Um passo sobre o tempo

Quando partia pela manhã, num pé em outro, com a cara mais dura de incertezas e recoberta de ansiedade, sentia dor e também saudades, mas enchido de coragem e envolvido por tudo o que poderia vir pela frente, antecipava os passos atrás do destino que me aguardava.
Acabava esbarrando no futuro, isso sem passar pelas próprias pernas, percebi que era chegada a hora de aprender a viver, de sol a sol, empoeirado das cinzas e sem voltar jamais a temer a lua.
Acordava num certo ano desconhecido, onde os números não importavam mais, despertado da noite mal dormida, de um futuro sem sono, sem sonho e sem a aurora, aonde o sol vinha rasgando o céu de um vermelho mórbido, encandeando os olhos inchados das pessoas, assim trazendo poucos tona, enquanto outros permaneciam ali, no mesmo lugar, estirados ao chão, em meio a sujeira, num ritual indigesto da vegetação humana, ou como aqueles sentados mas sob o mesmo transe, escorados pelos muros em ruínas, cobertos de lodo, exalando mal cheiro, enquanto porcarias deslizam em seus corpos a se perderem pelo chão.
Esfregava as mãos pela face para aliviar o suor do rosto e resolvi seguir em frente, sentia sede e então o primeiro cano é partido aos chutes, dele saiu um barulho estranho e apenas um triste gotejo que mais parecia com uma lágrima, derramava da nova abertura. Muitos e muitos canos ainda foram partidos, mas as respostas continuavam sendo as mesmas, e não encontrava nada daquele jeito.
Caminhei sem saber mais sobre tempo, quando era surpreendido pelo pior dos visitantes, que venha a fome então.
O sol dava uma trégua, o clima muda e a temperatura cai por conseguinte, um imenso vão se abria pela frente, as ruas reaparecem, ensaiava um sorriso insosso e sem graça por encontrar um velho amigo, aquele que vinha na forma mais fiel, na pele de um cachorro que roia uma carcaça esbagaçada, passei a acariciar o animal ao mesmo tempo com um olhar mais frio lhe roubava o alimento, que vá a fome então.
Ao cair da noite a temperatura baixa ainda mais, o frio e tudo em volta, incomodava ao extremo e não havia mais em que pensar, apenas envelhecia o corpo e renegava a alma. Sem refletir mais em coisa alguma, encostava em um carro velho e sucateado, para observar a escuridão que já cercava tudo. Tinha que fazer alguma coisa e nem sabia o quê. De repente vinha a vontade de tirar aquele lixo do lugar e virava o carro em capotagem, as rodas pareciam até mais belas pela parte de cima. Uma velha senhora observava tudo, com seu olhar triste e enrugado, talvez nem enxergasse ao certo aquela cena, não se movia e não saiu do lugar nem mesmo quando se aproximava aquela garota de andar lento, mãos nos bolsos e cabeça baixa vindo em minha direção. "Se não é daqui, ainda pode voltar". Com uma extrema certeza ela me afirmava. O que talvez fosse verdade, mas naquela altura eu já não tinha mais nada a perder, ela ainda insistia em me dizer que era a única e derradeira chance de sobrevivência, que existia ainda um tempo, e apenas ela saberia dizer onde poderia encontrá-lo. Insistiu-me mais uma vez pela volta, depois passou as mãos em meu rosto, dizendo que queria me ouvir.
Quando saí de casa, passei pelo amanhã eu sei, passei pelo que queria e pelo que não queria, passei por tudo, sem andar por nada, agora eu posso caminhar para qualquer canto, talvez até para me encontrar com a morte, quem sabe, e daí não há mais como voltar.
Então ela baixou novamente a cabeça, não antes de me beijar o rosto, assim pude perceber suas lágrimas, queria até fazer o mesmo, mas não conseguia, cheguei a invejar os canos, por não saber como derramar uma lágrima, no momento em que de sua boca vinha o consolo em me dizer que o futuro não mais existia e o que não haveria para alguns, não haveria então para mais ninguém.

Tom Prado (março 1996)