Um esboço histórico acerca da expressão da musica sacra

Por Suelayne O. Andrade, graduada em História pela UFS.


Este artigo apresenta um esboço acerca da história da música sacra utilizando-se de textos que tratem do papel da música na comunidade cristã primitiva e sua evolução na história da igreja, levando em consideração a importância de tal arte nos cultos cristãos.
O objetivo é expor ao leitor uma breve colocação sobre a música sacra a partir de um ponto de vista histórico. É necessário salientar que aqui não há um esgotamento das fontes e teorias que são precisas para compreender os caminhos percorridos na história da música e da religiosidade, mas, expondo os aspectos da história cultural, na busca do conhecimento sobre a significação da musica na tradição religiosa.
A presença da música nas atividades religiosas está retratada em vários textos bíblicos (II Samuel 6:5, Mateus 26:30, I Timóteo 1:17,3-16, Isaías 6:3, etc.) desde o Antigo Testamento até as primeiras comunidades cristãs, a música sempre esteve relacionada a festa, e esta no seu sentido religioso também tem sua forma celebrativa em homenagem ao Deus Criador e Triunfante.
O espírito da musicalidade exaltado no ser humano possui a característica de expressar os sentimentos e desejos da alma humana, levando a perscrutar os caminhos do seu interior aproximando o ser das coisas divinas. Entretanto, antes de caminharmos pela história da música sacra é necessário entendê-la a partir de seu conceito, tarefa um tanto árdua, já que existe certa complexidade. No entanto, definindo-a "num sentido mais restrito pode ser conceituada como a música erudita própria da tradição religiosa judaico-cristã e em sentido mais amplo é usado como sinônimo de música religiosa, que é a música nos cultos de quaisquer tradições religiosas."



Um breve histórico

A igreja cristã absorveu elementos e características musicais do mundo inteiro, a medida que ia se espalhando pelas diferentes sociedades. A prática de cantar hinos e salmos nas reuniões destinadas à prática religiosa cristã, desde os seus primórdios está documentada em Mat. 26:30 e Mar. 14:16, onde diz: "Terminado o canto dos Salmos, saíram para o monte das Oliveiras".
Os primeiros séculos da igreja cristã a música adquiriu características gregas e das sociedades mistas oriental-helenística do Mediterrâneo, porém, os cristãos procuraram rejeitá-las à medida que aumentavam o número de convertidos tendo, assim, por objetivo o desligamento com o passado pagão.
A herança judaica proveniente da origem do próprio cristianismo não está confirmada pelos historiadores, já que não há documentos que possam comprovar tal afirmação. Porém, segundo GROUT e PELISCA (2007) há um paralelismo entre os cultos realizado entre uma e outra religião, já que a missa é um sacrifício simbólico e os judeus praticavam sacrifícios no templo. A primeira memorial da ultima ceia de Cristo possui características das refeições judaicas dos dias de festa, como a refeição ritual da Páscoa, que era acompanhada por música cantada, podendo assim, levar em consideração o meio cultural em que os primeiros cristãos viviam. Este modelo das refeições judaicas perdurou durante os séculos no culto cristão, o qual foi tomando características próprias. Alguns cantos e hinos, como a recitação dos Salmos, podem ter sido preservados de forma intacta, como também outras melodias provenientes dos manuscritos do canto romano antigo, tais cantos são considerados um dos grandes tesouros das civilizações do Ocidente.
À medida que a igreja vai expandindo-se e adquirindo características próprias, firmando seu caráter proceletista os cantos e hinos também começam a tomar seus elementos destiguindo-se do profano. A tarefa de separar o profano do sagrado sempre foi uma atividade exaustiva da igreja, esta separação culmina na idéia de aproximação com as coisas divinas. Da mesma forma a arte musical "sagrada" tem por seu objetivo elevar a contemplação divina e por ser uma arte agradável que provoca a emersão dos desejos mais íntimos envolvendo o ser, esta deve aproximar o humano da beleza perfeita, teoria esta proveniente do pensamento existente na Idade Média, onde a beleza perfeita provém do divino. Durante o período medieval a música torna-se serva da religião, porém, tal compreensão não se restringe a este período, a igreja Católica passa a aceitar a arte musical e concebê-la como serva ao longo dos séculos e das diferentes sociedades.
O momento de esplendor da música sacra surge com o canto gregoriano, uma das fontes de origem da música ocidental, foi difundida por missionários cristãos que percorriam a cidade de Roma durante a Idade Média, até hoje é considerada uma das formas mais erudita de expressão da música sacra. A partir daí os cultos da igreja e as missas solenes passaram ganhar aspectos mais nobres com entoação de cantos e acompanhamentos feitos por instrumentos como oboés, violino, órgãos e tantos outros considerados como parte do belo e do nobre, assim como deveria caracterizar as coisas relacionadas ao divino, tais instrumentos utilizados no ambiente sagrado tornou perceptível à identidade nobre e solene que é facilmente associada ao sagrado.
Acompanhando a dinâmica da arte com surgimento de novas expressões artísticas, como a época romântica (Bruckner, Gounod, César Franck, Saint-Saëns) complementando o esplendor das catedrais e as variadas expressões do Barroco (Bach, Haendel), do Classicismo (Haydn, Mozart, Nunes Garcia), do Renascimento (Arcadelt, Des Près, Palestrina) e do Modernismo (Penderecki, Amaral Vieira).
Ao mesmo tempo em que a música passa a se tornar cada vez mais elemento essencial no culto, já que esta possui o poder de atrair e influenciar o espírito humano, envolvendo-o numa atmosfera referente ao sagrado, a Igreja passa a tomar posicionamento, orientando as comunidades para que não houvesse excessos. A primeira medida a este respeito está descrita no documento referente ao Concílio de Trento.

