Crônica

UM SONHO DE NATAL

Edevaldo Leal

                           

                         Todos os dias somos testemunhas do desconcerto do mundo:  a maldade e a bondade, a sorte e o infortúnio, para lembrar Camões. Somos testemunhas de acidentes de trânsito, de discussões desnecessárias, de espantosas grosserias e nos acostumamos a ouvir notícias de assaltos ao erário público, de prisões de corruptos e do cinismo  de sorridentes políticos.

                            E de uma boa nova, quantos foram diariamente testemunhas?

                             Considero-me um homem de sorte. Debruçado numa janela suspensa no ar, emoldurada de nuvens claras, eu vi a mudança  chegar .

                            No trânsito, motoristas educados não mais vomitam agressões . Todos os carros param e eles, os motoristas, aguardam os pedestres atravessarem a faixa, mesmo quando não há semáforo. Nos shoppings, palácios de luxo e lucro, os lojistas vendem produtos com preços mais baratos  a pessoas comprovadamente carentes. A classe A não se sente discriminada.

                           Nas ruas, nos consultórios, nas paradas de ônibus, nas padarias, nos supermercados, enfim, em todos os lugares, as pessoas estão sorrindo. E o que mais me intriga: existe um perfume de rosas frescas no ar, como se estivéssemos, permanentemente, num jardim bem cuidado.

                           E não é só.

                           Os cumprimentos de bom dia e boa tarde, velhos hábitos esquecidos, voltaram. Gentilezas como obrigado, por favor, com licença , desculpe, estão na boca de todo mundo. Acabo de ver rapazes e moças nos ônibus, cedendo lugar para idosos, gestantes e pessoas com necessidades especiais.

                           Surpreende-me o comportamento dos políticos de todos os partidos. Eles resolveram acabar com suas mordomias milionárias e reduziram os altos ganhos mensais. Querem fazer uma experiência: nos próximos cinco anos, deputados e senadores receberão o equivalente ao que delegados da polícia civil recebem: menos de R$ 10.000,00 (dez mil reais). O governo também baixou um decreto: reduziu os impostos da energia, das roupas sem marca, do peixe, da carne e de outros alimentos de primeira necessidade. E, por decreto, determinou: nenhum pobre morrerá mais por falta de assistência médica ou por falta de remédio.

                            Espantem-se.

                            Políticos e funcionários púbicos de alto escalão  não mais se envergonharão de serem honestos: as licitações, com vícios de toda ordem, deixarão de existir e não haverá mais loteamentos de cargos no serviço público. Sobrará dinheiro para aplicar na construção de mais hospitais, mais escolas e mais creches. Policiais civis, militares e federais e também os integrantes das forças armadas e os professores terão aumento anual de dezessete por cento em seus vencimentos. Os policiais ganharão abonos generosos por prisão de traficantes e de quadrilhas organizadas ou não.

                               A profecia se cumpre. Acaba de dar na televisão:  reina absoluta paz entre israelenses e palestinos.

                               Uma estrela, maior e mais brilhante, riscou o céu e parou num ponto determinado.

                               Alguém toca a campainha. Peço que aguarde. Passo  água no rosto, para não atender com cara de quem estava dormindo. É um menino. Deve ter não mais do que 12 anos. Ele sorri e me dá boa tarde. Está entregando flores. Pede-me gentilmente que aceite uma. Eu me aproximo. Ele   anuncia o assalto. São 14 horas de uma tarde de Natal.