Capítulo 1 – “Filhinha de papai”

Sei que minha história não é lá muito interessante, pois deve ser igual à de muitos jovens da minha idade que existem por aí. Mas ela serve de alerta para aqueles jovens que estão começando a descobrir as coisas boas da vida. Sei também que muitos que lerem minha história vão achar que isso jamais aconteceria com eles. Eu também achava isso. Já havia lido histórias parecidas. Mesmo assim, quero fazer este alerta porque já não estou mais na vida terrena que Deus me deu e que eu não soube dar valor. Sim, agora estou aqui em cima, junto a Ele, pensando e refletindo em tudo o que fiz de errado e que acabou causando minha vinda prematura para cá.
Eu era o tipo de menina que podia se chamar de “filhinha de papai”. Não que eu gostasse de ser chamada assim, mas todos aqueles que não simpatizavam comigo ou tinham um certo quê de inveja usavam esse tratamento. Procurei nunca me incomodar muito com isso. Minha posição social, as coisas que eu tinha e a importância da carreira profissional de meu pai me fizeram ocupar um lugar invejável. Na verdade, eu nunca passei disso mesmo: uma “filhinha de papai”, muito mimada, filha única, não precisava me preocupar com nada.
Sempre tive os melhores brinquedos, minha amizade sempre foi muito disputada entre meus colegas de escola. Mas eu nunca soube diferenciar os amigos sinceros dos aproveitadores. Aos 15 anos, preocupava-me em ter as melhores roupas, os melhores “souveniers”. Procurava as mais caras, das melhores marcas, para aumentar ainda mais a inveja que se apossava das pessoas que conviviam comigo.
Na verdade, eu sempre tive o que quis, era só pedir alguma coisa, por mais impossível ou absurda que fosse, que papai corria para satisfazer meu desejo. Passeios, viagens nas férias, televisão, o melhor som, um telefone só para mim e no meu quarto, bichinhos, eu sempre conseguia o que queria.
Quando eu estava para completar 15 anos, meu pai me pediu que escolhesse entre uma maravilhosa festa de debutante e uma viagem para o lugar que eu quisesse, acompanhada, é lógico, da minha mãe. Então, na dúvida, pedi as duas coisas. Adivinhem se não consegui? Um baile de debutante no salão mais luxuoso da cidade e uma viagem ao Caribe, como eu sempre sonhava. E como presente de aniversário (se é que ainda precisasse depois de tudo isso), meu pai me abriu uma conta no banco. Como ele era um empresário bem-sucedido e respeitado, isso foi muito fácil, apesar de que uma pessoa com 15 anos não poderia ter talão de cheques. Mas isso não tinha importância, o que valia era dizer para todo mundo que eu era cliente de um banco.
Até aí, tudo corria às mil maravilhas...

Capítulo 2 – “Quero Mudar!”

No final daquele ano, concluí o primeiro grau. Um pouco tarde, pois repeti uma vez a 5ª série. Não era muito chegada em estudar, achava que não precisava me preocupar com o futuro, pois ele estava garantido com o pai que eu tinha.
Então, cismei que queria mudar de colégio. Afinal, eu estudava ali desde o Jardim da Infância, já estava enjoada de tudo aquilo, naquela escola nada mais me interessava. E também a Pati, minha melhor amiga, havia se matriculado em outra escola e era para lá que eu queria ir. E assim foi feita minha vontade. Acredito que meus pais, por não poderem me dar carinho e atenção porque estavam sempre ocupados, tentavam compensar essa ausência realizando todos os meus desejos.
Como já disse, foi sempre assim. Uma vez, eu quis que meu quarto fosse redecorado em tom lilás. Eles não gostaram muito da idéia, pois mamãe já havia comprado tudo para fazer em amarelo e branco e também já havia combinado tudo com a decoradora. Mas mesmo assim aceitou o meu pedido. Lá se foi tudo para o lixo para ser providenciada a cor lilás.
Também, era lá no meu quarto que eu passava a maior parte do tempo quando estava em casa: recebia minhas amigas, embora fossem poucas ou apenas duas, a Pati e a Priscila. Na verdade, elas eram amigas de verdade, sem outros interesses. Quer dizer, amiga mesmo talvez não, senão não teriam me deixado fazer o que fiz. Mas essa é outra história, vou chegar lá.
Ali nós conversávamos, falávamos dos gatinhos e gatões, ouvíamos música, assistíamos às banalidades da TV, tomávamos o lanche da tarde, nos divertíamos com meus jogos e meus bichinhos e até estudávamos de vez em quando.
Até então, tudo normal, ou melhor, aparentemente normal. Até que Priscila veio com aquela idéia...

Capítulo 3 – Que tal uma festinha?

- Meninas, tem um garoto na minha classe que é roqueiro, precisam ver que gatinho. O nome dele é Marcelo. Ele se veste com umas roupas estranhas, geralmente de preto, anda com umas correntes penduradas na calça, é cheio de tatuagens e não penteia o cabelo. Ah, é um gato! Imaginem, outro dia, ele me convidou para ir curtir um som na casa de um amigo dele. Eu aceitei o convite e fui. Nossa, precisam ver! Cada gatinho que tinha lá. E as músicas, então, o maior barato, nunca tinha visto nada igual.
Priscila contava sobre o Marcelo muito animada, deu para perceber que tudo aquilo já estava começando a fazer a cabeça dela. Ela continua empolgada:
- Que tal irmos nós três, no próximo fim de semana? O Marcelo disse que vai rolar outro som maneiro na casa de outro amigo dele. Então, topam?
Eu olhei para a Pati meio desconfiada. Ela sorriu e disse que achava uma boa. Pensei mais um pouco e confirmei, animada, minha presença. Até batemos na mão uma da outra para confirmar nossa decisão. Ficou tudo combinado para o fim de semana seguinte.
Eu lembrei que não poderia chegar muito tarde. Embora meus pais fossem meio liberais, nesse ponto ainda eram meio caretas, sabia que eles concordariam com minha saída. Mas iriam exigir que eu chegasse cedo.
- Ah, sim, beleza, a gente volta cedo – disse Priscila – não precisa se preocupar, tudo dará certo. A gente vai se divertir muito, eles são muito animados, embora um pouco estranhos. Eu também não posso chegar muito tarde em casa. Então estamos combinadas, sábado, lá pelas oito, a gente se encontra e vai.

Capítulo 4 – Que balada!

Aquela semana demorou para passar, eu estava ansiosa para conhecer a galera, me divertir, conversar com te nova, diferente, sair da mesmice daquela vidinha cotidiana.
Finalmente chegou o dia da festinha. Lá fomos nós: eu, a Priscila e a Paty. O pai da Priscila passou em casa para me pegar e nos levar para a casa do amigo do tal do Marcelo. No caminho, fui pensando como seria esse Marcelo, será que era um gatinho mesmo? E os amigos dele? Nossa, que expectativa! Quanto mais a Priscila falava dele, mais aumentava minha ansiedade. Conversa vai, conversa vem, chegamos...
- E aí, turma – disse Priscila.
Eu e a Pati ficamos meio sem graça, pois estávamos desenturmadas. Mas não demorou muito para começarmos a conhecer uns gatinhos e nos ajeitar. Foi aí que se aproximou de mim um loirinho, olhos verdes, tipo surfista, muito bonito e simpático:
- E aí, gata, curtindo a festa?
Nossa, que falta de criatividade, que perguntinha banal, comum. Mas fazer o quê. Não podia esperar mais que isso mesmo!
- Claro, tá o maior barato – respondi ainda meio decepcionada com a pergunta dele.
- Poderá ficar melhor ainda se pudermos nos conhecer, ficar juntos, conversar um pouco... sei lá.
- Tudo bem – respondi mais aliviada, afinal melhorou um pouquinho o nível da conversa.
Olhei para os lados e vi que a Priscila e a Paty também já estavam acompanhadas, aí fiquei mais tranqüila. E assim foi rolando a festa. Eu e o Alexandre, ou Alex, como ele gostava de ser chamado, o loirinho de olhos verdes, fomos dançar. Seu papo era igual ao da maioria dos garotos da idade dele, mas vi que era sincero no que dizia e que seu nível jamais poderia me oferecer um papo melhor.
Eu já estava começando a me ligar no Alex. Estávamos felizes, curtindo a festa. Havia muita bebida. Imaginem eu, que não tinha o costume de beber. Nem sequer champanha, que tinha aos montes em casa, eu já havia bebido. Aí, para não ficar de fora, comecei a tomar vodca pura. E de baixo nível. Aquilo começou a subir, fui ficando cada vez mais animada. O som estava legal. Então rolou uma música mais romântica, não sei como permitiram aquilo, até então só tinha rolado rock pesado. Naquele clima meio romântico, o Alex me agarrou para dançarmos e, durante a dança, nos beijamos. No início não gostei muito, mas percebi que eu já não tinha mais controle sobre minhas ações e fui me deixando levar pelo som, pela vodca e pelos beijos do Alex.
Entre uma e outra dose de vodca, ia fingindo estar acostumada. Na verdade, eu estava achando horrível, mas para não pegar mal, fui bebericando. Não demorou muito para começar a ver tudo rodando à minha volta. Comecei a olhar para uma pessoa e ver quatro ao mesmo tempo. Mesmo assim, não desisti, queria ver em que ia dar tudo aquilo.
Depois de mais alguns beijos, uma dança maluca com todos pulando e gritando, e outros goles daquela vodca horrível, não me lembro de mais nada, apaguei. Quando dei por mim, percebi que estava na cama de um hospital.