"Todas as coisas, deverão na verdade, ser ordenadas por forma que as missas, quer celebradas com canto, quer sem canto, cheguem tranquilamente aos ouvidos e aos corações dos que as escutam, quando tudo é executado com clareza e ao ritmo certo. No caso das missas que são celebradas com canto e com órgãos, não deverá permitir a presença de qualquer elemento profano, mas apenas hinos e louvores a Deus. Qualquer concepção do canto em modos musicais deverá destinar-se, não a dar ao ouvido um vão prazer, mas a permitir que as palavras sejam claramente entendidas por todos e, assim, os corações dos ouvintes sejam tomadas pelo desejo das harmonias celestiais, na contemplação da beatude dos eleitos [...] Deverá também banir-se da igreja qualquer musica que contenha, quer no canto, quer no órgão, coisas que sejam lascivas."


Quando a Igreja viu-se na necessidade de reafirmar seus dogmas e corrigir o clero regular, diante da desordem em que se encontrava, a Igreja reuniu-se em concílio para uma "padronização" de seus cultos, estas regras chegaram ao Brasil em 1707 através das constituições do Arcebispado da Bahia, também determinando como os súditos deveriam "louvar ao Senhor".

"Conformando-nos o que esta disposto pelo Sagrados Concílios, e desejando que todos os nossos súbditos louvem a Deos nosso Senhor na reza do Officio Divino imitando aos Anjos, cujo este officio é, encarregamos, e com amor paternal os admoestamos, que quando houverem de entrar no Coro a rezar, ou houverem de fazer fóra delle, deponhão todos os outros no interior de sua alma, cuidando o que vão fazer fora delle, deponhão todos os outros pensamentos alheios daquelle acto; e juntamente se componhão no exterior do corpo, e sentidos delle, para que dem a Deos nosso Senhor o culto, que lhe é devido, e cresção, como devem, na devoção."

A trajetória da música na história da religiosidade perdura até a contemporaneidade, onde é possível perceber a importância em que ela tem tomado em relação aos serviços religiosos, a introdução de novos instrumentos e técnicas que variam com as tradições e a cultura dos diferentes povos, respeitando o conceito de sagrado e profano e as doutrinas católicas no que diz respeito à tradição das solenidades da missa e dos ofícios praticados pela igreja. Porém, quais são os momentos em que a música torna-se oração na celebração eucarística? Qual o significado de cada momento cantado e a função do canto e nos mais variados momentos de celebração? Estas questões poderão ser respondidas em seqüência, pois, após tratarmos superficialmente da trajetória da música na religiosidade cristã, poderemos compreender sua função nas celebrações.



A função da música nos serviços religiosos


A música tem o poder abarcador de influenciar e envolver os indivíduos num sentido comum. Esta na sua essência litúrgica possui a função de reunir a comunidade religiosa num momento de contemplação e aproximação com as coisas celestiais, o canto exprime os anseios da alma em reconhecer a divindade como parte do cosmo não atingível pela humanidade.
A princípio o canto era somente utilizado para se celebrar os ofícios divinos e as horas canônicas, normalmente realizadas de forma conventual. Nas missas a música era utilizada nos momentos solenes diferentemente da nossa contemporaneidade onde toda celebração tem seu caráter solene. A missa pode ser solene que seria a forma plena do cerimonial, onde reúne um considerável número de cantos entoados pelo celebrante, pelo diácono e subdiácono, além do cantochão (canto polifônico) interpretado pelo coro e pela congregação. Há ainda a missa rezada, nesta as palavras são ditas e não cantadas, é uma versão mais simplificada onde somente o padre desempenha todas as funções referentes à missa solene. A missa cantada é o compromisso moderno entre as duas missas anteriormente citadas, onde há único celebrante e é assistido pelo coro e pela congregação.

