Um ensaio sobre a Teologia da Libertação

Por muitos séculos, os aspectos do cristianismo e da teologia Européia foram vistos como tradição normativa para diferentes continentes e culturas. Todos os países da América Latina, por exemplo, desenvolveram suas teologias a partir de uma matriz teológica Européia, tanto a teologia católica quanto a teologia protestante. A teologia da Europa - e mais tarde a dos Estados Unidos principalmente no lado protestante - sempre representou um modelo para a construção teológica na América Latina, influência que permanece até os dias de hoje em alguns seminários teológicos e igrejas do Brasil (Por exemplo: basta verificar a literatura que são utilizadas nestes seminários. A maioria são literaturas escritas por teólogos norte-americanos e europeus que viveram em contextos e culturas diferentes).
Contudo, essa "dominação" da tradição teológica Européia passou a ser questionada por alguns teólogos latino-americanos. A partir daí novas leituras e interpretações surgiram dando inicio ao desenvolvendo de uma hermenêutica de desconfiança para com a tradição Européia. Muitos teólogos latino-americanos passaram a questionar a influência da teologia europeia, uma vez que estas foram construidas em épocas e contextos culturais completamente diferentes do latino-americano.                                                 Sendo assim, buscou-se elaborar então uma teologia latino-americana "pura" com as características e demandas da realidade social e cultural dos países da America Latina. Com este ímpeto teológico-libertário surgiram diferentes teologias abordando causas específicas como, por exemplo, a teologia da mulher, a teologia cosmológica, a teologia negra, a teologia indígena dentre outras. Cada uma dessas teologias procurou ao seu modo responder, solucionar, corrigir ou mesmo preencher uma "lacuna" que, conforme estes novos teológos latino-americanos, havia sido ignorado pela teologia tradicional Ocidental. Foi aí que os pobres, os excluídos, os marginalizados, os oprimidos passaram a ocupar lugar especial no estudo da teologia latino-americana. A Bíblia passou a ser lida considerando o contexto socioeconômico dos pobres e principalmente a cultura do povo local. Para estes teólogos, além de transmitir a mensagem do evangelho, era preciso fazer algo para mudar a situação dos povos e das classes oprimidas e marginalizadas - daí a ideia de libertação também no sentido encomico, cultura e social. 
O Concilio Vaticano II (1962-1965) e a Conferência do Episcopado Latino-americano (CELAM II), realizada em 1968 em Medellin, na Colômbia, teve um papel importante na história da Teologia da Libertação. Nesse período surgiu com muita força uma consciência de solidariedade para com os pobres articulando duas dimensões da realidade latino-americana até então pouco dialogantes na reflexão teológica, a saber: a unidade histórica e a dimensão política da fé. Em 1971 o teólogo peruano Gustavo Gutiérrez publicou a obra TEOLOGIA DA LIBERATAÇÃO. Esta obra, que foi o marco na época, buscava conciliar a salvação com o processo histórico de libertação. Gustavo Gutiérrez, comumente tido como o pai da Teologia da Libertação, apresentou um novo método de interpretação bíblica e teológica que articulava assim a teologia com ciências sociais. Tudo muito novo e original, até certo ponto.
Entre os protestantes brasileiros, o principal nome de destaque foi o teólogo missionário norte-americano Millard Richard Shaull (1919-2002) que chegou ao Brasil a partir da década de 1940. Richard Shaull - teólogo presbiteriano ecumênico- foi em certo sentido responsável por uma verdadeira revolução no ensino teológico e no movimento estudantil entre os jovens evangélicos no Brasil. Após sua experiência missionária em Bogotá na Colômbia, Richard Shaull passou a ver no marxismo elementos para a construção de uma ordem social mais justa. Há quem diga que o seu artigo intitulado A FORMA DA IGREJA NA ANTIGA DIÁSPORA foi o embrião da teologia da Libertação, que na época era conhecida como  TEOLOGIA DA REVOLUÇÃO. Um dos principais discípulos de Richard Shaull foi o teólogo brasileiro Rubem Alves. Aluno de Richard Shaull no seminário teológico de Campinas (SP), Rubem Alves foi um dos principais teólogos protestante envolvidos com a teologia da Libertação. Em 1968 ele defendeu a tese TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO. Foi a primeira vez que a expressão libertação foi empregada em uma obra teológica. 
