Para a compreensão do texto A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal, de Boaventura de Souza Santos, inicialmente se faz necessário recordar a definição de Epistemologia: trata-se, simplificadamente, da teoria ou filosofia do conhecimento. É o ramo da ciência cujo objeto de pesquisa é o conjunto de problemas relacionados ao conhecimento como, por exemplo, sua metodologia, sua organização, seu histórico, sua validação e seus limites.

Boaventura de Souza Santos, a partir desta definição, define duas epistemologias: Epistemologia do Norte e Epistemologia do Sul. O autor define esta última como a epistemologia que tem por objetivo a recuperação dos saberes e práticas dos grupos sociais que, devido ao capitalismo e aos processos coloniais, foram historicamente e sociologicamente colocados na posição de serem apenas objetos ou matéria-prima dos saberes dominantes, chamados pelo autor de Epistemologia do Norte, e considerados durante a maior parte do período da História da Ciência como os únicos saberes cientificamente válidos. São, assim, mais considerados como um conjunto de epistemologias do que uma única epistemologia, como se refere a introdução do texto. A Epistemologia do Sul, no entanto, tem como diferencial a inclusão das experiências e conhecimentos de mundo, as tradições, em seu conjunto de saberes. Inclui também as próprias experiências de conhecimento da Epistemologia do Norte, porém reconfiguradas. Boaventura, por sua vez, não sugere ou deseja o fortalecimento do Sul por meio de uma posição combativa ao Norte, e sim sugere a subversão dos modos de compreensão do mundo por meio da utilização de todo o conjunto de saberes.

Um dos conceitos centrais da Epistemologia do Sul, tal como é proposta por Boaventura de Souza Santos, se refere à Ecologia de Saberes. O autor descreve que, como cada saber só existe dentro de uma pluralidade de saberes, nenhum deles pode compreender-se a si próprio sem se referir aos outros saberes. Afirma ainda que os limites e as possibilidades de cada saber residem, assim, em última instância, na existência de outros saberes e, por isso, só podem ser explorados e valorizados na comparação com outros saberes.

Existe uma dificuldade, segundo Boaventura, de se realizar a comparação entre as epistemologias. Este dificuldade ocorre, segundo o autor, por conta da assimetria entre os saberes, ou o que é chamado por ele de diferença epistemológica. Existem, no entanto, duas formas de viver ou acionar essa assimetria:



-  Maximizá-la, levando ao máximo a ignorância a respeito de outros saberes, de modo a praticamente declarar a sua inexistência (fascismo epistemológico) – modo que tem predominado nas epistemologias hegemônicas da modernidade ocidental (ou seja, do que ele nomeia epistemologia do Norte);


- Todos os saberes reconhecerem a assimetria e fazerem dela o motor da comparação com outros saberes. A este segundo modo o autor chama de ecologia dos saberes, que vem a ser um dos conceitos fundamentais da Epistemologia do Sul.

A ecologia de saberes, por sua vez, se depara com dois problemas:

- A maneira de se realizar a comparação dos diferentes saberes, por conta da diferença epistemológica, ou seja, a tradução (em sentido específico, por meio dos procedimentos de busca de proporção e correspondência que permitam aproximações). Isto inevitavelmente ocorre de modo recíproco, com nenhum dos saberes a ocupar o lugar de saber dominante;


- A maneira em se criar o conjunto de saberes que participa de um dado exercício de ecologia de saberes, uma vez que pluralidade dos saberes é infinita a partir do princípio de que seu lugar de discussão não seja um lugar exclusivo a isto como, por exemplo, as universidades ou os centros de pesquisa e investigação.

Boaventura defende que o lugar de enunciação da ecologia de saberes são todos os lugares onde o saber é convocado a converter-se em experiência transformadora. Assim torna-se possível caracterizar uma epistemologia em rede, a qual possua seus conceitos como a ecologia dos saberes como um dos seus pressupostos. Colocar em rede estudos de diferentes realidades, memórias, realidades artísticas, se configura na promoção da construção inacabada e inacabável da criação de metáforas e epistemologias que podem, juntas, concorrer para uma melhor compreensão de determinados fenômenos e, ainda, para a aposta de uma melhor realidade.

Boaventura usa a metáfora da aposta de Pascal (pautada na racionalidade e na razoabilidade da crença), como o que nos impulsiona a trabalharmos árduo tendo como base a incerteza das possibilidades de transformação:



“(…) a questão que nos confronta pode ser formulada assim: que razões nos podem levar a lutar por uma tal possibilidade, correndo riscos certos para obter um ganho tão incerto? Sugiro que a resposta seja a aposta, como única alternativa tanto às teses do fim da história como às teses do determinismo vulgar. A aposta é a metáfora da construção precária, mas minimamente credível, da possibilidade de um mundo melhor, ou seja, a possibilidade de emancipação social, sem a qual a rejeição da injustiça do mundo actual e o inconformismo perante ela não fazem sentido. A aposta é a metáfora da transformação social num mundo em que as razões e visões negativas (o que se rejeita) são muito mais convincentes do que as razões positivas (a identificação do que se quer e como lá chegar). (SANTOS, 2008)”

Referências Bibliográficas:

 

SANTOS, Boaventura de Souza. A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, Março 2008: 11-43