Capítulo 5 – Decepcionei meus pais

Lá estava eu, na cama de um hospital, tudo rodando. Consegui ver minha mãe ao meu lado, chorando muito. Percebi que eu estava com soro na veia. Vi também meu pai, ali ao lado da minha mãe, calado, me olhando com cara de reprovação.
Depois de um tempinho em silêncio, consegui balbuciar algumas palavras:
— O que estou fazendo aqui, o que aconteceu, mamãe?
— Calma, filhinha, está tudo bem, fique calma, depois falaremos sobre isso.
Fiquei mais um pouco ali no hospital, depois me lavaram embora para casa. Chegando lá, mamãe pediu para a empregada me preparar uma vitamina. Em seguida, me levou para o banheiro e me deu um banho de água fria, aí consegui melhorar um pouco. Mas meu estômago estava mal, sentia-me enjoada, com vontade de pôr tudo para fora.
Mamãe me acompanhou até meu quarto, me fez deitar e meu deu o copo de vitamina. Nem consegui encostar o copo na boca. Mamãe, com sua voz doce como sempre, disse:
— Filhinha querida, converse com a mamãe. Você está com algum problema? Está te faltando alguma coisa? Está com problemas na escola? O que está acontecendo?
— Não, mamãe, está tudo bem, não me falta nada... está tudo bem!
— Então, por que você bebeu tanto? Eu não sabia que você gostava de beber. Nunca tinha visto você se aproximar de um copo de álcool. Por que você teve esse tipo de atitude?
— Calma, mamãe, eu te explico. Na nossa idade, é normal ouvir dos amigos que já passaram por isso que beber não faz mal, que não é legal ficar careta. Eu só bebi um pouquinho e não vi mais nada...
Mamãe tentava me convencer de que aquele tipo de atitude não era correta, pois a bebida prejudica muito a saúde, principalmente de uma jovem como eu. Disse também que eu não devia ficar indo na onda dos outros, que eu deveria ter personalidade, saber julgar o que certo e o que é errado... essas lições de moral que geralmente ouvimos em situações assim.
Depois do conselho, prometi a ela:
— Mamãe, não se preocupe, foi só desta vez, não vai acontecer de novo, eu prometo. Fala pro papai que foi a primeira e a última vez que bebi e que nunca mais vai acontecer.
Percebi que ela ficou muito chateada comigo. Não quis falar comigo, por causa do susto e da decepção que teve.
— Tudo bem, filhinha, vou acreditar em você. Agora, deite-se e tente descansar um pouco. Eu converso com seu pai depois.
Dormi profundamente, ainda sob o efeito daquela terrível bebida. Até que o telefone toca. Ainda meio sonolenta, atendi. Era o Alex querendo saber como eu estava. Tentei disfarçar, pois estava com muita vergonha de tudo o que tinha acontecido, dei o maior vexame na frente da galera. Mas o Alex me consolou:
— Deby, por que você não me disse que não estava acostumada a beber? Eu teria dado um jeito de livrar a sua, quer dizer, eu podia beber no seu lugar, entende?
Para não passar mais vergonha, insisti:
— Mas eu estou acostumada a beber, acho que misturei muito e alguma coisa me fez mal. Ou então é porque eu quase não comi, só bebida faz mal, não é?
Fiquei meio sem graça, mas continuamos conversando por um tempinho. Até marcamos um encontro para o dia seguinte.

Capítulo 6 – A vida continua...

E assim aconteceu. No dia seguinte, já refeita do pileque, eu e o Alex nos encontramos. Esperei-o na saída da escola para não dar mais problemas em casa. Foi um encontro meio rápido, alguns beijinhos e abraços e só. Fui logo para casa, não queria dar motivos para mais um sermão.
Depois de almoçar, deitei-me e fiquei pensando no Alex. Até que eu estava gostando dele. Não era o que eu sempre sonhava, mas também não era de se desprezar. Meus sonhos foram interrompidos por duas batidas secas na porta do meu quarto: eram a Priscila e a Paty. Vieram conversar e saber como eu estava.
A Paty disse que não tinha sentido nada, ela confessou que sempre bebe, já estava acostumada. Disse que sempre sai escondida dos pais para encontrar algum amigo e tomar “umas”. Fiquei perplexa, não imaginei que ela pudesse ser alcoólatra. Se não era, estava a caminho.
Mas a Priscila disse que se sentiu mal. Como eu, não estava acostumada a beber, ainda bem! Achei que eu pudesse estar sendo levada para o mau caminho. Mas também, só vai para o mau caminho quem quer. Como minha mãe disse, é preciso ter personalidade e saber distinguir as coisas certas das erradas. Achei que tinha feito algo errado e estava disposta a não errar mais. Pelo menos dessa forma.
E a conversa prosseguiu, no fim da tarde, eu disse que precisava fazer umas tarefas e elas foram embora.
Quando me sentei para estudar, toca o telefone. Era o Alex. Disse que precisava muito me ver. Procurei disfarçar:
—Mas Alex, a gente se viu ainda hoje, no começo da tarde!
— Gata, eu já estou morrendo de saudades, preciso te ver agora!
Notei que ele estava meio diferente, sua voz estava um pouco mudada e seu jeito de falar não parecia o mesmo. Disse a ele que eu não poderia sair naquele momento, já era quase hora do jantar e esse era o único momento do dia que minha família se reunia. Isso quando papai não precisava fazer algum trabalho extra. Sabia também que, mesmo que pedisse, é lógico inventando uma outra coisa, papai não me deixaria sair.
Então, combinamos de nos ver no dia seguinte, novamente depois da aula.
— Então, gata, não me decepcione nem me deixe esperando. Estou muito ligado em você.
— É claro que não, eu também estou gostando de você!