A missa é memória, sacrifício e comunhão, sua celebração permite aos fiéis o acolhimento dos frutos espirituais entre eles o de tornarmos deíficados, já que o ato de comungar torna o corpo sacrário vivo. Porém, é necessário que a comunidade esteja compenetrada e envolvida no mistério escatológico da celebração eucarística, deve-se estar aproximado de um plano celestial, e se a música influencia e envolve os indivíduos para uma realidade de meditação e de exteriorização da alma, sua importância nas diferentes partes litúrgicas que comporta a missa é de fundamental importância para se cumprir o objetivo do culto, que é colher as graças pertencentes aos frutos espirituais.
A música sacra que comporta textos religiosos possui algumas formas que estão enquadradas na liturgia da missa, como os conhecidos motetes (peças musicais baseadas nos textos religiosas, quase sempre em latim), possuindo seis partes básicas: o Kyrie, Glória, o Credo, Sanctus, Benedictus e Agnus Dei, e há ainda o réquiem, ou missa dos mortos que possui todas as partes anteriormente citadas e ainda as: Dies Irae, Confutatis, Lacrimosas etc.
A liturgia da missa está dividida em duas partes: a liturgia da palavra e a liturgia eucarística. Os elementos que envolvem estas diferentes partes foram sendo acrescentados em momentos e lugares diferentes, mas desde o ano 600 já havia livros de instruções para os celebrantes garantindo assim uma padronização da celebração religiosa do catolicismo, porém sendo sempre adaptada às reformas colocadas como necessária pela Igreja nos diferentes Concílios que ocorreram na história.
Na introdução da missa composta pelo Intróido e a colecta, são cantados o Kyrie e o Glória, após a entrada do celebrante e o ato de contrição o coro canta o Kyrie eleison (Senhor tende piedade de nós) e o Christe eleison (Cristo tende piedade de nós), ambos seguidos de três repetições e em seqüência, excetuando-se nas épocas penitenciais o Glória é iniciado pelo padre com "Glória a Deus nas Alturas" e continuado pelo coro a partir de "E paz na Terra". A introdução convida a comunidade a um momento de reflexão entoado pela música, envolvendo um clima de piedade e seguido por um momento de exaltação e louvor ao Deus criador do mundo, uma maneira alegre e expressiva assim como o coro dos anjos em louvor ao menino Jesus na manjedoura (Lucas 2: 13,14).
A parte correspondente a liturgia da palavra composta por orações e a leitura das epístolas do dia, seguida respectivamente do gradual e do aleluia feito por um solista com resposta do coro , em épocas penitenciais é substituído pelo tracto que foi muito comum no período medieval. Após a leitura do evangelho segue-se a profissão da fé ou credo, iniciado pelo padre pelo "Creio em Deu Pai", o qual pode ser recitado ou cantado. A liturgia da palavra é um momento de celebrar a palavra de Deus através dos escritos sagrados da bíblia, também ocasião de professar a fé nestas palavras e na fé difundida pela Igreja. É o momento de afirmação e por tal de solenidade e aprofundamento da alma segundo a bíblia e os dogmas da Igreja.
O credo é o marco do fim da primeira parte da missa e início da liturgia eucarística, celebração da memória e do sacrifício de Cristo pela humanidade, o mais completo ato de caridade cristã deve ser imitado pelos fiéis participantes da comunhão e membros do corpo da Igreja. A liturgia eucarística é composta pelas seguintes partes: Ofertório, momento de oferecimento, sacrifício e oblação a Deus, é a preparação do pão e do vinho a serem consagrados; segue várias orações e o Sanctus e Benedictus, cantado pelo coro exaltando a santidade do Deus, a bondade e a benevolência deste por ter feito todas as criaturas; respectivamente acompanhado pelo Agnus Dei, onde se reconhece o sacrifício de Cristo para a salvação dos pecados humanos, momento místico e de grande aprofundamento interior, seguido da comunhão e pós-comunhão momento de acolhimento dos frutos espirituais, bastante interiorizado pelo canto que envolve a comunidade a se compor diante da aproximação com o divino.
A estrutura litúrgica da missa anteriormente descrita é em parte intacta, foi firmada durante o período tridentino e poucas mudanças ocorreram. Algumas diferenças entre as missas normalmente realizadas em tempo comum e as especiais podem ser notadas em relação à missa de finados ou réquiem, ela não varia com o calendário litúrgico e somente a partir do século XIV é que se tornou mais freqüente os arranjos polifônicos nestas celebrações, período em que o cuidado com a alma nos momentos que acompanham o evento da morte passa a ter uma atenção toda especial.





