivo, que capta o mundo ininterruptamente, possa equivaler ao real, é necessário conceber um mundo existente independente da experiência de existência desse mundo. Essa noção de mundo dado é decorrente de um posicionamento dualista cartesiano sujeito/objeto que tem como correlatos outros dualismos importantes na filosofia: mente/corpo e natural/cultural. A fenomenologia desde Hussler e inclusive desde Hegel em sua Fenomenologia do Espírito tem sido marcada por uma orientação para a eliminação de tais dualismos.

c) a crença em um mundo dado, anterior à experiência resulta também em uma crença em um sujeito hipotético independente da experiência. A circunscrição da noção de sujeito tem sido um dos problemas centrais na Filosofia da Mente contemporânea. Estão ligados a tal circunscrição conceitos como consciência, psiquê, self, mente, espírito, alma, etc. Desde seu nascimento, a filosofia se ocupa com a descrição de tais conceitos sem chegar a uma resposta conclusiva. Há uma marca cartesiana[3] muito forte na filosofia moderna que apresenta o sujeito como algo desligado de seu corpo. Na Fenomenologia da Percepção, M-Ponty supera esse dualismo apresentando uma descrição da mente (psique) e corpo como entidades não separáveis:

O homem concretamente considerado não é um psiquismo unido a um organismo, mas este vai-e-vem da existência que ora se deixa ser corporal e ora se dirige aos atos pessoais. Os motivos psicológicos e as ocasiões temporais podem-se entrelaçar porque não há um só movimento em um corpo vivo que seja um caso absoluto às intenções psíquicas, nenhum só ato psíquico que não tenha encontrado seu germe ou seu esboço geral nas disposições fisiológicas. (M-Ponty, 1994,p. 130).

M-Ponty propõe a noção de um sujeito incorporado e situado. É a mesma noção proposta por Varela et al., Maturana e Haselager (2003) de um sujeito corpóreo que se faz através de sua ação no mundo. A noção de sujeito presente no trabalho de Schaeffer é filiada à perspectiva hussleriana de sujeito transcendente, que é oposta a noção de sujeito encarnado e situado no espaço e no tempo. (cf. M- Ponty, 1990, p. 159).

Resta-nos agora abordar os conceitos de entendre e comprendre. O entendre segundo Schaeffer caracteriza-se por uma ação intencional na escuta. O problema do conceito de entender centra-se no conceito de intencionalidade. O estudo de tal noção é central na filosofia, especificamente na Filosofia da Mente. São referenciais nesta área de estudos os trabalhos de Tomás de Aquino, Bretano, Dennet, Dretske, Fodor, Searle, Putnam, entre outros. Não encontra-se no escopo deste artigo abordar especificamente problemas com a noção de intencionalidade, o que é tarefa para futuros trabalhos. Ocorre que Schaeffer encontra-se numa tradição dualista cartesiana na utilização de tal conceito, incorrendo com isso em noções problemáticas tanto para a explicação da percepção quanto para a própria demarcação de organismo, mente e sujeito conforme podemos na verificar na citação abaixo:

Brentano argued both (A) that this reality-neutral feature of intentionality makes it the distinguishing mark of the mental, in that all and only mental things are intentional in that sense, and (B) that purely physical or material objects cannot have intentional properties—for how could any purely physical entity or state have the property of being "directed upon" or about a nonexistent state of affairs? (A) and (B) together imply the Cartesian dualist thesis that no mental thing is also physical. And each is controversial in its own right.Thesis (A) is controversial because it is hardly obvious that every mental state has a possibly nonexistent intentional object; bodily sensations such as itches and tickles do not seem to, and free-floating anxiety is notorious in this regard. (...)Dualism and immaterialism about the mind are unpopular both in philosophy and in psychology—certainly cognitive psychologists do not suppose that the computational and representational states they posit are states of anything but the brain—so we have strong motives for rejecting thesis (B) and finding a way of explaining how a purely physical organism can have intentional states.(The MIT encyclopedia of the cognitive sciences, 1999, p. 414)

Na abordagem que propomos neste artigo apresentaremos uma explicação para a percepção que não necessita deste conceito de intencionalidade por utilizar uma perspectiva não dualista-cartesiana.

Em relação ao comprendre, Shaeffer o descreve utilizando noções próprias da tradição do paradigma do processamento de informação para a explicação da percepção. Para o autor, este estágio envolve a organização de significações que foram selecionadas intencionalmente no entendre. Como Schaeffer coloca, o suposto sujeito é autor de deduções, abstrações, comparações e relações de informações de fontes e naturezas diversas (1966, p. 110). As atividades realizadas no entender e no compreender são próprias de um sujeito metafísico, cartesiano e independente da experiência incorporada e situada no mundo.