Capítulo 7 – E assim começa meu drama

Comecei a perceber que eu estava ficando apaixonada pelo Alex. Passamos a nos encontrar todos os dias, sempre na saída da escola para não dar problema. Não sei como meus pais reagiriam se soubessem desse meu caso com ele. Eu só sei que estava gostando muito dele.
Beijos ardentes, abraços apertados, palavras doces, nosso relacionamento começou a ficar quente. Começaram as primeiras carícias mais íntimas, passei a ficar com medo, não sabia se eu iria resistir. Mas também eu sabia que ainda era muito cedo para que rolasse um algo a mais. A partir daquele momento, eu sabia que tudo iria depender de mim, ou esperava a hora certa, ou me entregava de uma vez.
Mas algo começou a me incomodar: algumas vezes em que nos encontrávamos, o Alex estava muito diferente do normal. Falava muito, dava gargalhadas, às vezes enrolava a língua e não conseguia falar direito. Outras vezes, mostrava-se extremamente metódico, querendo as coisas certinhas. Então, de repente, ficava agressivo e dirigia-me palavras ofensivas. Mas depois ele pedia desculpas e eu, é claro, aceitava. Nossa, ele era muito estranho. Era impressionante como mudava de comportamento de uma hora para outra. Mas eu não ligava muito, apesar de ficar um pouco intrigada.
Percebi que, quando a gente está gostando muito de alguém, não ligamos muito para os seus erros. Só enxergamos o lado bom da pessoa. Eu ouvia sempre alguém dizer que “o amor é cego”, mas eu não entendia direito o que significava isso. Foi com o Alex que comecei a entender. Eu até pesquisei, um dia, o significado e a origem dessa frase. Olha só que história legal eu descobri.
Conta a lenda que na Antiguidade, lá pelos lados da Grécia antiga, os sentimentos humanos habitavam um monte e eram todos personificados. Lá viviam o Amor, o Ódio, a Inveja, a Loucura, a Paixão entre outros. Um dia, estavam todos brincando de guerra de espadas, quando, sem querer, a Loucura perfurou os olhos do Amor, deixando-o cego. Ela foi a julgamento. Zeus, o deus dos deuses, deu a sentença: por ter impedido que o Amor pudesse se guiar sozinho, por onde fosse, a Loucura deveria guiar os passos do Amor, para sempre. E assim se fez. O Amor é cego e vem sempre junto com a Loucura.
Sempre lembrava dessa história quando estava com o Alex. Eu relevava muitas coisas erradas que ele fazia, só tinha olhos para ele, tinha muito medo de perdê-lo. Quando fez cinco meses que estávamos juntos, resolvi contar tudo para minha mãe. Sim, porque mamãe sempre foi minha melhor amiga, minha melhor confidente. Ela sempre me entendia, por isso deveria ficar sabendo sobre essa minha paixão desenfreada pelo Alex.

Capítulo 8 – Minha melhor amiga

E assim o fiz. Contei tudo, desde aquele dia do vexame, quando nos conhecemos. Mamãe ouvia tudo, silenciosamente. Depois começou a fazer perguntas: como era o Alex, o que ele fazia da vida, se eu estava mesmo gostando dele, onde morava, como era a família dele, o que o pai dele fazia... foi uma enxurrada de perguntas, aliás eu já esperava por isso.
Mas, infelizmente, eu não soube responder todas elas. Apesar de estarmos juntos havia cinco meses, sabia muito pouco sobre o Alex. Mal sabia onde ele morava. Quando perguntava sobre seus pais, ele me enrolava e acabava não respondendo. Eu achava estranho, mas... o amor que eu sentia por ele era mais forte que minhas desconfianças. O amor é cego mesmo. Eu só sabia que eu estava sendo muito feliz com ele, e achava que isso já bastava. Toda vez que mamãe perguntava sobre ele, eu só sabia dizer:
- Mamãe, eu só sei que estou muito apaixonada pelo Alex. Ele é maravilhoso, me faz muito feliz.
Dizia isso, apesar de saber que ele era meio problemático, mas não disse isso para minha mãe. Naquele dia, conversamos bastante. Mamãe despejou sobre mim toda a sua experiência acumulada em quase vinte anos de relacionamento com papai. Deu-me vários conselhos, falou sobre sexo, alertou-me sobre as drogas, explicou-me sobre a importância do uso da camisinha, embora também me aconselhava muito para me segurar, esperar a hora adequada. Eu só tinha 15 anos. Era muito cedo.
- Bom, filhinha, não sei mais o que falar. Tudo o que era preciso ser dito, já foi. Não posso proibi-la, sei que não vai adiantar. Vi que você está apaixonada e continuaria se encontrando com ele. Mas, por favor, filha, tome cuidado, não se entregue demais a um amor, tenha juízo.
- Sim, mamãe, eu terei. Mas, por favor, não conte nada ao papai ainda. Vamos esperar a hora certa. Sabe como ele é, né? De repente, pode me proibir de sair com ele, não aceitar, sei lá. Vamos esperar a hora certa.
- Sim, tudo bem!
E os dias foram passando. Estava completando oito meses de namoro. Mamãe sempre me perguntava dele. Infelizmente, o Alex estava cada vez pior, cada vez mais estranho, me tratando mal. Mas eu não dizia nada a ela.

Capítulo 9 – Alex abre o jogo

Eu sempre procurava conversar com o Alex. Queria ser muito mais que uma namorada, queria ser uma amiga de verdade. Eu sempre perguntava se ele estava com algum problema. Ele sempre dizia que não. Um dia, depois de eu tanto perguntar e insistir, ele resolveu me contar um pouco sobre a sua vida.
Era órfão de pai e mãe. Seus pais morreram quando ele tinha cinco anos. Primeiro foi o pai. Logo depois, a mãe. Então ele passou a ser criado e educado por uma tia e sofria muito com isso. Disse que isso talvez o tenha feito meio rebelde, agressivo. Cresceu sem o amor e o carinho dos pais. Puxa, isso faz uma falta danada para qualquer pessoa.
Pela primeira vez, ele chorou. Abraçou-me muito forte e desatou a derramar lágrimas no meu ombro. Percebi qual era a origem de todos os problemas dele e daquele seu jeito estranho, ora alegre e brincalhão, ora agressivo e deprimido. Isso foi tudo o que consegui saber sobre ele.
Bom, o tempo foi passando, completaram-se nove meses de namoro. O Alex começou a emagrecer, perder alguns quilos. Garantiu-me que estava fazendo dieta para ficar mais bonito. Mas ele já era muito bonito. Estava sim era ficando feio, magrelo. Ele estava ficando meio franzino, perdendo a massa muscular. Achava estranho, mas não tinha muito o que fazer. Ele quase não me contava nada.
Um dia, ele me convidou para sair à noite. Isso ainda não tinha acontecido. Meu pai ainda guardava um certo rancor daquela noite que bebi muito e fui para no hospital. Não tinha coragem que pedir para ele deixar eu sair. Mas prometi ao Alex que iria conversar com minha mãe. Sabia que com ela eu podia contar. Ela podia me ajudar.
Cheguei em casa e fui direto falar com ela. Argumentei que nunca mais tinha saído à noite, que o Alex era um rapaz muito respeitador e que não teria problema nenhum. Prometi que voltaria cedo e que não chegaria nem perto de um copo de bebida. Ela relutou um pouco, mas como não sabia dizer “não” para mim, acabou cedendo. Disse que inventaria uma história para papai. Fez-me prometer de novo que voltaria cedo, antes da meia-noite. Prometi. Fiquei eufórica, não via a hora.

