O primeiro indício é uma provocação. Não está bem definida, é amorfa e, com várias funções e características, se faz perceptível.

                Como uma criança mimada não espera o momento mais propício e o local mais adequado. Ela é incompleta, imaterial, precisa ser cognoscível, de corpo, de mídia. Embirra-se se não recebe atenção. Com um biquinho, faz um muxoxo e se cala, prometendo me abandonar, ou me pirraça com pequenas teimas. Mas facilmente perdoa se me desculpo e cedo a suas manhas. Como se nunca tivéssemos nos desentendido, invade-me e toma-me como a maré. Apresenta-se e se vai, se apresenta e se vai... e a cada ida e vinda se apresenta mais: mais clara, mais próxima e com mais força. Já começa a se moldar às minhas pulsões e se tornar uma necessidade. Uma necessidade de vir à tona, de chegar ao mundo, de existir além das sensações e sentimentos.

                Como um amante seduz e me inflama, me incita sussurrando segredos, prometendo satisfação e prazer. Às vezes, torna-se menos exigente se satisfazendo em pequenos desenhos em folhas e canções, se apresenta em forma de linguagem, se derramando em letras no papel. Às vezes me desloca da realidade, se mostra enquanto o Inominável, o Irrepresentável, apenas para me devolver inquieta e ansiosa.

                Como uma mãe, então, me acalma e me conforta. Mostra o caminho do alívio e da realização. Guia-me nas prováveis vazões. Põe minha cabeça em seu colo e fazendo um cafuné promete amor e cuidado incondicional. Reconhece meus defeitos e dificuldades, mas ressalta minhas qualidades. Não exige perfeição, apenas que me entregue como ela mesma o faz, que me permita as possibilidades e impossibilidades, que seja aventureira e aceite, também, suas inconstâncias e incoerências.

                E retorna como o amante. Tira-me da irrealidade dos sonhos para que eu o traga para meu mundo e o despeje no dos outros. Prova nossa mútua dependência. Como somos completos juntos. Aquece-me e umedece as palmas da mão. Intima-me a desafiá-lo, a domá-lo e torna-lo meu. E, nesse processo, me torna sua e sedutoramente faz-me acreditar o contrário. A dizer-me “sou seu”, se apropria de mim e ardilosamente se ocupa de tudo, do meu tempo e espaço, de minhas paixões e inseguranças e confessa segredos do tudo. E rouba os meus segredos e os materializa em símbolos.

                E nos mescla. Simbioticamente nos expressamos e projetamos no vazio. Satisfeitos e saciados nos quedamos, um tanto perplexos e maravilhados. Com um olhar jocoso e um beijo soprado se vai. Deixa uma parte de si e leva uma parte de mim. E, dessa maneira, obriga-nos a um compromisso constante de encontros: de música, letras e desenhos.

 1 Apresentação

 Este texto se refere à avaliação do módulo VI da pós-graduação em Ludicidade e Desenvolvimento criativo de pessoas, de temática A arte e as suas expressões, ministrado por Denise Noronha. Para cumprir sua função, seguirá um caminho que vai de minha forma de funcionamento intelectual até o meu processo criativo em si, pontuado com algumas produções minhas e com os textos propostos inseridos implicitamente em minhas reflexões. 

É interessante começar um texto metalinguístico com a clara qualidade metalinguística de toda apresentação. Refletir sobre o próprio processo de criação é um tanto difícil, uma vez que este se realiza num processo reflexivo em si mesmo. Por este motivo, tudo se inicia com um conto. O conto que é a maneira artística de expor o que a temática me fez sentir e que meus signos e significados puderam exprimir em letras. 

Mais completa se torna esta partilha, por contar com outra forma de expressão/projeção: o desenho. Então ousei ao colocar neste papel, além da reflexão em formato dissertativo, enquadrando minhas interpretações de uma maneira mais racional e diretamente mais acessível a outros, a poesia (minha e de outros) e o conto. São todos, no entanto, fruto do mesmo processo criativo, expresso de maneiras diferentes. 

A característica mais singular, no entanto, é que posso estender a metalinguagem da apresentação à totalidade desta produção. É ele uma apresentação de si mesmo e de seus irmãos. E, normalmente, toda reflexão que realizo possui muitos “irmãos”, uma vez que ela possui tantas conexões e possibilidades que sempre algo não é expresso. Porque em todos os instantes muitos “algos” estão sendo criados em minhas ideias. 