Conforme exposto no início desta seção, apresentaremos uma alternativa explicativa para as funcionalidades da escuta de Schaeffer, porém para que isso seja possível buscaremos na fenomenologia pontyana e no atuacionismo de Varela, fundamentos filosóficos mais adequados para a descrição da percepção.

 

3. Um novo paradigma para o estudo da percepção

Os estudos feitos sobre percepção em diferentes áreas como a biologia (fisiologia), ou a psicologia, ou ainda a filosofia vêm recebendo contribuições ao longo dos últimos 50 anos que apontam o desenvolvimento de um novo paradigma, distinto daquele denominado por processamento de informação originário da concepção dualista-cartesiana de mundo. Com intenção de apresentar brevemente alternativas explicativas para a percepção auditiva a presente seção trata da noção de percepção para dois autores que podem ser considerados exemplares na busca por alternativas às propostas dualista-cartesianas. São eles Merleau-Ponty e Francisco Varela.

3.1. A experiência do corpo no mundo

A perspectiva apresentada na Fenomenologia da Percepção permite escapar de encruzilhadas conceituais dualistas, sobretudo por retomar a experiência como objeto central de seu estudo e colocá-la como fundamento ontológico de toda e qualquer descrição sobre ela, como afirma o prefácio:

Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, (...), precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda. A ciência não tem e não terá jamais o mesmo sentido de ser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela é uma determinação ou uma explicação dele. (Merleau-Ponty, 1996, p 3)

 

Ao retomar a experiência como um retorno ao fenômeno, antes da explicação desse fenômeno, Merleau-Ponty critica Descartes por colocar uma representação do mundo no lugar do próprio mundo vivido, e apontar para tal representação como fundamento de toda atividade cognitiva e mesmo perceptiva. Para Merleau-Ponty (1996, p. 7):

A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles. O mundo não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas.

Tal maneira de entender percepção e mundo é uma grande novidade ainda hoje, tanto para a tradição filosófica quanto para a ciência cognitiva, ou psicologia e neurociência. As conseqüências dessa amostra do pensamento de Merleau-Ponty podem ser destrutivas para teorias que propõe seus fundamentos do conhecer em uma metafísica dualista cartesiana, que tendem a deixar de fora a própria experiência cotidiana do conhecer e do perceber.

M-Ponty inicia sua Fenomenologia pela descrição do papel do corpo nas atividades perceptivas. Criticando o dualismo-cartesiano o autor busca alternativas à perspectiva do corpo-objeto da fisiologia e da psicologia clássica. Inicialmente a noção de corpo fora da perspectiva dualista possibilita M-Ponty dispensar a noção de representação mental e explicar a percepção como em conjunto com a ação (movimento) formando um sistema que se modifica como um todo. Continuemos a citação:

Se, por exemplo, percebo que não querem obedecer-me e em conseqüência modifico meu gesto, não há ali dois atos de consciência distintos, mas vejo a má vontade de meu parceiro e meu gesto de impaciência nasce dessa situação, sem nenhum pensamento interposto. (M-Ponty, 1996, p.160)

Nesse sentido é o corpo no mundo que dá condições de comportamentos considerados inteligentes. M-Ponty fala especificamente do hábito, mas como não estando nem no pensamento, ou seja, como algum tipo de representação mental, nem no corpo-objeto, mas no corpo como mediador de um mundo. Através do exemplo específico de um organista que vai tocar em um órgão que não conhece, o autor explica de forma não mecanicista o que ocorre. M-Ponty (1996, p. 201) afirma que o tal organista durante o curto ensaio que precede o concerto, (...) não se comporta como o fazemos quando queremos armar um plano. Mas ao contrário o organista usa todo tempo que tem para experimentar os pedais, as teclas, utilizar com seu corpo o instrumento, vesti-se dele. Segundo o próprio autor o organista:

(...) avalia o instrumento com seu corpo, incorpora a si as dimensões e direções, instala-se no órgão como nós nos instalamos em uma casa. O que ele aprende para cada tecla e para cada pedal não são posições no espaço objetivo e não é à sua memória que ele os confia. Entre a essência musical da peça, tal como ela está indicada na partitura, e a música que efetivamente ressoa em torno do órgão estabelece uma relação tão direta que o corpo do organista e o instrumento são apenas o lugar de passagem dessa relação. (M-Ponty 1996, p. 20 e 201).