Capítulo 10 – Uma noite muito especial

Nossa, como demorou para a noite chegar. Passei a tarde pensando na roupa que iria pôr, como arrumaria meu cabelo, que tipo de maquiagem usaria e, principalmente, fiquei sonhando com o Alex. Sair com ele ia ser o máximo. Finalmente chegou o momento. Me produzi toda e saí. E qual não foi minha surpresa ao encontrar o Alex: ele estava de carro. Isso mesmo! De carro! Era o carro da tia dele. Ele já tinha carteira de motorista, por isso foi fácil conseguir emprestado. Era um Escort XR3 conversível, vermelho. Um arraso! Nossa, fiquei muito feliz. Nem podia acreditar. Eu, saindo com o Alex. E de carro! Aquela noite estava prometendo.
Alex estava muito romântico:
- Meu amor, esta noite eu vou te fazer muito feliz!
Entrei no carro radiante. Fomos passear pela cidade. Estava uma noite maravilhosa, lua cheia, céu claro, carro conversível, o Alex do meu lado! Era tudo o que eu mais queria, sonhava sempre com isso. Passeamos pelos bairros bonitos da cidade. Depois, fomos tomar um lanche no MacDonalds. Eu gostava do BigMac e das batatas fritas. Fazia tempo que não comia lá. Depois do lanche, ele me disse:
- Amor, agora vou te levar num lugar muito especial, de onde você poderá ver a cidade inteira, é um lugar bonito e muito romântico.
Enquanto ia dirigindo o conversível, ficou segurando minha mão. Quando parava num farol, me dava um beijo. Ah! Tudo parecia um sonho. Era tudo maravilhoso! Eu implorava a Deus para não acordar mais.
- Chegamos, gata! Aqui é a praça do amor.
Desci do carro e vi que realmente era um lugar especial.
- Alex, como se chama este lugar?
- Praça do Pôr do Sol, gata!
Olhei para os lados e vi muitos carros, com casais namorando. Alguns já embaçados. Alex me abraçou e nos beijamos ardentemente. Começamos a nos acariciar. Na verdade, Alex já estava avançando o sinal. Procurei me conter e seguir as orientações da minha mãe. Mas nessas horas a gente não pensa em nada. Eu estava ficando enlouquecida, já não via mais nada na minha frente, não tinha mais controle sobre meus atos. Essas coisas são muito estranhas. Não tem como explicar. Percebi que algo muito bom estava para acontecer, tal era o clima que havia entre nós naquela hora.
Alex me arrastou para dentro do carro. Travamos a porta e ele fechou a capota, os vidros e voltamos a nos acariciar e a nos beijar. O clima esquentando cada vez mais. Depois de passar a tarde escolhendo uma roupa legal, vi que havia perdido meu tempo. Isso já não importava mais. Nem precisa dizer! Aconteceu! Fui às nuvens, tive uma sensação muito boa, nunca tinha me sentido daquele jeito. Foi algo muito especial. Senti-me preparada para o que tinha acontecido.
Mas quando voltamos ao normal, começou a me bater uma certa angústia. Na verdade, eu comecei a ficar em dúvida se estava mesmo preparada. O impulso foi mais forte que a razão. Naquela hora, parecia que eu não tinha cérebro para me comandar e me dizer que ainda era cedo, que tomasse cuidado, que usasse camisinha, coisas do tipo. Mas eu amava muito o Alex, estava cega, exatamente como dizia aquela história. Não posso negar que tudo foi maravilhoso. Continuamos a nos beijar, mas não comentamos sobre o que tinha acabado de acontecer.
Vi que já era tarde e pedi para o Alex me levar para casa. Eu tinha prometido para minha mãe que voltaria cedo. Não podia trair a confiança dela, senão ela não me deixaria mais sair. Por mim, eu passaria a noite toda com ele. Mas prometi voltar antes de meia-noite. Ele me deixou na porta de casa, me deu um beijo apaixonado, disse algumas coisas no meu ouvido e foi embora.
Entrei em casa meio com medo de que mamãe descobrisse alguma coisa. Que bobagem! Não tinha como ela descobrir. Como mamãe poderia saber que eu e o Alex havíamos transado? Mas a consciência estava meio pesada. Fui dormir, foi minha melhor noite de sono.

Capítulo 11 – E agora?

Bem, depois daquela noite maravilhosa, continuamos a nos encontrar, é lógico. Sempre que possível, dávamos uma escapadinha, fazíamos amor. Eu estava completamente viciada no Alex. Ele me fazia sentir mulher de verdade. Eu já tinha perdido totalmente a razão, minha emoção falava muito mais alto. Passaram-se dois meses de um relacionamento intenso, apaixonado, irracional.
Até que veio o primeiro susto. Me lembrei de um verso de Gregório de Matos, poeta barroco: “Depois da luz se segue a noite escura”. É bem assim. Depois de um momento de muita felicidade, vem a preocupação, a tristeza, a infelicidade.
Minha menstruação era pontual. Todo dia 15 lá estava ela me visitando. Aliás, que visita inoportuna! Mas já era dia 16 e ela não tinha vindo. Estranhei, mas resolvi não encucar. Esperei mais alguns dias... e nada. Comecei a ficar desesperada. Não tive coragem de contar para o Alex, muito menos para mamãe. Chamei a Priscila, minha melhor amiga, para ir até minha casa e contei tudo para ela. Como ela era um pouco mais velha que eu, sabia mais. Podia me dar uns conselhos.
- É melhor consultarmos um médico, ela disse.
- Pri, você ficou louca! Se eu for no médico, minha mãe vai ficar sabendo. Nem pensar!
- Calma, Deby! Minha tia Rose é ginecologista. Amanhã mesmo vou falar com ela, explicar o caso e marcar uma consulta para você. Fique tranqüila!
- Mas Pri, eu estou com medo!
- Calma, minha tia é de confiança, ela só vai examinar, não vai contar nada para ninguém. Ela é uma profissional e por questões éticas deve guardar segredo.
E assim foi feito. Dois dias depois, falei para mamãe que iria fazer um trabalho na casa da Priscila e fui com ela ao consultório. Doutora Rose me fez várias perguntas. Depois me fez deitar numa maca e começou a me examinar. Eu estava desesperada. Era muito estranho.
- Minha querida, sinto muito, mas você pode estar grávida – constatou ela.
- Grávida! Como? Não pode ser! E agora, o que é que eu faço!
- Calma, Débora, por enquanto é só uma suposição. Temos que fazer um exame mais detalhado para confirmar. Vou mandar coletar um pouco de seu sangue e mandar para o laboratório para fazer o teste. Não se preocupe. É sigiloso, só nós duas vamos ficar sabendo, tá? Daqui a dois dias você volta. Vem, me acompanha.
Foram os dois dias mais angustiantes de toda a minha existência. Não conseguia me concentrar em nada, principalmente nas aulas. Chorava sempre que ficava sozinha, mas fazia de tudo para mamãe não perceber nada. Dois dias depois, voltei ao consultório e a Doutora Rose foi logo me acalmando:
- Olha, querida, geralmente quando dou essa notícia, eu fico muito contente, mas não sei se será o caso agora. O teste deu positivo, você realmente está grávida.
G-r-á-v-i-d-a!! Essas sete letras invadiram meu consciente e por alguns instantes fiquei paralisada, extasiada. Meus olhos fixaram um horizonte imaginário e essas letras ficaram por alguns instantes martelando minha cabeça. A doutora Rose e a Priscila procuravam me acalmar, até tentaram me dar uns conselhos, mas nessas horas não há o que falar que possa acalmar uma adolescente, na flor da idade, com um futuro maravilhoso pela frente e... grávida. É esfriar a cabeça e pensar melhor no que fazer.

Capítulo 12 – Mais essa!

Cheguei em casa completamente atordoada. A Priscila me acompanhou, ficou com medo de que algo me acontecesse. Tranquei-me no quarto, não queria que mamãe percebesse meu estado. A primeira coisa que me veio em mente foi ligar para o Alex e contar tudo, afinal, ele era o pai, era ele que tinha que me ajudar. A Priscila achou que eu já deveria ter ligado. A tia dele atendeu:
- Por favor, me chama o Alex, quero falar com ele.
- Quem gostaria de falar?
- É a Deby! Por favor, é urgente!
- Olha, meu bem, o Alex teve um probleminha de saúde e teve que ficar internado.
- Como? O que aconteceu?
- Sim, ele está com pneumonia e terá que ficar alguns dias no hospital.
Parece que fiquei sem o chão. Desabei a chorar desesperadamente, nem consegui acabar de falar. A Priscila pegou o telefone e anotou as informações sobre o hospital, o endereço, o número do quarto, essas coisas. Parecia que o mundo todo havia desabado sobre minha cabeça. Ah, como o Gregório de Matos tinha razão. Era tudo muito bom para ser verdade. Reclamei para minha amiga que era muita desgraça para uma pessoa só. Ainda bem que eu tinha uma amiga de verdade, que se preocupou em me ajudar. Nessas horas, a gente vê o quanto é importante uma amizade verdadeira, sem interesses, é bom ter uma amiga em que a gente possa confiar e contar os problemas, mesmo que ela não possa fazer nada para resolver. Só o apoio de um ombro amigo já é muito importante.
Como minha mãe havia saído para fazer compras, aliás, ela só sabia fazer isso, deixei um recado para ela:
“Mamãe, o Alex está internado e estou indo no hospital com a Priscila para visitá-lo. Por favor, me compreenda e invente uma desculpa para o papai. Prometo que não vou demorar. Te amo. Beijos. Deby.”
Eu estava muito nervosa, achava que não ia conseguir me controlar. Ao mesmo tempo, estava com medo de passar mal e alguém de casa ficar sabendo. Mas fui ao hospital. O amor falou mais alto.
Ao chegar lá, fiquei sabendo que não poderia ver o Alex. Seu estado tinha se agravado e ele foi transferido para a UTI do hospital. Ao receber a notícia, não agüentei. Tudo começou a girar, minhas vistas se escureceram, acho que desmaiei. Ainda bem que eu estava em um hospital. Fui medicada e recuperei logo os sentidos. Mas desatei a chorar copiosamente. E ninguém ali sabia me dizer o que estava acontecendo com o Alex. Mais calma, fui para casa.