O que pensavam os adeptos da nova teologia? Para os teólogos da libertação, a teologia não deveria ficar presa apenas aos assuntos metafísicos, abstratos, mas antes deveria dialogar com a realidade do povo. A teologia deveria intervir na realidade social e econômica e promover mudanças. Para estes teólogos, a feitura de uma teologia exige que o teólogo esteja consciente das questões sócio-politicas. Neste caso, a teologia não é um sistema que ocupa o teólogo no processo repetitivo da sistematização e da argumentação apologética, como costumam fazer os teólogos conservares norte-americanos. Para eles, a teologia é um exercício dinâmico contínuo que envolvem percepções contemporâneas do conhecimento (a epistemologia), do homem (a antropologia) e da história (a análise social).
Não resta dúvidas que a Teologia da Libertação é hoje considerada uma das mais importantes teologias cristãs que surgiu fora do eixo Europa-EUA. Contudo, embora a teologia da libertação tenha resgatado um aspecto fundamental da concepção de Reino de Deus a partir de um ideário libertário, ela vem sendo criticada por sua epistemologia. Seus críticos alegam que ela se utiliza da ideologia marxista quando faz sua reflexão socioanalitica. Neste caso, a hermenêutica teológica da Teologia da Libertação estaria carregada de elementos hermenêuticos da cosmovisão marxista. Entretanto, em contrapartida, os proponentes da libertação explicam que ao usar esta mediação socioanalitica, a Teologia da Libertação tem por objetivo apenas compreender cientificamente as causas da opressão e da morte dos pobres, e as possibilidades de libertação. Poe exemplo, seus adepros defendem que a Teologia da Libertação não adere ao extremismo do materialismo dialético que absolutiza o materialismo e nega a necessidade do discurso religioso. 
Ao longo dos seus 40 anos, a Teologia da Libertação vem sofrendo algumas mudanças. A crise do socialismo, marcada pela queda do muro de Berlim (1989), levou a Teologia da Libertação a rever suas críticas ao sistema capitalista e socialista. Hoje, a Teologia da Libertação vem se permitindo passar por caminhos de resignificações. Partindo de sua raiz de luta pelos pobres, a Teologia da Libertação tem procurado abordar outros aspectos com o mesmo ideário libertador e orientador. Assim, temas como economia, política, ecologia, pluralismo religioso, racismo, entraram em pauta como objetos de estudo na Teologia da Libertação. Os teólogos ligados a Tologia da Libertação costumam destacar que, mais do que fazer discussões isoladas sobre inúmeros temas, o desafio da Teologia da Libertação é convocar a igreja cristã a se manifestar contra todo tipo de opressão, seja de origem econômica, espiritual ou política. 
Temas teológicos têm sido desenvolvidos no contexto latino-americano servindo como modelo para outras teologias. Além da Teologia da libertação latino-americana, formas específicas de teologias desenvolveram-se em outros continentes nessa mesma perspectiva libertária, a saber: a teologia da libertação africana, a teologia da libertação negra nos Estados Unidos, a teologia da libertação na Ásia, a teologia minjung na Coréia do Sul e a teologia dalit na Índia .
Todas essas teologias citadas partem de um ideal libertário, considerando a situação do contexto social, econômico e político como linha importante para a construção da teologia. São teologias profundamente comprometidas com os povos oprimidos e principalmente com o Reino de Deus. Entendem que o Reino de Deus foi inaugurado com Jesus Cristo e continua no momento em que homens e mulheres buscam viver essa justiça no dia-a-dia.



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