O corpo tem papel fundamental para a explicação fenomenológica da percepção ele é o próprio espaço expressivo, e é pela experiência do corpo no mundo que eu alcanço o mundo. E na segunda parte da Fenomenologia M.-Ponty aborda o mundo percebido, não como um mundo objetivo, existente independente de um percebedor, como foi posto pela tradição dualista. Nem como um mundo construído em mim como representação de um mundo objetivo fora de mim. Mas como um mundo vivido, experimentado. Segundo o próprio autor, pela experiência perceptiva me afundo na espessura do mundo. (M.-Ponty, 1996, p. 275.). Estando então 'afundado' no mundo, não necessito copiá-lo dentro de mim. Isso não quer dizer que a fenomenologia negue a ocorrência de atividade neuronal, por exemplo. O que ocorre é que com a fenomenologia há uma orientação para que o foco do estudo da percepção esteja na experiência perceptiva, e não em supostas causas ou conseqüências. Em outras palavras, a orientação dualista direciona o estudo das atividades perceptivas como se fossem ou conseqüências ou causas das atividades neuronais (que seriam as próprias representações mentais), e a fenomenologia aponta para a necessidade de se focalizar a experiência de um corpo em um mundo se a intenção é estudar a percepção.

Com isso M.-Ponty apresenta uma definição de percepção completamente diferente daquela trazida pelo processamento de informação. Entendendo o mundo, as coisas como correlativos de meu corpo, M.-Ponty (1996, p.429) afirma que a coisa nunca pode ser separada de alguém que a perceba, nunca pode ser efetivamente em si, porque suas articulações são as mesmas de nossa existência. Nesse caminho não faz sentido a noção de um sujeito que processe as informações recebidas de um mundo dado de antemão. Para a fenomenologia não há esse mundo dado antes da experiência, ou nas palavras do autor: o que é dado não é somente a coisa, mas a experiência da coisa (...). (M.-Ponty, 1996, p.436). Também esse sujeito não existe desligado do mundo, M.-Ponty é muito claro e direto ao afirmar que:

O mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que não é senão um projeto do mundo, e o sujeito é inseparável do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta. (M-Ponty, 1996, p.576)

Assim, não há como argumentar em favor da percepção e da significação que ocorre na percepção, como reelaboração construída por um sujeito que opera interpretando um mundo que lhe é estranho e externo. Mas abre-se a perspectiva para entender a percepção como certa maneira de agir no mundo, certa maneira de ser no mundo. Tal perspectiva será desenvolvida também por outros autores além de M.-Ponty, como Varela, por exemplo, que no início da década de 90 mostra-se comprometido com uma perspectiva que valoriza a experiência para a explicação dela mesma. Há diversos outros autores que desenvolvem pesquisas acerca de percepção e cognição e que vêm engrossando as fileiras de um paradigma não dualista-cartesiano. Escolhemos abordar o trabalho de Varela por entender que ele acaba condensando todo um conjunto de esforços que se desenvolve sob um nome comum de ciência cognitiva e dialoga diretamente com a filosofia da mente.

3.2 O conhecimento faz o mundo, ou, o mundo e eu somos feitos na experiência.

Também é à tradição dualista e representacionista cartesiana que se encaminham as críticas de Varela, Thompson e Rosh (2003, p. 150) quando falam de um tipo de ansiedade cartesiana vivida com as questões sobre os fundamentos objetivos do mundo ou do sujeito que conhece o mundo: Ao tratar a mente e o mundo como pólos opostos – o subjetivo e o objetivo –, a ansiedade cartesiana oscila indefinidamente entre os dois na busca de uma fundação. De acordo com os autores, a postura dualista-cartesiana gera ansiedade na medida em que tais fundamentos objetivos (independentes da experiência) para o mundo e para a mente não são alcançados suficientemente. Tal ansiedade é ainda geradora de niilismo conforme afirmam na seqüência (Varela, Thompson e Rosh, 2003, p. 152): (...) nossa ganância por um alicerce, seja ele interno ou externo, é a origem profunda de frustração e ansiedade. A concepção de cognição como um tipo de representação de um mundo dado, construída por uma mente é que temos apontado e criticado naquilo que chamamos de adesão ao paradigma dualista-cartesiano.

Além da preocupação crítica Varela, Thompson e Rosh se incubem da tarefa de descrever cognição de uma nova maneira, não dualista e que leve em conta, sobretudo o conhecimento na experiência cotidiana do viver. Eles descrevem a cognição através da noção de enacção[4] ou atuação[5] , sempre como cognição corporificada e ação situada. Nesse sentido apontam uma nova maneira de descrever atividades perceptivas, como a discriminação de cores, por exemplo:

Vimos que as cores não estão "lá fora", independentes de nossas capacidades perceptivas e cognitivas. Vimos também que as cores não estão "aqui dentro", independentes do mundo biológico e cultural à nossa volta. Contrariamente à visão objetivista, as categorias de cores são experienciais; contrariamente à visão subjetivista, as categorias de cores pertencem ao nosso mundo biológico e cultural. (Varela, Thompson e Rosh, 2003, p. 176)

Colocando as coisas dessa maneira, os autores apontam um caminho contrário ao dualismo, e com isso a possibilidade de evitar as conseqüências problemáticas de tal opção teórica. A abordagem atuacionista que vem sendo desenvolvida por mais de dez anos no seio da ciência cognitiva e da filosofia da mente tem demonstrado importantes frutos quando aplicadas por áreas de estudo tão diferentes como as artes, a lingüística, ou a robótica evolucionária.