1.2 Uma mente inquieta

Alguns apenas se mantêm assim, imateriais, inomináveis e irreconhecíveis. Outros muitos se transformam em música, letras e desenhos. Pequenas poesias nas laterais dos textos que leio, pequenos desenhos em meus cadernos ou simples e imprecisas melodias que dedilho em meu violão. Há tal intensidade e quantidade de ideias, que realizo grande esforço para me focar no externo. Para cumprir meus prazos e obrigações, utilizo estrategicamente listas. Listas de afazeres, listas de compras...

Chamam-me inquieta e descuidada, o que de fato sou, meu corpo possui as marcas de minhas constantes topadas, choques com coisas e pessoas. É difícil concentrar. O mundo das ideias é sedutor, é perfeito e completo, é o mundo das possibilidades infinitas. E sonho acordada em muitos momentos.  Pra cada parágrafo produzido na realidade, vinte parágrafos são apenas vislumbrados pela consciência e guardados para outros momentos.

Obviamente não fui uma grande aluna na escola (exceto quando um assunto ou disciplina era muito atraente). Acho que seria facilmente diagnosticada com um TDA (transtorno do déficit de atenção) com um H (hiperatividade) de brinde. Felizmente tirava as notas pra passar e sabia cativar os professores. Nunca meus pais foram chamados para escola, como acontecia com meu irmão mais velho (este foi salvo pela poesia, como eu fui pela música e pelas listas). A crítica às nossas escolas e à medicalização do fracasso escolar, no entanto, são temáticas para outras reflexões. 

2. Totalidade e intuição

Aqui se insere a primeira reflexão teórica à luz da teoria encontrada no livro de Beatrice Millêtre (bem como a teoria dos dois cérebros apresentada na aula). Ela explicita que há dois tipos de funcionamento mental que depende da localização do centro do raciocínio no cérebro. Como canhotos e destros, o raciocínio pode se apresentar de maneira dominante no lado direito ou esquerdo do cérebro.

O predomínio do raciocínio no lado esquerdo, correspondente à maioria dos seres humanos, se caracterizaria por um funcionamento intelectual mais analítico e sequencial, seguindo etapas, numa progressão do início ao fim. Utilizam um processo linear, tendendo a ser metódicos e ordenados, “dissecam e esquadrinham os detalhes, um por um, e os situam no espaço e no tempo”. São os que se adaptam bem ao sistema escolar tradicional, que ensinam por etapas sem obrigatoriamente dar uma visão geral.

Já o do lado direito do cérebro possui um funcionamento intelectual mais global e intuitivo. O assunto é percebido em todos os elementos ao mesmo tempo, os resolvendo paralelamente. Imediatamente se tem uma visão completa e aprofundada do assunto. As conclusões são obtidas sem necessariamente se basear em dados concretos, mas em fatos incompletos, emoções ou imagens. Percebe-se a totalidade, como cada elemento se relaciona um com o outro.

Detenho-me no raciocínio global e viso-espacial, uma vez que me identifiquei (a partir de certas orientações do livro) com este. Assim, meu raciocínio seria localizado no lado direito do cérebro apresentando suas características específicas: não-verbal, holístico, sintético, intuitivo, intemporal e difuso. Possuindo uma visão de conjunto das coisas, determina os objetos e passa do concreto ao abstrato: ele gere o “porquê”.

2.1 Criando

Exemplificarei um pouco tomando como objeto o conto com que iniciei este texto. De maneira artística ele diz mais ou menos isso: normalmente, inicio, simplesmente lançando as ideias, tentando colocá-las como se apresentam, para que não a perca ao tentar enquadrar em formas. Em seguida, brinco com ele. Inverto introdução e conclusão, modelo umas partes, mantenho outras e algumas simplesmente excluo. Costumo brincar dizendo que ao criar um texto crio um "frankenstein".

 Na poesia, não consigo utilizar rimas, nem versos ritmados, é um simples depósito livre de ideias (como só a poesia pode permitir às letras). A tentativa de modelá-la, simplesmente retira toda a graça, o que resulta em abandono desta e início de outra (ressaltando que tentei várias possibilidades de expressão). Abaixo está uma que criei com a temática da criação.

