Entra ano, sai ano e há períodos que nos deixam com aquela tediosa sensação de "déjà vu". É exemplo disso o carnaval (principalmente pra quem não gosta), a virada de ano (e sua contagem regressiva) e o natal. O natal particularmente, com as mesmas musiquinhas chatas que são recicladas a cada ano, os encontros familiares, visitas, mensagens nada sinceras, enfim, um tédio enfastiante. Coloque-se no lugar de um adolescente intrépido, hiperativo e inquieto, e o natal torna-se a maior dentre as torturas!

Foi num desses natais comuns que Raul, aborrecido com a mesmice, resolveu fazer algo diferente. Chamou dois amigos para sair, em busca de um bar onde pudessem se embebedar. Sua irmã, pouco mais nova, quis ir junto, idéia que pouco lhe agradou. Mas, por um motivo ou outro (às vezes dependia de favores dela), acabou aceitando sua presença.

Começaram, então, a rodar pela cidade, os quatro no mesmo carro. Estava muito difícil encontrar um bar aberto, até porque já se passava da meia-noite. As pessoas normais haviam decidido ficar em casa, com suas famílias e amigos, ou mesmo reclusas, no caso das solitárias. Mas o ímpeto de Raul não permitia que ele desistisse. Tanto rodou, por vários bairros, sem sossegar, que finalmente encontrou um bar aberto!

Não se sabe porque o dono do bar havia decidido deixar o estabelecimento funcionando em plena noite de natal. Afinal, além de Raul, sua irmã e os dois amigos, apenas mais uma mesa encontrava-se ocupada, com três homens ("os reis magos", brincou Raul). Talvez amigos do dono do bar, que resolveram eleger o local como ponto de encontro. Ou, quem sabe, o dono do bar fosse sozinho (separado, viúvo, família morava distante?) e resolveu abrir o estabelecimento para passar uma noite de natal com algum contato humano, mesmo que de fregueses se embebedando. Em todo caso, o clima não era ruim, o bar era acolhedor e Raul e seus companheiros resolveram ficar por ali mesmo.

O tempo ia passando, histórias sendo contatadas, risadas, muita bebida consumida. A noite de natal já era alta madrugada, quando Raul começou a cogitar em ir embora. Porém, sua irmã não estava acostumada a esse tipo de evento, nunca tinha saído com Raul e seus amigos e vinha mostrando grande interesse pelas histórias e casos contados, pelas experiências e frustrações ali, à mesa do bar, confidenciadas. Queria continuar, estava sendo um natal bem diferente, nada convencional, não tinha o mínimo sono. Num momento de lampejo, teve uma idéia que de cara agradou aos amigos e foi, sem muita resistência, aceita pelo já sonolento Raul:

- Espera! Vamos tomar porrinha! Quem topa?

O que ela chamava de "porrinha", sendo assim conhecido pelos companheiros de mesa, nada mais era que cachaça, servida em pequenos copos. Pela tradição, devia ser tomada de um gole só, batendo o copo na mesa ao final, sem fazer cara feia. Começou a brincadeira de ver quem tomava mais, que acabou se completando com o bater do copo na mesa com força, preferencialmente quebrando o mesmo.

E assim continuaram, bebendo, quebrando os copos, pedindo mais. O barulho até incomodava os outros frequentadores, mas o dono do bar via tudo com um ar de desconfiança e nada dizia. Cerca de cinquenta doses foram pedidas pelos quatro jovens, quase todas resultando em copos quebrados. Finalmente, não aguentando mais, resolveram pedir a conta. Ao receber a descrição dos gastos, Raul se revoltou imediatamente. O dono do bar estava cobrando R$ 5,00 por cada copo quebrado, um disparate, verdadeiro absurdo. Esbravejou, com a voz entorpecida e a boca mole:

- Que porra é essa? Eu não vou pagar isso não! Absurdo! Tá querendo me roubar, é? Vá se danar, vamo embora dessa espelunca!!!