Os autores propõem a noção de percepção como ação perceptivamente orientada, e afirmam também que as estruturas cognitivas emergem dos padrões sensório-motores recorrentes que possibilitam a ação ser perceptivamente orientada. (Varela, Thompson e Rosh, 2003, p. 177). Isso é a própria definição da abordagem atuacionista para os autores citados. Para essa abordagem do estudo da percepção não é importante, como no caso do paradigma dualista-cartesiano, determinar como um mundo independente de um observador pode ser recuperado, mas sim determinar os princípios comuns entre os sistemas sensorial e motor que explicam como a ação pode ser orientada em um mundo dependente de um observador. (Varela, Thompson e Rosh, 2003, p. 177). Em trechos subseqüentes os próprios autores reconhecem sua filiação à tradição fenomenológica de M.-Ponty e trazem claramente sua concepção de percepção não só como parte (ou embutida) de um mundo, mas como colaboradora com a atuação desse mesmo mundo.

Aí está, de forma resumida, um conjunto de argumentações destacando possibilidades explicativas da percepção e cognição no contexto da ciência cognitiva e filosofia da mente. Acabamos de apresentar a abordagem denominada atuacionista de Varela, Thompson e Rosh, que se desenvolve a partir de e concepções fenomenológicas de M.-Ponty. Tais abordagens para o estudo da percepção (de M.-Ponty e Varela, entre outros) apontam para uma alternativa no contexto das explicações sobre percepção. Elas não concebem nem um sujeito absoluto que existe e age separado de um mundo (que por sua vez também existe e age independente do sujeito), nem um mundo objetivo, com coisas que existem independentes de algum percebedor que as possa distinguir. Concebem então um percebedor e um mundo que se fazem enquanto estão atuando acoplados estruturalmente mantendo sua organização. Nesse sentido foi o título dessa seção afirmando que o conhecer é atuar, viver, possuir uma história de acoplamento estrutural com o meio. E perceber é a própria ação no mundo, que nunca existe sem orientação perceptiva, e não com representações ou orientações para um mundo externo.

Um outro autor bastante importante para a pesquisa sobre cognição e percepção, H. Maturana, que não será aprofundado no presente texto por uma questão do recorte momentâneo, tem uma citação muito rica para concluir a presente seção. Com ela Maturana amplia a noção de percepção, saí da perspectiva do per-capere (literalmente: obtido por captação) e entende percepção como o nome que um observador atribui a uma conduta específica, ou um mundo de ações. Nas palavras do autor:

O mundo cognitivo que vivemos, através da percepção, se assemelha a isso: produzimos um mundo de distinções através de mudanças de estados que experimentamos enquanto conservamos nosso acoplamento estrutural com os diferentes meios nos quais estamos imersos ao longo de nossas vidas, e, então, usando nossas mudanças de estado como distinções recorrentes em um domínio de coordenações de coordenações de condutas consensuais (linguagem), produzimos um mundo de objetos como coordenações de ações com as quais descrevemos nossas coordenações de ações. (Maturana, 1997/2001, p. 103).

 

4. Les Quatre Écoutes como hábitos de escuta

Após esta apresentação das propostas de M-Ponty e Varela, estamos aptos a desenvolver as críticas e alternativas explicativas esboçadas na segunda seção.

Conforme citamos acima, apontamos como relevante para nosso estudo a catagorização schaefferiana das funcionalidades da escuta como banalle e praticienne. Tal organização pode ser relacionada com aquela descrita na teoria da percepção direta de Gibson (1966 e 1979).

Segundo Michaels e Carello (1981), todas as teorias que estudam a percepção partem do pressuposto de que o comportamento dos animais demonstra o quanto conhecem seu meio-ambiente. Porém, existe uma diferença em como cada teoria explica esse tipo de conhecimento. Essa diferença, segundo as autoras, divide os estudos sobre percepção em Teorias da Percepção Indiretas (uso de representações mentais) e Teoria da Percepção Direta.

Gibson e seus seguidores adotaram uma perspectiva Ecológica ao afirmar que perceber é um processo que se dá num sistema mutuamente informacional formado por animal e meio ambiente, e não somente no animal tal como ocorre com a percepção Indireta. Outro ponto crucial que diferencia esses dois blocos que estudam a percepção é que a Teoria da Percepção Direta não concorda com o uso de memórias e representações mentais, ou seja, não há mediação na atividade perceptual, por isso ser denominada como uma teoria da Percepção Direta, ao contrário das teorias da Percepção Indireta que explicam os processos perceptuais com o uso da mediação[6].

Para explicar a atividade de acoplamento estrutural entre organismo e meio na experiência sonoro-musical, Oliveira & Oliveira 2003 utilizam-se de noções advindas da Teoria da Percepção Direta de Gibson:

The sonic phenomenon is result of a mechanic event generated by the movement of any body composed with some elastic material, or a simulation of it in a computerized environment. This event, in all case, is always embedded in a specific situation, with a specific characteristics deriving of the relation between the perceiver and his environment. (Oliveira & Oliveira, 2003. p. 1)

Como pode-se notar, a percepção quando descrita como o acoplamento estrutural entre organismo e meio, elimina a noção de representação da explicação da atividade perceptiva. Essa maneira de abordar a percepção como um ciclo de percepção-ação é o que Gibson denomina como percepção direta (Gibson, 1979). De acordo com tal teoria, Gibson categoriza a percepção em dois tipos: primeira e segunda mão. Naquilo que Gibson denomina por percepção de primeira mão encontra-se um tipo de ação que é caracterizada pela imediatidade. O organismo percebe o mundo e age sem que tal ação envolva aquilo que se caracterize por um planejamento anterior (representação mental). Como exemplo desse tipo de ação, podemos tomar o caso de alguém que caminha em um terreno acidentado. No seu caminhar ele desvia dos acidentes e procura um caminho estável para que seu andar possa ocorrer. No entanto ao visualizar um buraco, por exemplo, nosso caminhante não tem tempo de planejar que tipo de posição de perna, de pé, enfim, ou de corpo inteiro, ele irá tomar. Seu corpo se coloca, imediatamente, em condições de superar o obstáculo. Não há como observar aí um plano prévio, por mais rápido que pudesse ocorrer. O corpo se molda à situação, age sem intermediários, age orientado diretamente pela percepção.

Em se tratando de música, os exemplos de percepção de primeira mão são também esclarecedores. Tomemos o caso de um regente à frente de uma orquestra. Por mais que o regente tenha preparado previamente seu conjunto de movimentos, fundamentado no estudo da partitura, o momento da execução exige um tipo de ação imediata do regente, para adequar a sonoridade resultante da performance, a cada momento. Variações em diferentes aspectos musicais (dinâmica, agógica, articulação...) ocorrerão e cabe ao regente adequá-las para conseguir a sonoridade esperada. A realização de seus padrões gestuais é sempre orientada, no momento da execução, pela percepção daquilo que está sendo gerado na performance da orquestra. Forma-se assim o ciclo percepção-ação. Em contra-partida, o planejamento do gestual para a performance e todo o conjunto de conceitos teóricos musicais utilizados para a construção de tal planejamento caracterizam-se pelo que Gibson, Maturana, M-Ponty e Varela entendem como percepção de segunda mão[7]. Essa percepção caracteriza-se por um nível superior de recorrência do acoplamento estrutural, por isso ser um segundo, que é sempre orientada e orienta a primeira mão. Com isso podemos observar a ação de um corpo (encarnado) em uma situação específica (situado) num ciclo de percepção-ação que ocorre com diferentes níveis de recorrência. Se optarmos pela descrição de cognição de Varela et al (1991) e Maturana (1995), podemos entender que aquilo que denominamos por percepção e por conhecimento são descrições condutuais consensuais mais ou menos recorrentes observadas nos diferentes níveis de sub-redes sensóriomotoras em seu operar no meio, guardando sua identidade e mantendo seu acoplamento estrutural. Tal nível maior ou menor de recorrência está diretamente relacionado com aquilo que entendemos por percepção de primeira mão (baixa recorrência) e percepção de segunda mão (alta recorrência).

Como já afirmamos, Schaeffer se aproxima muito dessa categorização ao agrupar as funcionalidades da escuta na dupla banale e praticienne. O agrupamento do escutar e do ouvir em uma escuta banale, de dia-a-dia segundo Windsor (1995), corresponderia à primeira mão tal qual descrevemos acima e a dupla entender/compreender agrupada em uma escuta praticienne corresponderia à segunda mão. Temos assim uma substituição possível às funcionalidades schaefferianas da escuta que resolveria os problemas de conceituação e de explicação da percepção apoiadas em uma abordagem dualista-cartesiana, que era exatamente o que Husserl e a tradição fenomenológica pretendia expurgar.