Capítulo 13 – O aconchego do lar

Era muito ruim a sensação que eu sentia no caminho de volta. Sentia um peso enorme no corpo, meu coração estava apertado, tinha uma vontade enorme de gritar, espernear, lavar a rua com lágrimas de desespero (nossa essa foi forte!). Mas a Priscila ia me acalmando, conversando comigo. Experimentava uma sensação jamais tida antes. Quando cheguei, mamãe percebeu que eu estava muito mal e veio conversar comigo.
Deitei-me sobre seu colo e comecei a chorar de novo. Mamãe tentava me confortar, dizendo que ele logo iria ficar bom, que era jovem, cheio de saúde e que logo sairia do hospital. Quanto mais ela falava, mais eu chorava. Nem tanto pelo Alex, mas por saber que eu estava grávida e nem imaginava como iria contar isso para ela.
Mamãe, como sempre prestativa e atenciosa, me fez um chá de erva cidreira e me aconselhou a tomar um bom banho. Depois fui direto para cama, não quis comer nada. Estava ansiosa para chegar logo o dia seguinte. Nem precisa dizer que naquela noite não dormi nada. Foi a noite mais longa da minha vida, minha cabeça funcionava a mil.
Amanheceu. Levantei-me, vesti o uniforme e saí para a escola. Só que fui direto para o hospital. Precisava de qualquer jeito ver o Alex. Fui direto ao balcão de informações saber sobre o estado de saúde dele. Uma senhora, bem do meu lado, ouvindo minha conversa com a atendente, perguntou se eu era a Deby. Só consegui balançar a cabeça afirmativamente.
- Oi, querida, eu sou a tia dele. Acho que o Alex já contou de mim para você. Meu nome é Sula. Cuido dele desde pequeno, é como se fosse meu filho.
- Oi, Dona Sula, como ele está?
- Calma, Deby, estive com ele agora pouco. Ele está um pouco melhor e não pára de chamar por você. Disse-me que queria muito te ver. Vamos lá, querida, vou pedir à enfermeira que deixe você entrar e falar com ele.
Rapidamente fomos à UTI. Levei um susto ao vê-lo. Estava branco, com os olhos bem fundos, duas agulhas de soro espetadas no braço, um tubinho enfiado no nariz e alguns aparelhos ligados no peito frágil. Senti um aperto no coração e uma vontade louca de gritar. Procurei me controlar para não piorar a situação.

Capítulo 14 – Mais uma decepção... não agüento mais

Percebi que ele ficou surpreso ao me ver, mas mal podia falar.
- Oi, gata, que bom que você veio!
- Amor, o que aconteceu com você? Como está se sentindo?
Enquanto falava, eu não consegui segurar algumas lágrimas. Ele percebeu, fez uma carinha de tristeza e me disse com a voz bem baixinha, meio rouca:
- Gata, olha bem no fundo dos meus olhos e diz que me perdoa, por favor, diz.
- Alex, calma, do que você está falando? Te perdoar do quê? O que aconteceu? Fala!
- Por eu te amar tanto, fiz algo a você que não poderia ter feito.
- Não estou entendendo.
Alex parece que buscou forças bem dentro dele para continuar:
- Deby, acho que não tenho mais volta. Preciso te contar uma coisa muito séria. Nunca tinha contado isso antes. Já faz tempo que estamos juntos, mas nunca tive coragem de te confessar. Acho que chegou a hora.
- Você está me deixando mais desesperada ainda, o que aconteceu?
- Eu sou viciado em drogas!
Mais desespero, mais angústia ao ouvir aquilo. Ainda bem que eu não sofria do coração, senão teria tido um infarto fulminante. É uma bomba atrás da outra. Não sei até quando vou suportar.
- Alex, o que você está me dizendo? Não é possível! Pare de brincadeira!
- Calma, Deby, me escute, ainda não terminei. O pior ainda está por vir. Me ouça com atenção. Depois que eu contar tudo, você vai me odiar pelo resto da sua vida. Mas não consigo mais esconder. Eu nunca quis te falar a verdade porque sempre te amei muito. Você foi muito importante para mim. Graças a você, estou me livrando desse terrível vício. Sabe, comecei por causa de alguns amigos, para não ficar para trás e não ser chamado de babaca. Experimentei maconha. No começo, achava legal, depois passei a conhecer outras drogas. Usei LSD, crack, heroína... Minha turma era aquela que você viu quando me conheceu na casa do Marcelo. A gente se reunia para curtir um som e tomar uns picos. Era quase todo dia. A gente se virava para arrumar o pó. Cada vez que a gente percebia que uma droga não fazia efeito, ia atrás de outra mais forte, o vício já tinha tomado conta de todos, ninguém conseguia mais se controlar.
Eu ia ouvindo tudo aquilo e chorando. Sentia-me como um pobre negro escravo, sendo açoitado pelo capataz. Cada palavra dele era uma chibatada para mim. Depois de tanta desgraça, nem imaginava que o pior, como ele disse, ainda estava por vir.
- Quando a nossa turma se reunia, a gente só pensava em curtir, nem se preocupava com seringa, com contaminação, essas coisas. Eu só queria viajar. Em uma dessas muitas vezes de pico, aconteceu a pior das viagens, aquela que seria a viagem sem volta. Fui contaminado pelo vírus da Aids.
Não, eu não podia estar ouvindo aquilo. Tudo parecia um terrível pesadelo. Estava torcendo para acordar logo. Mas não tinha como. Era real. Minhas lágrimas acabaram, não tinha mais como chorar.
- Amor, infelizmente eu não tenho mais esperanças, acho que não tem mais volta. Fiquei sabendo da doença dois meses depois que a gente tinha começado a namorar e mesmo assim continuei com você. Eu não conseguia mais ficar sem você, eu te amava demais e não queria te perder por nada nesse mundo. Agora estou sofrendo muito por isso. Olha, como você sabe, a gente nunca usava preservativo quando fazia amor. Você pode estar contaminada também.
Dei um grito.

Capítulo 15 – É muita desgraça para uma pessoa só

- Não, não, não! Isso não pode estar acontecendo comigo – eu berrava tão alto que logo apareceram umas enfermeiras e me tiraram do quarto.
Elas me levaram para uma sala e tentaram me acalmar. Deram-me um comprimido e perguntaram-me sobre meus pais, onde moravam. Acho que queriam chamar alguém da minha família para me levarem embora. Aí a Priscila apareceu dizendo que era minha amiga e que me levaria para casa.
Cheguei em casa e o desespero tomou conta de mim. Eu gritava, me jogava no chão, batia minha cabeça na parede, me esperneava. A Priscila começou a se desesperar por minha causa. Ela não sabia o que fazer comigo. Então ela ligou para a casa de minha tia e perguntou se minha mãe estava lá. Estava. Assim que soube do meu estado, mamãe veio correndo para casa. Ao me ver, tentou me acalmar, mas não tinha jeito, eu estava completamente fora de controle. Era muita desgraça para uma pessoa só. Eu ainda era muito jovem para enfrentar todos esses problemas de uma só vez. Pedi para mamãe sair de perto de mim. Ela me abraçou e começou a chorar ao ver o meu desespero.
- O que houve, Deby, conta para a mamãe.
- Sai de perto de mim, eu não presto, eu não mereço o seu carinho e o seu amor – eu gritava e mamãe ficava cada vez mais assustada.
De repente, num gesto impensado, irracional, comecei a desabafar, nem eu mesmo sei por quê.
- Eu estou grávida! E tem mais, nem eu nem essa criança poderemos viver porque eu estou contaminada com o vírus da Aids. Entendeu agora por que eu estou assim?
Mamãe soltou-se de mim. Percebi que ela começou a passar mal, começou a tremer e me disse:
- Não, querida, você está com problemas, isso não é verdade. Você está alucinada, acalme-se, tudo será resolvido.
- É verdade sim – eu gritei e corri até meu guarda-roupa pegar o resultado do exame – aqui está o exame – e o atirei sobre ela.

Capítulo 16 – Acabei com a minha família

Mamãe, ainda se restabelecendo do susto, pegou o exame e leu.
- Este exame confirma que você está grávida. Mas e essa história de Aids?
- Você não entende mesmo. O problema é que o Alex está lá no hospital, entre a vida e a morte, e ele está com Aids. Se estou grávida, é por que transamos. E se nós transamos sem camisinha, eu também fui contaminada. Será que você entende agora?
Mamãe não agüentou. Desmaiou. Ficou um tempo desacordada. Priscila e eu ainda tentamos reanimá-la, mas o susto foi muito grande. Resolvi ligar para o papai. Ele veio correndo. Quando chegou, ela já estava acordada, porém seu olhar estava fixo num ponto, ela não se mexia, não falava nada, não mexia os olhos. Acho que nem percebeu a chegada dele.
Já que estava tudo perdido mesmo, resolvi contar tudo para meu pai. Mais cedo ou mais tarde ele ia ter que saber mesmo. Respirei fundo. Comecei falando do namoro. Ele ficou vermelho, acho que de raiva. Quando falei da transa, ele quase avançou em mim. Então falei da gravidez. Ele recuou, sentou-se no sofá e ficou paralisado. Ainda tive forças para falar da Aids. Aí foi demais para ele, coitado. Nesse momento, levou a mão no peito, apertou com força e caiu. Teve uma parada cardíaca.
Priscila, sempre ela, ligou para o médico e ele mandou uma ambulância para casa, com uma equipe de médicos e enfermeiros. Todos precisávamos de ajuda. Minha família sempre foi muito certinha. Meus pais, como já disse, sempre procuraram o melhor para mim. Faziam questão de me fazerem feliz. Não negavam esforços para isso. Mas eu quase nunca tinha uma conversa franca com eles. Não me alertavam para os perigos do mundo. O que eu sabia sobre sexo e drogas era através de revistas, livros, televisão ou colegas de escola. Meus pais só sabiam me dar conselhos sobre a escola: estudar bastante, fazer os trabalhos com antecedência, estudar um pouco por dia e não deixar tudo para a última hora.
Até começaram a conversar comigo sobre a faculdade, que carreira escolher, essas coisas. Parece que essa era a única preocupação deles. É lógico que essas conversas valeram muito para mim. Embora eu nunca tenha sido uma aluna exemplar, nunca causei problemas para eles. A não ser quando repeti a quinta série. Mas eles entenderam e me apoiaram.
Agora, minha família estava desmoronando sobre meus pés. É como se uma tempestade tivesse caído sobre nossa casa. Era tudo tão trágico, que em alguns momentos achava que era um pesadelo e que a qualquer momento eu iria acordar de tudo aquilo e ver que não passou de um terrível sonho. Mas, infelizmente, era pura realidade, a dura realidade da minha vida de adolescente paparicada e inconseqüente.
Mais tarde, todos já estávamos medicados. Eu já estava mais calma, mais conformada, mas ainda não conseguia aceitar tudo aquilo. Mamãe se mostrou muito forte. Meu pai ainda estava meio debilitado. Foi necessário que os médicos tivessem um cuidado maior com ele. Na hora, fizeram massagens no coração para reanimá-lo, até quiseram levá-lo de ambulância para o hospital, mas achamos que não seria necessário. Talvez depois de uma boa noite de sono pudesse melhorar. Naquela noite, à base de sedativos, dormimos muito. Na manhã seguinte, logo cedo mamãe foi no meu quarto:
- Filhinha, acorde, vamos ao médico. Quero que ele peça todos os exames que forem necessários. Vamos ver que tipo de tratamento cabe no teu caso. Seu pai também vai, precisa de uns exames cardiológicos.
Eu não tinha como negar, falar não. Fomos. A primeira coisa que o médico fez foi pedir um teste de HIV. Quanto à gravidez, nenhuma dúvida. Além do exame que eu já tinha feito, meu corpo já estava sofrendo as primeiras transformações. Eu era magra, de corpo bem torneado, o que chamava muito a atenção dos garotos da minha escola. Mas já se percebiam as primeiras mudanças. No dia seguinte, o desespero aumentou...

Capítulo 17 – O que fazer?

O médico nos atendeu com o resultado dos exames na mão. Nem precisava nos acalmar, pois já imaginávamos o que estava acontecendo. Não deu outra: positivo. Eu estava contaminada com o vírus HIV. Grávida e aidética, com quase 16 anos de idade. Eu, que ainda tinha uma vida inteira pela frente, começava a ver meu futuro ficando para trás. Meus sonhos, meus desejos, minhas vontades... tudo começava a desaparecer da minha frente. Eu já nem sabia mais o que pensar. Quantos sonhos estavam sendo impedidos de se realizarem naquele momento. Quanta vida estava sendo enterrada, deixada de ser vivida.
O médico ainda sugeriu:
- O melhor seria não deixarmos a criança nascer, ela poderá estar contaminada também. Sofreria muito. Não é aconselhável.
- Não! Gritei pulando da cadeira – isso não. Eu quero ter meu filho e cuidar dele. Não vou fazer aborto. Meu filho vai conseguir se curar, não vai ter o mesmo destino que a mãe. Pelo menos, ele merece ter a chance de viver. Não quero acabar com uma vida antes de nascer.
Minha mãe concordou comigo. Não sabia de onde ela tirava tanta força para suportar aquela dor. Sabia que ela estava sofrendo muito, mas não queria demonstrar isso para mim. Eu comecei a me preocupar muito com meu pai. Ele, quando soube do resultado do exame, voltou a ficar mal. Precisou ser levado novamente para o hospital. Ficou internado para mais uma série de exames. De pensar que eu, justo eu, era responsável por tudo aquilo. Sentia um aperto no coração, uma dor quase que insuportável.
Depois de alguns dias, meu pai saiu do hospital e decidimos nos tratar no Exterior. Eu não tinha coragem de ir ver o Alex. Não queria mais que ele soubesse que eu estava esperando um filho dele. Todos os dias eu ligava para a tia dele. Seu estado de saúde continuava inalterado. Um dia, ele demonstrava uma certa melhora, depois piorava. Não estavam conseguindo controlar a pneumonia devido ao vírus HIV, que prejudica o sistema imunológico, dificultando a cura de qualquer doença, por mais simples que seja.
Eu, que já era magra, não tinha mais vontade de me alimentar, não sentia mais fome, não queria mais ir para a escola. Não tinha a menor vontade de sair de casa, conversar com os poucos amigos que tinha. Eu estava com o organismo muito debilitado. Como já estava perto do final do ano letivo, minha mãe conversou com o diretor da escola, contou o problema que eu estava enfrentando e ele permitiu que eu fizesse as últimas avaliações e trabalhos em casa. Como minhas notas estavam boas, não ia ter problemas para ser aprovada. Mas também, de que valia ser aprovada.... não ia servir para nada mesmo! Para que continuar estudando? Estudo é muito importante para o futuro e eu já não tinha mais futuro...