E fez o movimento para se levantar e sair sem pagar, sendo imitado pelos demais. O dono do bar, que já estava mais que suficientemente furioso com toda a bagunça que Raul e amigos tinham feito, nem pensou duas vezes. Aplicou um soco certeiro no estômago de Raul, que caiu rolando pelo chão, empurrando as cadeiras de outras mesas. No mesmo momento, ao ver a confusão iniciada, enquanto os amigos de Raul partiam pra cima do dono do bar, os três homens que estavam na outra mesa levantaram-se e pularam para o meio do conflito. Apenas a irmã de Raul teve o bom senso de se afastar, enquanto gritava para que todos parassem com a briga.

A confusão foi enorme. Raul e seus amigos não eram páreos para os adversários, todos fortes. Apanhavam violentamente, com socos, pontapés, tapas na cara, cadeiradas na cabeça, rolavam no chão sendo pisoteados... Mas parece que o excesso de bebida fazia com que não sentissem toda a dor que deveriam estar sentindo numa situação dessas, com sangue escorrendo dos cortes e das bocas com dentes quebrados... Apanhavam, caiam e levantavam para apanhar novamente.

A briga foi se prolongando, sem que eles parassem de xingar os agressores, o que só aumentava a intensidade dos golpes. Por fim, totalmente exauridos, os amigos conseguiram sair do bar, puxados pela irmã de Raul, quando ele ainda encontrava-se estatelado no chão, após tomar um chute no rosto. Enquanto tentava abria os olhos roxos, Raul viu um vulto se aproximar com uma faca brilhante na mão. Foi nesse momento que, reunindo suas forças, deu um grande salto, atravessando uma janela de vidro e caindo na calçada, junto aos cacos que lhe furavam ainda mais o combalido corpo. Desmaiou.

Não se sabe quanto tempo depois, Raul acorda na sala de espera de uma delegacia. Estavam todos lá e sua irmã cuidava de seus ferimentos. Não sabia muito bem o que havia acontecido. Parece que, mesmo desacordado, ele ficava repetindo que estava tudo bem consigo e continuava xingando os agressores. Seus colegas também estavam bastante feridos, mas ninguém tinha sido liberado para o hospital. Apenas os primeiros socorros haviam sido prestados, como limpeza dos piores ferimentos e remoção de cacos de vidro.

Não demorou muito para que o delegado, enfurecido pelo trabalho extra em plena noite de natal, chamasse a todos para sua sala, exigindo explicações e esbravejando muito. Dedo em riste, sequer perdeu tempo em ouvir os detalhes. Resolveu liberar logo todos, pois a sala estava com cheiro insuportável! Achava que alguém havia pisado em cocô de cachorro, mas o culpado não se pronunciou ? apesar de todos terem conferido seus calçados.

Os guardas liberaram primeiro o dono do bar e os outros homens, para que fossem logo embora. A sala do delegado ficava no terceiro andar e eles queriam evitar nova confusão, se todos estivessem juntos no elevador. Em seguida, foi a vez de Raul e seus amigos, que saíram apressados enquanto o delegado borrifava um purificador de ar no ambiente.

À entrada do elevador, Raul colocou a mão no bolso e tirou as chaves do carro, como se já estivesse diante do mesmo. Acabou cambaleando e só não caiu no chão porque foi prontamente amparado por sua irmã. No entanto, a chave caiu e deslizou até o fosso do elevador. Voltaram todos à sala do furioso delegado, para explicar o ocorrido e solicitar alguém que pudesse parar o elevador e recuperar a chave no fundo do fosso. Nova bronca do delegado, ao constatar que Raul pretendia sair dirigindo naquele estado e que sequer tinha carteira de motorista! Mas resolveu solicitar alguém para providenciar a busca da chave, já que não aguentava mais tanta confusão e aquele mau cheiro.

Já era manhã quando Raul chega em casa, completamente exausto, após deixar os amigos em suas residências. Nem dá atenção aos gritos de surpresa da mãe aflita. Segue direto para o chuveiro, deixando as roupas que ia tirando pelo caminho. Já começava a sentir dores agudas pelo corpo, o efeito analgésico da bebida ia se desfazendo. Mas não podia deixar de tomar um banho revigorante, afinal ele bem sabia de onde vinha o mau cheiro que a todos tinha incomodado: de tanto que havia apanhado, ele tinha borrado as calças.