Devemos ressaltar que nossa reformulação não apresentará prejuízos para o retorno que Schaeffer realiza ao quadro das funcionalidades no intuito de realizar a passagem da música tradicional para a música experimental. Para isso Schaeffer propõe a inversão no direcionamento das atitudes perante o fenômeno sonoro. Na música tradicional esse direcionamento ocorre de uma etapa de identificação dos valores musicais, que englobam o compreender e o escutar como domínio da musicalidade, para uma qualificação, que engloba o ouvir e o entender em um domínio da sonoridade. Temos assim o domínio da musicalidade que representa as identificações abstratas e conceituais sendo posteriormente efetivadas no mundo no domínio da sonoridade. A inversão se da a partir de uma qualificação realizada no domínio da sonoridade, através da escuta reduzida e sua decorrência no objeto sonoro, para posteriores identificações e organizações de coleções de significações no domínio da musicalidade. Ao reorganizarmos o quadro das funcionalidades da escuta, teremos a escuta como um todo, que num nível de recorrência inferior é caracterizado pela percepção de primeira-mão e num nível de recorrência superior pela percepção de segunda-mão.

A inversão da atividade composicional, do fazer-ouvir para um ouvir-fazer, pode ser melhor descrita, nos termos das teorias abordadas aqui, como um caminho de valorização da percepção de primeira mão. Da maneira que Schaeffer apresenta sua inversão, não é possível, ou melhor, não é objetivo da escuta reduzida a ocorrência de significação na percepção de primeira mão, mas ela própria é a proposição de um segundo nível de recorrência (segunda mão) sobre a percepção imediata. Nesse sentido o autor nem considera a possibilidade da emergência de significação na percepção de primeira mão. O que consideramos central para a crítica e proposições realizadas no presente estudo é apontar que diversos autores[8] indicam um tipo de significação perceptiva, próprio da ocorrência do ciclo percepção-ação de um corpo em um meio específico. O caminho que os referidos autores propõem é um tipo de descrição para as significações específicas de cada uma das duas categorias de percepção. É relevante observar que Gibson, ao argumentar em favor de uma significação própria da percepção de primeira mão, não rejeita a possibilidade de um tipo de significação que ocorra utilizando mediações. Ao contrário, tal autor afirma que o caso de um tipo de significação indireta, mediada por representações[9], pode ser descrito adequadamente como de segunda-mão, ou seja, com um nível maior de recorrência da coordenação condutual consensual no operar do organismo em seu meio.

Essa reformulação do quadro de escutas nos direciona para uma reformulação do próprio conceito de objeto sonoro. Como afirmamos, o objeto sonoro de Schaeffer é obtido pela redução fenomenológica. Tal redução visa a eliminação dos condicionamentos culturais (hábitos) da escuta, para que seja desvelado o objeto sonoro. Tal objeto está relacionado à noção de essência, o que coloca a experiência apenas como um aspecto passageiro e menos importante na percepção. Nesse sentido a experiência é uma das etapas na construção das significações possíveis para o objeto sonoro. Com tal posição Schaeffer incorre ao mesmo erro cartesiano criticado por M-Ponty, de substituir o mundo por uma representação do mundo, ou mais especificamente no caso hussleriano, substituir a experiência do mundo por suas essências. Tais essências se configuram em um conjunto de características universais dos múltiplos objetos possíveis à escuta. Com isso Schaeffer espera criar um sistema de categorização que seja independente de qualquer situação de escuta. Ao comparar as escutas do músico, do engenheiro e do ouvinte comum, Schaeffer encontra diferenças de significação decorrentes da escuta especializada de cada um deles e atribui à escuta reduzida a função de revelar o objeto sonoro, enquanto essência, e a função de possibilitar uma classificação que será comum a todas as pessoas em todas as situações de escuta. No entanto, ao propor um tipo de escuta próprio para acessar a essência da experiência sonora, seu objeto sonoro, o autor acaba por substituir um grupo de hábitos de escuta, por um outro hábito, denominado por ele mesmo como antinatural, como podemos ler:

Como posso descrever no plano puramente sonoro um galope? (...) Necessito volver à experiência auditiva, recapitular minhas impressões, para reencontrar, através das mesmas, informações sobre o objeto sonoro, e não mais sobre o cavalo. (...) Na verdade se trata de um retorno às fontes, à 'experiênciaoriginária', como diria Husserl – que se tornou necessária por uma 'mudança do objeto'. Antes que um novo treinamento me seja possível e que possa ser elaborado um outro sistema de referências, desta vez apropriado ao objeto sonoro, eu deveria libertar-me do condicionamento criado por meus hábitos anteriores, passar pela prova da époché. Não se trata de forma alguma de um retorno à natureza. Nada nos é mais natural do que obedecer à um condicionamento. Trata-se de um esforço 'antinatural' para perceber aquilo que antes determinava a consciência inadvertidamente. (Schaeffer, 1966, p.270)

 

É especificamente quando qualifica a experiência à qual se deve recorrer (experiência originária) para descrever adequadamente um evento sonoro, que Schaeffer tira a experiência do evento sonoro-acontecendo do centro da descrição dele próprio e coloca em seu lugar um tipo de representação mental anteriormente elaborada e armazenada na memória. Tal representação seria uma espécie de essência do evento percebido, ou seja, o objeto sonoro encontrado a partir da escuta reduzida.

A partir dessas observações sobre essa importante citação, confirma-se que a noção de objeto sonoro, que Schaeffer desenvolve no Traité, está relacionada diretamente à própria noção de representação mental adequadamente elaborada. A experiência de estar ouvindo um evento sonoro em uma situação específica é apenas o início do processo de desvelamento do objeto essencial, a ser alcançado por um hábito específico (escuta reduzida). A experiência de ouvir o evento sonoro em um meio específico não é suficiente para caracterizar o objeto sonoro schaefferiano, é antes, apenas o início do processo de desvelamento desse objeto, que será completado por outras etapas realizadas na mente do ouvinte. Dessa forma, Schaeffer incorre em um erro de acreditar que buscava uma descrição para a percepção de todo o possível acústico em meios fenomenológicos, que pudessem ser estendidos a qualquer indivíduo. A busca da essência da escuta, que eliminaria qualquer referência a condicionamentos pessoais, através da escuta reduzida, garantiria tal universalidade. Porém, o que temos é que Schaeffer cria mais uma forma especializada de escutar o mundo em que a tipo-morfologia, base fundamental para o seu solfejo dos objetos, acaba por ser um a priori que guiará toda a escuta do mundo. Poderíamos dizer que o solfejo dos objetos é a escuta praticienne do compositor acusmático que deve ser apreendida e condicionada para que funcione de acordo com o esperado por Schaeffer, portanto não pode configurar-se como uma explicação dos fundamentos da percepção, já que ela encontrar-se-ia na segunda-mão, sendo uma elaboração sobre a percepção de primeira-mão e não seu fundamento.

Nossa proposta alternativa à escuta reduzida pode ser denominada como audição corporificada e situada. Com um tipo de significação que se dá sempre a partir de um ouvir/agir de um corpo específico em uma situação específica. Com isso é necessário que tenhamos claro dois conceitos, a saber: som situado e audição corporificada e situada:

The sonic phenomenon is result of a mechanic event generated by the movement of any body composed with some elastic material, or a simulation of it in a computerized environment. This event, in all case, is always embedded in a specific situation, with a specific characteristics deriving of the relation between the perceiver and his environment. (Oliveira and Oliveira, 2003)

 

A partir de tal citação podemos descrever adequadamente o que propomos como audição corporificada e situada. De acordo com Gibson (1966) o estudo da percepção não deve ser concebido apenas a partir da noção de órgão do sentido, aliás ele troca "órgão do sentido" por "sistema perceptivo". O autor ressalta que os ouvidos estão na cabeça sobre o pescoço, sobre os ombros e sobre o resto do corpo. Tal corpo se movimenta no meio em busca de operar em congruência com o ambiente para adequar o acoplamento estrutural no sentido de manter sua identidade.

Após toda exposição acima podemos apresentar uma alternativa à noção do objeto sonoro schaefferiano. Tal noção encontra-se, como vimos, enraizada na metafísica dualista-cartesiana, e como tal, carece de estrutura argumentativa tanto epistemológica quanto ontológica. O que propomos como alternativa é o conceito de objeto sonoro como distinções realizadas por um organismo em sua história de condutas operacionais no sentido de manter sua identidade, mantendo seu acoplamento estrutural. Aqui fica claro que nos apoiamos em uma epistemologia própria especificamente de autores como M-Ponty e Maturana, como já nos referimos anteriomente.

Assim esperamos também propor uma alternativa de fundamentação filosófica para a metodologia schaefferiana de circunscrever o objeto sonoro através da redução husseleriana. Acreditamos que a fenomenologia pontyana pode ser muito mais interessante para a composição musical contemporânea, uma vez que fundamenta a explicação sobre a percepção em bases alternativas ao dualismo cartesiano.

Dessa forma, ao abordar a tipo-morfologia de Schaeffer e sua estruturação final no quadro de solfejo dos objetos musicais, podemos pensar que todo o seu conjunto de categorizações pode ser entendido como uma possibilidade de escuta entre muitas possíveis. Como afirmamos, tais categorizações podem ser a descrição das distinções que afirmamos acima, porém em uma história de acoplamentos estruturais típicas de um compositor acusmático que passou pelo treinamento (aquisição de hábitos) de perceber segundo os critérios tipo-morfológicos de Schaeffer. O mais importante dessa abordagem é que a tipo-morfologia passa a ser não um fundamento essencial da percepção, mas sim uma possível descrição de um tipo de escuta de um indivíduo que possui essa história de acoplamentos com o meio. Em Toffolo 2004, sugerimos uma re-adequação do quadro do solfejo dos objetos musicais que visava uma simplificação das inúmeras categorias. Tal simplificação foi no sentido de limpar alguns conceitos presentes no quadro que apresentavam grande dubiedade e tal dubiedade é decorrente dos problemas aqui apresentados. Ao reorganizar os conceitos chaves da teoria de Schaeffer chegamos à um quadro mais funcional e enxuto da tipo-morfologia que se apresentou como uma ferramenta interessante tanto para a composição como para a análise do repertório acúsmático e de Paisagens Sonoras.