Capítulo 18 – A última tentativa

Mesmo sem sair de casa, peguei um forte resfriado. E assim começaram meus problemas mais sérios. Hoje era uma coisa, amanhã outra... e assim os dias foram passando. Quase todos os dias tinha que ir ao hospital. Tomava soro, remédio. Passava mais tempo no hospital do que em casa. A cada agulhada, eu ficava prestando bem atenção na enfermeira, para ver se ela jogava a seringa fora. Eu exigia que ela me mostrasse as seringas no lixo. Pelo pouco que eu sabia, agulhas também eram uma forma de contaminação do vírus. Não queria que mais ninguém no mundo tivesse o mesmo sofrimento que eu, o Alex e minha família.
O pior de tudo ainda continuava sendo a gravidez. Eu não conseguia aceitar que meu filhinho, um ser ainda em formação, tivesse que pagar por um erro que não havia cometido. Ele não era culpado. Eu fui culpada por tudo, só eu tinha que pagar por isso.
No começo de dezembro, fomos para os Estados Unidos. Eu fui tentar alguma forma de tratamento para prolongar um pouco mais minha tão sofrida e jovem vida. Meu pai foi fazer um tratamento no coração. Precisou até fazer uma cirurgia para desobstruir uma veia que poderia lhe causar um infarto a qualquer momento. Fiz um tratamento caríssimo, em poucos dias passei a me alimentar melhor, embora não gostasse muito da comida de lá. Meu pai gastou uma fortuna: hotéis, médicos, cirurgias, remédios... não sei se valia a pena tanto sacrifício.
Alguns dias antes do Natal, retornamos para casa. Não havia mais muita coisa a se fazer por lá. Meu pai não queria deixar os negócios nas mãos de empregados por muito tempo. Assim que cheguei, fui correndo ligar para a tia do Alex. Esperava, pelo menos, que ele já tivesse saído do hospital. Ela atendeu chorando:
- Deby, querida, tenho notícias muito tristes para você. O Alex estava muito mal e não resistiu. Partiu.... para sempre. Amanhã faz sete dias. Até mandei rezar uma missa.
Aquela notícia partiu meu coração em mil pedaços. Desliguei o telefone e chorei, chorei muito, embora eu não tivesse mais lágrimas para derramar. Nunca mais ia poder ver o grande amor da minha vida. Nunca mais eu ia poder beijá-lo, abraçá-lo, acariciá-lo. Era tudo muito triste. Passei a mão em minha barriga para ver se eu sentia um pedaço do Alex que tinha sobrado dentro de mim.
Meu desconsolo era total. Meu pobre filhinho, além de poder estar com essa terrível doença, ainda iria nascer sem pai. É muito duro ficar sem pai ou mãe. A gente sofre muito. E meu filhinho nem ia poder conhecer seu pai. Contei a meus pais sobre a partida do Alex, eles também ficaram muito tristes, apesar de acharem que ele era o culpado por tudo o que estava acontecendo comigo. Eu sabia que meus pais jamais o perdoariam, eles não achavam que o maior erro tinha sido meu. Eu não deveria ter me entregado de corpo e alma a um grande amor. Ainda era muito cedo. Eu deveria ter me preocupado com outras coisas mais importantes, como a escola, minha família e, principalmente, com o meu futuro. Afinal, eu ainda tinha uma vida inteira pela frente.
Bem, o Natal estava próximo. Mas o espírito natalino não tinha tomado conta de nós. Natal é a celebração do nascimento, da vida. Para nós, era tudo ao contrário. Não tínhamos o que festejar, nem ânimo para comemorar. Aquela noite de Natal foi, sem dúvida, a mais triste de nossas vidas. Meus poucos parentes, que já sabiam de todas as desgraças, fizeram questão que fôssemos passar o Natal na casa deles. Mas não queríamos estragar a festa deles e resolvemos ficar em casa. Só nós quatro: eu, meu pai, minha mãe... e meu filhinho.


Capítulo 19 – Ano novo, vida velha

No começo do ano, completei 16 anos. Não quis nenhuma festa, nenhum tipo de comemoração. Comecei a me lembrar de um ano atrás. Eu estava fazendo 15 anos. Era a pessoa mais feliz do mundo. Minha festa foi linda, muitos convidados, um salão luxuosíssimo. Eu usava um vestido rosa com bordados brilhantes. Todos elogiavam minha beleza e luxúria. Eu me sentia a pessoa mais famosa do mundo. Todos os olhares voltavam-se para mim, sentia-me deslumbrante, uma princesa, aquelas dos contos de fadas. Até as colunas sociais do jornal noticiaram aquele acontecimento. Depois da festa, a viagem. Foi tudo maravilhoso. Ah! Se eu pudesse voltar no tempo...
Naquele ano, decidi que não iria estudar. Não iria conseguir ir todos os dias para a escola. Além de estar um pouco debilitada, eu não queria ser alvo de preconceitos. As pessoas não eram bem informadas. Sei que iria sofrer muito e queria me poupar. Eu não tinha a pretensão de ser o alvo dos comentários, de ficar afastada de todos, não queria criar um mundo só meu, trancado, sem poder andar por entre as pessoas e não ser notada. Meus pais não gostaram da idéia, mas aceitaram minha decisão.
Quando completei cinco meses de gravidez, comecei a passar mal. Estava muito fraca, minha barriga começou a doer muito, não conseguia parar em pé. minha mãe, para variar, correu comigo para o hospital. Cheguei lá com uma forte hemorragia e fui logo atendida e levada para a sala de semi-UTI. Sentia o sangue escorrer pelas minhas pernas. Os médicos fizeram de tudo, mas não conseguiram evitar. Abortei... perdi mais uma vida dentro de mim. E o pior... não era a minha vida. Naquele momento, senti que nada mais no mundo podia me abalar.
Fiquei dois dias internada. Agora nem a lembrança do Alex, que me restara, eu tinha mais. Eu era uma futura mãe, sem um futuro filho e sem um futuro pai para ele. O futuro, para mim, estava virando passado. Um passado que ainda estava por vir. Nossa! Não sei de onde tirava forças para ter essas reflexões.
Voltei para casa. Aí foi a vez de meu pai ficar mal. Seus problemas no coração voltaram. Não sei se foi pelo nervoso que estava passando ou se a cirurgia que fez nos Estados Unidos não tinha dado bons resultados. Graças a Deus que minha mãe ainda encontrava forças para cuidar de nós dois. Ela tentava ser forte o bastante para não se deixar abater tanto, sabia que ela era a nossa única esperança. Uma esperança que teimava em ficar, insistia em permanecer ao nosso lado. Só minha mãe poderia cuidar de nós. Ela não podia entregar os pontos.

Capítulo 20 – Mamãe ainda tinha forças

E assim os meses foram passando. Meu pai confiou a empresa a um diretor e de vez em quando passava por lá para ver como andavam as coisas. O dinheiro que ele ganhava já não era mais tão necessário quanto antes. Eu não queria mais sair de casa, não queria comprar mais nada. Roupas, passeios, sapatos, nada mais me atraía.
Cada dia que passava era uma tortura para mim. Quando a gente tem essa doença e com apenas 16 anos, não temos estrutura para suportar e lutar contra esse mal. Para mim, não havia mais esperança, a não ser esperar minha hora. Eu achava que ainda ia poder ver o Alex, meu amor. Achava que poderia me encontrar com ele em algum lugar lá no paraíso. Eu sempre ouvia falar que as pessoas se encontravam depois de morrer. Não sabia se isso era verdade, mas queria acreditar que fosse. Quem sabe até meu filhinho eu pudesse encontrar e vivermos os três muito felizes.
Mamãe lutava muito para não me perder. Constantemente me levava ao médico, fazia tudo o que ele mandava. Tomava os devidos cuidados para eu não pegar nenhuma doença, pois poderia ser fatal. Ela já não gostava mais de sair para fazer compras, nem cuidar da casa. Deixava tudo por conta das empregadas. Seus dias se resumiam em buscar força e esperança para passar para mim.
Eu sempre conseguia ver uma gotinha de esperança nos olhos dela. Acho que isso que ainda me dava um pouquinho de força para continuar lutando. Seu olhar era esperançoso, sabia que ela não queria me perder para sempre. Lógico, nenhuma mãe quer perder o filho, se bem que de vez em quando a gente vê cada uma... Mas a forma que minha mãe me tratava, cuidava de mim, fazia com que eu sempre pedisse a Deus que me deixasse ficar mais um pouco junto dela.
As visitas ao médico passaram a ser constantes. Eu sempre tinha algum exame para fazer, para saber se eu tinha alguma doença. Aprendi sobre uma tal de medicina preventiva. Sempre procurava tomar os cuidados que o médico aconselhava. Minha mãe ouvia os conselhos dele com muita atenção e fazia tudo direitinho, conforme ele orientava. Assim, o tempo foi passando...
De tanto mamãe lutar, foi que consegui ter uma pequena melhora. Já era outubro, estava fazendo um ano que começava o pesadelo. Papai também estava um pouco melhor, já estava voltando à vida normal. Ia todos os dias à empresa, passou à frente dos negócios novamente. Não queria que nada me faltasse. Só pensava em trabalhar para ter dinheiro para o meu tratamento. Mas ele não aceitava, de jeito nenhum, minha doença e tudo o que tinha acontecido comigo.
Chegou dezembro. Eu já me sentia um pouco melhor. Mamãe já estava até planejando uma festinha de Natal. Ela se mostrava uma pessoa muito forte. Não sei de onde vinha tanta força. Bem, pelo menos, quando a desgraça é muita, alguém tem que ficar firme, em pé, para poder segurar os outros. Mamãe cumpria muito bem esse papel. Se não fosse ela, acho que papai não teria melhorado e retomado os negócios. Quanto a mim, sempre me tratando com tanto amor e carinho que isso me confortava, me deixava, de certa forma, feliz. Fazia-me retomar a esperança e ainda encontrar forças para viver. Sabia que ela ia sofrer muito quando eu partisse, por isso eu me esforçava ao máximo para não me entregar e não fazê-la sofrer mais.

