Causa estranheza o alvoroço vivenciado pela mídia porque o Governo do Estado de São Paulo decidiu fazer cumprir a Lei e dar atendimento diferenciado aos dependentes químicos, possibilitando, quando necessário, a internação dos mesmos, nas modalidades de internação involuntária ou mesmo compulsória.

A abordagem deste assunto deve ter inicio em dois questionamentos basilares: O primeiro, – O que é doença? E o segundo: Dependência química é doença? Desse modo somente após se encontrar resposta para estas duas indagações, estaremos aptos ao enfrentamento do tema, que sob uma ótica jurídica positivista não pode guardar maiores controvérsias.

Por amor a síntese colho na wikipedia[1] a definição de uso científico do termo doença. Com efeito, “o conceito de doença compõem-se, segundo Häfner[2], de dois componentes: 1. o distúrbio de funções, grupos de funções ou de sistemas interpessoais e 2. o estado não é proposital - "doença" implica incapacidade. Além disso ele é formado em diferentes níveis: (a) a manifestação e (b) o desenvolvimento da doença, que caracterizam o "estar doente" (Kranksein); o conhecimento (c) dos órgãos afetados e (d) e do contexto patológico[3], de forma a se compreender como os primeiros três níveis se influenciam mutuamente; e pro fim (e) o conhecimento das causas de (c). Somente quando todos esses níveis são conhecidos pode-se falar de nosologia[4]”.

Pronto, conceituado o vocábulo doença, buscamos solução para o segundo questionamento, cuja resposta está explicitada pela Organização Mundial de Saúde que classificou a Síndrome de Dependência Química como doença, consoante se constata pela conhecida Classificação Internacional de Doenças - CID 10. (10ª Edição).

Efetivamente, a Síndrome de Dependência Química é uma doença crônica progressiva, que tem como principal característica, a obsessão mental, seguida do uso compulsivo de determinada droga ou drogas. Na medida em que a doença  mental evolui, o corpo  torna-se cada vez mais dependente da droga ou drogas usadas e adoece de várias maneiras, sendo que os danos mentais e emocionais se agravam na medida em que a dependência química, ou física, aumenta. 

Cumpre lembrar que para a Organização Mundial da Saúde - OMS, droga é qualquer substância psicoativa lícita ou ilícita, que cause dependência química e /ou psíquica ao usuário.

Ilustrando, informo o código atribuído na Classificação Internacional de Doenças,  relativo à dependência das drogas mais conhecidas, tais como:  bebidas alcoólicas - CID f.10.2;  nicotina, encontrada em cigarros de fumo em geral, CID f.17.2;  maconha  e Haxixe CID f.12.2 e  a cocaína  ou a pasta base em pedra (crak ou oxi),  CID f.14.2.

Pronto. Estabelecido que a Síndrome de Dependência Química é uma doença, podemos evoluir na leitura do presente artigo. Sabendo-se, pois que a Dependência Química é um conjunto de fenômenos que envolvem o comportamento, a cognição e a fisiologia corporal consequente ao consumo repetido de uma substância psicoativa, associado ao forte desejo de usar esta substância, juntamente com dificuldade em controlar sua utilização persistente apesar das suas consequências danosas e que na dependência geralmente há prioridade ao uso da droga em detrimento de outras atividades e obrigações sócio ocupacionais, passamos a visualizar a necessidade da internação do dependente químico em sua modalidade compulsória.

Neste pensar cumpre trazer à baila a disposição constitucional contida no artigo 196 da Constituição Federal, que assim dispõe:

“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Saliente-se, por necessário que a legislação infraconstitucional, regente da espécie é antiga, sendo que seu principal diploma consiste na LEI Nº 10.216, de 6 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, estabelecendo em seu artigo primeiro, o seguinte:

“Art. 1º - Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra”.

Para logo em seguida enumerar em seu artigo segundo que nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo. E consequentemente estabelece tais direitos enumerando-os em doze incisos.

Convêm lembrar, ainda, o fato de ser responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais, conforme ficou estabelecido no art. 3º da Lei Federal de Psiquiatria, ou seja, na Lei nº 10.216/2001.

Em suma, a internação compulsória possui previsão legal, resta, pois distingui-la da internação involuntária, estabelecendo-se as situações do seu cabimento.

Ora a Internação involuntária de acordo com a Lei 10.216/01, pode ocorrer quando o familiar solicitar a internação, formulando pedido escrito e aceito pelo médico psiquiatra. A lei determina que, nesses casos, os responsáveis técnicos do estabelecimento de saúde têm prazo de 72 horas para informar ao Ministério Público da comarca sobre a internação e seus motivos. O objetivo é evitar a possibilidade de esse tipo de internação ser utilizado para a prática de cárcere privado.

Desse modo a Internação compulsória se distingue da internação involuntária por não ser necessária a autorização familiar. O artigo 9º, da Lei 10.216/01 estabelece a possibilidade da internação compulsória, sendo esta sempre determinada pelo juiz competente, depois de pedido formal, feito por um médico, atestando que a pessoa não tem domínio sobre a sua condição psicológica e física.

Desse modo a celeuma dos órgãos de imprensa em relação à internação compulsória, deve residir apenas no fato de que o governo depois de onze anos de vigência da lei, está criando medidas para o cumprimento mais eficiente da mesma.

 Em síntese o Estado, objetivando tornar mais célere à tramitação do processo de internação compulsória (há muito previsto em lei), com o desiderato de proteger as vidas daqueles que mais precisam, posto que as famílias com recursos econômicos desde antanho fazem uso do mecanismo da internação involuntária para resgatar os seus parentes das drogas, está fazendo, em parceria com o Judiciário, a sua obrigação de dar cumprimento a Lei, e desenvolver o seu papel de garantir o bem comum.

De tudo isto é importante salientar que a internação compulsória não é a realização de uma quimera, na qual o dependente químico de uma hora para outra, como em um passe de mágica, será curado com este ato isolado de tratamento, pois na verdade a internação compulsória é um recurso extremo, que haverá de contribuir na salvação de algumas vidas, sendo importante gizar que de forma geral, a internação involuntária é um procedimento médico realizada no mundo inteiro há muitos anos, valendo lembrar que a nossa legislação regente da espécie já esta em vigor há mais de onze anos, sendo certo que nos casos mais graves, a internação é a alternativa mais segura, pois a dependência química é uma doença que faz com que a pessoa perca o controle. Sem razão, portanto, o frenesi da mídia que está tratando o fato como uma novidade, o que realmente não é.

Por  FRANCISCO DELIANE[i]



[i] FRANCISCO DELIANE é jurista e escritor, autor dos livros “ESPELHOS”, “PEDOFILIA CRIME OU DOENÇA” e “A TERCEIRA FACE DO PERDÃO”.



[1] http://pt.wikipedia.org/wiki/Doen%C3%A7a

[2] Häfner, H. (1981). "Der Krankheitsbegriff in der Psychiatrie". In: R. Degwitz & H. Sidow (Hrsg.), Zum umstrittenen psychiatrischen Krankheitsbegriff. Standorte der Psychiatrie Bd. 2, München: Urban & Schwarzenberg, p. 16-54.

[3] Modificações estruturais e funcionais promovidas por doenças.

[4] É a parte das ciências da saúde que trata dos critérios de classificação das doenças segundo a causa,  e o mecanismo de surgimento e desenvolvimento de um processo patológico, ou o sintoma.