Com o apresentado neste trabalho acreditamos contribuir para uma renovação da teoria de Schaeffer tornando-a atual e condizente com as bases fenomenológicas modernas, o que só reforça a importância e a grandeza do Traité e o seu caráter de indispensável para o estudo da percepção e da composição musical contemporânea.

5. Referências Bibliográficas

Gibson, J. J. The Senses Considered as Perceptual Systems. Houghton Mifflin Company,

Boston, 1966

 

Gibson, J. J. Ecological Approach to Visual Perception.: Lawrence Erlbaum

Associates Publishers, Hillsdate, 1979/1986

 

Keller, D. Touch'n go: Ecological models in composition. [online]. Disponível em:

http://www.sfu.ca/sonic-studio/EcoModelsComposition.html, 1999

 

Keller, D.; Truax, B. Ecologically-based granular synthesis. [online]. Disponível em:

http://www.sfu.ca/~dkeller/EcoGranSynth/EGSpaper.html, 1998.

 

Maturana, H. R. Da biologia a psicologia. Porto-Alegre, Artmed, 1995.

 

M-Ponty, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

 

_________ Merleau-Ponty na sorbone: resumo de cursos psicossociologia e filosofia. Campinas: Papirus editora, 1990.

Michaels, C. F.; Carello, C. (1981) Direct Perception. Prentice-Hall, Inc., Englewood Cliffs.

 

Oliveira, A. L. G. & Oliveira, L. F. Toward an ecological aesthetics: music as emergence.cogprints.org/2996/01/Towardanecoaesthetics.pdf, 2003

 

Oliveira, A. L. G.; Oliveira, L. F. Por uma abordagem ecológica do timbre. In: Segundo

encontro de la Sociedad Argentina para la Ciencia Cognitiva de la Música (Anais – Cd-rom), Buenos Aires: SACCoM, 2002

 

Port, R. F.; Cummins, F.; McAuley, J. D. Naive Time, Temporal Patterns and Human,

Audiction. In: R. F. Port e T. van Guelder (Eds). Mind as Motion. MIT, Cambridge

(Massachusetts) and London (England). p. 339-371, 1998

 

Roederer, J. G. Introdução a Física e Psicofísica da Música. Edusp, São Paulo, 1998

 

Schaeffer, P. Traité des Objets Musicaux – essai interdisciplines. Editions du Seuil,

Paris, 1966

 

Schafer, R. M. The Tuning of the Word. Knopf, New York, 1977

 

Stockhausen, K. Teoria da Unidade do Tempo Musical. In: Menezes, F. (org). Música

Eletroacústica: Histórias e Estéticas. Edusp, São Paulo.

 

Toffolo, R. B. G. Quando a paisagem se torna obra: uma abordagem ecológica das composições do tipo Paisagem Sonora. Dissertação de Mestrado: Unesp, 2004.

 

Varela et al. A mente Incorporada. Porto Alegre: Artmed, 2003.

 

 



[1] As alternativas explicativas aos problemas conceituais apresentados nesta seção serão descritos em maior profundidade nas próximas seções.

[2] A palavra receptor designa uma passividade no sentido de que o órgão recebe o estímulo ao invés de buscar por ele. (Gibson 1966).

[3] Há alternativas à Descartes que são contemporâneas a ele mesmo como é o caso de Spinoza. No entanto, o cartesianismo já em sua época tornou-se tendência dominante.

[4] De acordo com tradução de ennactionpara o portugês de Portugal em edição do Instituto Piaget.

[5] De acordo com tradução do termo ennaction para o portugês do Brasil em edição da Artmed.

[6] Gibson não nega a existência das representações mentais, mas afirma que na atividade perceptual elas não são utilizadas. Para uma visão aprofundada sobre a crítica à representação mental no processo perceptual ver Haselager (2003).

[7] Apenas Gibson utiliza o termo second-hand perception. No entanto os outros autores citados também apresentam um tipo de categorização da percepção que pode ser descrito adequadamente segundo a noção gibsoniana referida.

[8] Gibson, Maturana, Varela e M-Ponty, p. ex.

[9] Estamos nos referindo à noção de representação não como representação interna/mental.