Trecho de documento de prestação de contas de irmandade por pagamento ao músico Luiz Alves Pitanga por musica tocada em missa de sepulcro. Foto: Suelayne O. Andrade.



A celebração da missa em seus diferentes momentos litúrgicos exige cuidados e atenção para uma expressão musical própria, assim como coloca o Papa João Paulo II em seu Quirógrafo sobre a Música Litúrgica, em 22 de novembro de 2003:

"Os vários momentos litúrgicos exigem, de fato, uma expressão própria, sempre apta a fazer emergir a natureza própria de um determinado rito, ora proclamando as maravilhas de Deus, ora manifestando sentimentos de louvor, de súplica ou ainda melancolia pela experiência da dor humana, uma experiência, porém, que a fé abre à perspectiva da esperança cristã."



Em toda trajetória da história da Igreja a música está presente na religiosidade, a arte como forma de expressão espiritual tem a função de complementar as orações de maneira a prestar uma atividade mística ligando o homem ao plano celestial. A Igreja Católica reconhece a importância da arte interligada com sua doutrina, por isso nunca deixou de se preocupar com a estética e a conveniência dos ritmos, dos sons, letras e instrumentos adequados ao culto solene, desde o concílio de Trento até o Vaticano II, a igreja regrou e incentivou a arte do canto nos seus cultos. A história da música e da Igreja tornou-se fonte inesgotável para os pesquisadores e estudiosos da história cultural e da religiosidade, já que esta é uma expressão cultural que em séculos passados era uma expressão elitista e hoje se tornou comum a nossas celebrações.


Bibliografia recomendada


Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia. Feitas e ordenadas pelo Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor Sebastião Monteiro da Vide. Propostas e aceitas em o Synodo Diocesano de 12 de junho de 1707. São Paulo: Typographia, 2 de dezembro de 1853.
Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Editora Vozes, 1993.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da Vida religiosa. São Paulo: Paulus, 1989.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Cia. Das Letras, 1991.

GROUT, Donald J. e PELISCA, Claude V. História da Música Ocidental. Trad. Ana Luísa Faria. Portugal: Gradiva. 4ª ed. 2007.
RUFFINI, E. Eucaristia. IN: DE FIORES, Stefano e GOFFI, Tullo (Ogrs.). Dicionário de Espiritualidade. São Paulo: Edições Paulinas, 1989. p.358 ? 371.
________. Exercícios de Piedade. IN: DE FIORES, Steafano e GOFFI, Tullo (Ogrs.). Dicionário de Espiritualidade. São Paulo: Edições Paulinas, 1989. p.372 ? 379.

Fontes eletrônicas
CONCÍLIO ECUMÊNICO DE TRENTO. IN: MONTFORT Associação Cultural, 2008. (http://br.geocities.com/adarantes/artigos).
MICROLÓGO (Anônimo). Catecismo da Santa Missa. IN: MONTFORT Associação Cultural, 2008. (http://br.geocities.com/adarantes/artigos).
A música sacra (Dicionário Oxford). In: http://www.musicaeadoraçao.com.br/artigos/meio/musica_sacra_oxford.htm, 2009.
HELENA, Dom Marcos de Santa osc. Liturgia e música sacra. In: http://www.ordemdesantacecilia.org/liturgia_010.html,2009.
MÓDOLO, Percival. Música Sacra e Música Profana: Que músicas são essas?. http://www.musicaeadoraçao.com.br/artigos/meio/sacra_profana_parcival.htm, 2009.
Música Sacra. In: http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%BAsica_sacra, 2009.
Quirógrafo de João Paulo II sobre a Música Litúrgica. In: http://www.liturgia.pro.br/quiro.doc,2009.
SOUZA, Fernando Gianetti de. Reflexões sobre a Música Litúrgica. In: http://www2.tucpr.br/reol/index.php/PISTIS?dd1=2488&dd99=pdf, 2009.