Capítulo 21 – Eu só queria um sorvete

Infelizmente, comecei a perceber o quanto as pessoas são preconceituosas. Nossa vida mudou muito depois da minha doença. Os vizinhos não falavam mais conosco, nossos poucos parentes desapareceram. Uma vez ou outra alguém ligava, acho que era só para saber se eu ainda estava viva. Visitas, então, nem pensar. Nossa casa secou. Antes, quase todo dia tinha alguém em casa, queriam se aproveitar um pouco da vida boa que levávamos. Os jantares, em casa, sempre eram da melhor qualidade; as festas, então, tudo do bom e do melhor. Eu até que percebia nas pessoas um certo olhar de inveja, de aproveitadores.
Nossa amizade era muito concorrida por causa da estrutura de vida que nós tínhamos. É verdade que muita coisa mudou de um ano para cá, mas com papai retomando os negócios, poderíamos voltar a ter uma vida boa. Boa, mas não normal.
As pessoas são muito desinformadas. Muitos pensam ainda que ficar perto ou dar um aperto de mão em um aidético, pode ficar contaminado. Talvez por isso as pessoas tenham se afastado de nós. E por telefone sabiam que não seriam contaminados. Por isso que ainda ligavam... de vez em quando.
Mas eu nem ligava. O que faltava dos outros, mamãe e papai me davam em dobro, em triplo. Muitos beijos, muitos abraços, muito carinho, muita conversa. Percebi quanto tempo eu perdi da minha infância e juventude, quantos beijos e abraços deixei de dar, quantos carinhos deixei de receber. Antes da doença, nós éramos meio frios um com o outro. Acho que é porque não tínhamos tempo um para o outro. Mas isso não é verdade. Tempo todos nós temos, é só querer, que ele aparece.
Bem, um dia me deu uma vontade louca de tomar sorvete. Sempre fui louca por um geladinho. Adorava sorvete de flocos, aqueles com pedaços bem grandes de chocolate. Mamãe me explicou que coisas geladas não eram aconselháveis para quem sofria dessa doença, pois se tivesse uma gripe qualquer, a situação podia se complicar. Mas eu nem queria saber dessas hipóteses. Insisti tanto, que meus olhos brilhavam de vontade. E, como sempre, mamãe não soube dizer não a um pedido meu. Disse que voltaria logo e saiu. Faltava uma semana para o Natal. Achei que ela tivesse ido comprar alguma coisa para nossa festinha. Mas qual não foi minha surpresa, quando ela chegou com um pote de sorvete de flocos. Minha boca encheu de água.
Mamãe disse que eu podia tomar, mas só um pouquinho. Fiquei tão feliz, que parecia uma criança. Minha vontade era tanta, que sentia o gosto de cada pedacinho de chocolate quando descia pela garganta. Pedi mais um pedacinho. E mamãe atendeu mais um pedido meu. Mal sabia ela que aquele era o último deles.

Capítulo 22 – Chegou o fim

À noite, comecei a me sentir mal. Sentia uma forte dor de cabeça e tremia muito de frio. Ainda consegui ir até o quarto e chamar mamãe. Ela acordou desesperada. Eu suava e tremia.
- Nossa, querida, você está muito quente. Deve estar com muita febre. Vamos correr para o médico.
Acordou papai e me lavaram de novo para o hospital. Eu estava com quarenta graus de febre. O médico mandou que eu ficasse na semi-UTI em observação. Olhei para mamãe e a vi chorando. Fazia tempo que isso não acontecia. Até acho que ela chorava muito, mas nunca na minha frente. Papai, desesperado, andava de um lado para outro.
Lembro-me de que uma equipe grande de médicos e enfermeiros estavam ao meu redor, não paravam de conversar. Estavam tão desesperados quanto papai e mamãe. Uma enfermeira me colocou uma máscara de oxigênio enquanto outra tentava achar minha veia para furar o colocar soro. Comecei a escutar aqueles barulhinhos de aparelhos de hospital. Outra enfermeira me enfiou um tubo fino pela boca e prendeu com um esparadrapo. Eu não conseguia mais me mexer, de tanta coisa que puseram em mim.
De repente, comecei a me sentir meio estranha. Eu sentia uma incrível sensação de liberdade, meu corpo parecia que flutuava. Minhas pernas estavam leves, minha cabeça meio adormecida. Parecia que eu estava ficando curada, como num passe de mágica. Já não tinha mais nada, vi apenas duas enfermeiras na sala, vestidas de branco e com um véu na cabeça. Não tinha mais tubo de oxigênio nem agulhas espetadas no braço.
Então levantei-me. Fui até a porta do quarto e notei um ar de felicidade nas pessoas que estavam ao meu redor. Todas estavam vestidas de branco e com véus na cabeça. Eu andava leve pelo corredor do hospital. Conseguia pular, dar risada. Até que cheguei na sala de espera e vi papai e mamãe sentados, chorando.
Uma alegria muito grande tomou conta de mim. Sabia que aquele choro deles ia acabar logo, assim que vissem que eu estava curada. Fui me aproximando deles. Queria que eles olhassem para frente para poderem me ver curada. Mas era estranho, eu não conseguia chegar até onde eles estavam. Eu me sentia leve demais. Fazia uma forma enorme, mas não conseguia sair do lugar.
Foi então que chegou um homem de branco e disse a eles:
- Vocês são os pais da Débora?
- Sim, somos nós mesmos, doutor. Como ela está?
- Fizemos tudo o que foi possível, mas a febre e a gripe eram muito fortes. Seu corpo não resistiu. Sinto muito...
Minha mãe deu um grito muito forte. Meu pai caiu desmaiado no sofá. Imediatamente vieram duas enfermeiras. Comecei a ficar desesperada. Tentei avisá-los que eu estava viva e curada. Eu estava ali, bem do lado deles. Mas não conseguia, eles não me viam. Parece que naquele momento ninguém me via. Nossa, que sensação estranha tive naquela hora. Misturavam-se sentimentos de felicidade e desespero.
Percebi, então, o que tinha acontecido. Deus resolvera me levar para junto dEle e deixar, na terra, duas pessoas sofrendo por isso. Sofrendo por uma coisa de que não tinham a menor culpa. Sofrendo por um simples ato inconseqüente, irracional, de uma garotinha mimada que tinha uma vida e um futuro imenso e bonito pela frente. Mas que se deixou levar por um momento de amor, por um ato que durou alguns minutos, mas que acabou com toda uma vida. Aquilo que fiz foi bom, mas durou pouco. É esse o segredo da vida: tudo o que é bom, dura pouco. Por isso é melhor que não seja tão bom, para durar muito.
E eu ainda não tinha feito dezoito anos. E não faria. Nunca mais.