Desta maneira, sempre se apresentam minhas ideias, quando se propõe à escrita. Um texto dissertativo, normalmente precisa ser refeito inúmeras vezes até que sinta que está pronto. É um sentido estético de que os símbolos e as ideias se encontraram e se entenderam. É um quê que indica a conclusão do processo. E é extremamente prazeroso relê-lo e muitas vezes não o reconheço como meu. É apenas ele.

O ritmo não é dado por mim. Ele apenas se apresenta, tendendo minhas interferências a afugentar as ideias, o que ocasionou em alguns textos perdidos. Algumas vezes, termino o texto de primeira em outras ele demora e é interrompido por outro. Assim, possuo muitos livros sem terminar, aos quais, aos poucos, acrescento algumas linhas a cada considerável intervalo de tempo.

O indiscriminado / Multitude de sentidos / Uma folha em branco / Do tudo/nada / Uma forma / De lugar nenhum / A maré / O dentro/fora / Eu/o mundo / A folha em branco / Sentidos / (Con)formados / Surgem / Impõem-se aos olhos / Branco maculado / Amplitude recortada / Criação/criatura

A escrita que mais me satisfaz, no entanto, é aquela que se apresenta menos conformada, menos eu e mais esse quê.  Mais bruta e mais livre, a sinto mais verdadeira e mais real, como se vesti-la demais fosse desviá-la dela mesma.

Por isso, outro tipo de satisfação se apresenta nos desenhos. Estes são traços e formas e cores que não exigem grandes elaborações. E olhá-los completos remete a uma sensação de completude, que a escrita apenas vislumbra e a música aprofunda.

 Muitas vezes, enquanto desenho, melodias se formam. Termino de desenhar e pego o violão e toco acordes sem sentido, ou ligo o som. A música é a mais imaterial de todas, a menos passível de explicação.

 2.2 Criado 

De onde ela vem?! De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!

Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!
 

Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas do laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica ...
 

Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No mulambo da língua paralítica[1].
 

 

Provavelmente, a função da arte é cumprida ao provocar tanto o criador, quanto às pessoas que contemplam suas obras. De despertar sensações e sentimentos, discordâncias e concordâncias. E, mesmo que muitos gostem de afirmar conhecerem a verdade das coisas, a origem e finalidades destas – da arte – tendo a acreditar que quanto maior a certeza menor a veracidade de suas explicações. Lacan, um psicanalista, costumava afirmar que tudo que é muito bem explicado, mais distorcido e recortado se torna. Menos a coisa em si e mais o teorizador e simbolizador de sua essência. 

Gilberto Safra, outro psicanalista, afirma que os símbolos e significados possuem apenas um mestre – o seu criador. Refletem, portanto, por mais que colham sua matéria prima da realidade, o criador investido desta (ou a realidade vestida pelo criador). A matéria prima deixa de ser ela mesma apenas e é modificada e modifica a pessoa que a significa, num processo sem fim, em espiral dialética. Assim é com todos os seres, de determinada época e local. Tudo se construindo mutuamente, os seres, as épocas e os locais. 

Algumas pessoas conseguem se aproximar mais da essência desta, a exemplo dos artistas que são reconhecidos mesmo com o passar do tempo e do local. Outras a vestem tanto, que podem até ser reconhecidas em seu valor estético, mas será localmente e por limitado tempo. Outras podem, senti-la, mas não expressá-la, satisfazendo-se em criar pra si mesma ou na arte produzida pelos “artistas”. No entanto, este “senso estético” é de todos e a arte, definitivamente, é importante constituinte do sujeito. 

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos 
E não pensar. É correr as cortinas 
Da minha janela (mas ela não tem cortinas). 
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! 
O único mistério é haver quem pense no mistério. 
Quem está ao sol e fecha os olhos, 
Começa a não saber o que é o sol 
E a pensar muitas cousas cheias de calor. 
Mas abre os olhos e vê o sol, 
E já não pode pensar em nada, 
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos 
De todos os filósofos e de todos os poetas.[2] 

Meu processo criativo é, portanto, uma necessidade que me ultrapassa. Ele serve, com certeza, a alguma necessidade estética, poética, portanto simbólica e significativa de compreensão e explicação do mundo. Ele é meu, mas também de algo mais, como sou eu e mais que minha subjetividade. No entanto, não creio que deva explicá-la ou compreendê-la demais sob o risco de perdê-la em parcos significados.


[1] “A ideia” de Augusto dos Anjos.

[2] “O mistério das cousas” de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa.