UM BREVE HISTÓRICO DA ALFABETIZAÇÃO

O modelo escolar de alfabetização, aqui entendida como o "processo de ensino e aprendizagem do sistema alfabético de escrita", ou seja, o processo de ensino e aprendizagem inicial de leitura e escrita nasceram há pouco mais de dois séculos, precisamente em 1789, na França, após a Revolução Francesa.
A partir de então, segundo Barbosa (1990:28) IN Amâncio (2002:32), as crianças são transformadas em alunos, aprender a escrever se sobrepõe a aprender a ler, ler agora se aprende escrevendo ? até esse período, ler era uma aprendizagem distinta e anterior a escrever, compreendendo alguns anos de instrução através do ensino individualizado.
Analisando a evolução da investigação e do debate em relação à alfabetização escolar no século XX, Amâncio afirma que é possível definir em linhas gerais três períodos, se referindo apenas ao Ocidente ? especialmente Europa e América do Norte e do Sul.
O primeiro período corresponde aproximadamente à primeira metade do século, quando a discussão se dava estritamente no terreno do ensino. Buscava-se o melhor método para ensinar a ler, com base na suposição de que a ocorrência de fracasso se relacionava com o uso de métodos inadequados.
A discussão mais candente travou-se entre os defensores do Método Global e os do Método Fonético. O Método Global ou Analítico defendia que o melhor era oferecer ao aluno a totalidade, ou seja, palavras, frases ou pequenos textos, para que ele fizesse uma análise e chegasse às partes, que são as sílabas e letras. O Método Fonético ou Sintético, ao contrário, propunha que o aluno tinha de aprender primeiro as letras ou sílabas, e o som das mesmas, para depois chegar à palavra ou frase.
A doutora Emília Ferreiro foi orientada e colaboradora de Jean Piaget. Suas pesquisas em alfabetização demonstram o grande valor heurístico do construtivismo interacionista piagetiano para a compreensão dos processos de aquisição da leitura e da escrita e de outros conteúdos que se imaginavam, até então, estritamente escolares.
No Brasil, essa discussão caiu em desuso a partir da difusão do método que, na época, foi identificado com "misto" ? nada mais que a nossa conhecida cartilha, baseada em análise e síntese e estruturada a partir de um silabário.
O segundo momento, cujo pico foi nos anos 60, teve por centro geográfico os Estados Unidos. A discussão das idéias sobre alfabetização foi levada para dentro de um debate mais amplo em torno da questão do fracasso escolar. A luta contra a segregação dos negros, com a conseqüente batalha pela integração nas escolas americanas, contribuiu para que se tornassem mais explícitas as dificuldades escolares dessas minorias. Muito dinheiro foi investido em pesquisas, para tentar compreender o que havia de errado com as crianças que não aprendiam. Buscava-se no aluno a razão de seu próprio fracasso.
São desse período as teorias que hoje chamamos "teorias do déficit". Supunha-se que a aprendizagem dependia de pré-requisitos (cognitivos, psicológicos, preceptivo ? motores, lingüísticos...) e que certas crianças fracassavam por não dispor dessas habilidades prévias.
O fato de o fracasso concentrar-se nas crianças das famílias mais pobres era explicado por uma suposta incapacidade das próprias famílias proporcionarem estímulos adequados. Baterias de exercícios de estimulação foram criadas, como "remédio" para o fracasso, como se ele fosse uma doença. Essa abordagem, que já se anunciava no teste ABC, de Lourenço Filho ? um conjunto de atividades para verificar e, principalmente, medir a "maturidade" que a ciência de então suponha necessária à alfabetização bem-sucedida ? teve muita influência no Brasil. Nos anos 70, foi largamente difundida a idéia de que, no início da escolaridade, toda criança deveria passar pelos exercícios conhecidos como de "prontidão" (do inglês, readiness) para a alfabetização.
São desse período as teorias que hoje chamamos "teorias do déficit". Supunha-se que a aprendizagem dependia de pré-requisitos (cognitivos, psicológicos, perceptivo-motores, lingüísticos?) e que certas crianças fracassavam por não dispor dessas habilidades prévias
O terceiro período começa em meados dos anos 70, marcado por uma mudança de paradigma. O desenvolvimento da investigação nessa área mudou radicalmente seu enfoque, suas perguntas. Em lugar de procurar correlações que explicassem o déficit dos que não conseguiam aprender, começou-se a tentar compreender como aprendem os que conseguem aprender a ler e escrever sem dificuldade e, principalmente, o que pensam a respeito da escrita os que ainda não se alfabetizaram.
Um trabalho de investigação que desencadeou intensas mudanças na maneira de os educadores brasileiros compreenderem a alfabetização foi o coordenado por Emília Ferreiro e Ana Teberosky, publicado no Brasil com o título Psicogênese da língua escrita, em 1985.
A partir dessa investigação, foi necessário rever as concepções nas quais se apoiava a alfabetização. E isso tem demandado uma transformação radical nas práticas de ensino da leitura e da escrita no início da escolarização, ou seja, na didática da alfabetização. Já não é mais possível conceber a escrita exclusivamente como um código de transcrição gráfica de sons, já não é mais possível desconsiderar os saberes que as crianças constroem antes de aprender formalmente a ler, já não é mais possível fechar os olhos para as conseqüências provocadas pela diferença de oportunidades que marca as crianças de diferentes classes sociais.
Portanto, já não se pode mais ensinar como antes. Segundo Emília Ferreiro
"As mudanças necessárias para enfrentar sobre bases novas a alfabetização inicial não se resolvem com um novo método de ensino, nem com novos testes de prontidão nem com novos materiais didáticos. É preciso mudar os pontos por onde nós fazemos passar o eixo central das nossas discussões. Temos uma imagem empobrecida da língua da escrita: é preciso reintroduzir quando consideramos a alfabetização, a escrita como sistema de representação da linguagem. Temos uma imagem empobrecida da criança que aprende: reduzimos esse ser em formação a um par de olhos, um par de ouvidos, uma mão que pega um instrumento para marcar e um aparelho fonador que emite sons. Atrás disso há um sujeito cognoscente ,alguém que pensa que constrói interpretações, que age sobre o real para fazê-lo seu."

Por Que é Difícil Alfabetizar Todos os Alunos?

A análise de quem são os alunos que a escola não tem conseguido alfabetizar ao longo dos anos indica que não se trata de uma metade qualquer, aritmeticamente neutra: essa metade é formada, majoritariamente, pelos alunos das camadas populares. E por que seria mais difícil alfabetizar esses alunos?
No entanto, segundo Emília Ferreiro e Ana Teberosky,

"A descrição psicogenética do processo de alfabetização mostrou que o processo pelo qual se aprende a ler e escrever são o mesmo, em linhas gerais, para indivíduos de diferentes classes sociais ? inclusive, tanto para crianças como para adultos. A diferença reside nas experiências prévias destes alunos com práticas sociais de leitura e escrita. Se antes se acreditava que o fundamental para alfabetizar os alunos era o treino e determinadas habilidades ? memórias, coordenação motora, discriminação visual e auditiva, noção de lateralidade ? a recente pesquisa sobre a aprendizagem da leitura e da escrita mostrou que a alfabetização (como tantas outras aprendizagens) é fruto de um processo de construção de hipóteses; não é decorrência direta destas habilidades, mas sim de procedimentos de análise da língua escrita por parte de quem aprende: por trás da mão que escreve e do olho que vê, existe um ser humano que pensa e, por isso, se alfabetiza"

Hoje sabemos que, no processo de alfabetização, as crianças e os adultos ? independentemente de sua origem social e da proposta de ensino do professor ? formulam hipóteses muito curiosas, mas também muito lógicas. Progridem de idéias bastantes primitivas pautadas no desconhecimento da relação entre fala e escrita para idéias surpreendentes sobre como seria essa relação. Depois de uma longa trajetória de reflexão, finalmente é possível compreender a natureza da relação entre fala e escrita, desvendando o mistério que o funcionamento da escrita representa para todos os analfabetos. É quando se alfabetizam, no sentido estrito da palavra
São as situações de uso da leitura e da escrita e o valor que se dá a essas práticas sociais que configuram um ambiente alfabetizador ? um contexto de letramento ? e um espaço de reflexão sobre como funcionam as coisas no mundo da escrita: os materiais em que se lêem as situações em que se escreve e se lê, a forma como os adultos leem e escrevem, como se
escrevem os nomes das pessoas queridas e o próprio nome, o que dizem as embalagens que circulam em casa, a direção da escrita e da leitura em nossa língua (da esquerda para a direita), quantas e quais letras se colocam para escrever, por que há mais letras do que parece necessário nos textos escritos, o que está escrito aqui e ali, que letra é essa, como se lê essa escrita... E assim por diante.
Letramento é palavra e conceito recente, introduzido na linguagem da educação e das ciências lingüísticas há pouco mais de duas décadas; seu surgimento pode ser interpretado como decorrência da necessidade de configurar e nomear comportamentos e práticas sociais na área da leitura e da escrita que ultrapassem o domínio do sistema alfabético e ortográfico, nível de aprendizagem da língua escrita perseguido, tradicionalmente, pelo processo dealfabetização. Esses comportamentos e práticas sociais de leitura e de escrita foram adquirindo visibilidade e importância à medida que a vida social e as atividades profissionais foram-se tornando cada vez mais centradas na dependente da língua escrita, revelando a insuficiência de apenas alfabetizar ? no sentido tradicional ? a criança ou o adulto. Em um primeiro momento, essa visibilidade se traduziu ou numa adjetivação da palavra alfabetização ? alfabetização funcional tornou-se se expressão bastante difundida ? ou em tentativas de ampliação do significado dealfabetização, alfabetizar, por meio de afirmações como "alfabetização não é apenas aprender a ler e a escrever", "alfabetizar é muito mais que apenas ensinar a codificar e decodificar", e outras semelhantes. A insuficiência desses recursos para criar objetivos e procedimentos de ensino e de aprendizagem que efetivamente ampliassem o significado dealfabetização, é que pode justificar o surgimento da palavra letramento . e a conseqüência da necessidade de destacar e claramente configurar, nomeando-os, comportamentos e práticas de uso do sistema de escrita, em situações sociais em que a leitura e/ou a escrita estejam envolvidas.
Enquanto as crianças oriundas de famílias que fazem uso sistemático da escrita e da leitura passam a primeira infância aprendendo coisas desse tipo, em suas casas, com seus pais, tios e avós, as crianças privadas destas experiências estão aprendendo o que seria irreal a uma criança pequena de classe média e alta: cozinhar para os irmãos menores, dar banho sem derrubá-los, acordar de madrugada para ir trabalhar na roça, ou na rua, vendendo objetos nos sinais de trânsito... As primeiras ocupam seu tempo desenvolvendo procedimentos que as farão se alfabetizar muito cedo; as últimas, por sua vez, quando ainda não tinha sido possível conhecer as razões de os alunos terem essas idéias e escritas estranhas.
Depois que se pôde compreender o que acontecia com os alunos ainda não alfabetizados e que revelavam as suas hipóteses, esses percentuais caíram muitíssimo, oscilando de 1 a 3%, segundo os mesmos especialistas (Caderno Idéias n°- 2 e n°- 19, FDE-SEE/SP, 1989 e 1993 respectivamente). Estão desenvolvendo outros procedimentos relativos à suas experiências cotidianas: portanto o repertório de saberes é outro, é outra a bagagem de vida, como se dizia há algum tempo.
Em outras palavras, algumas crianças não aprendem a ler e escrever aos seis ou sete anos pela mesma razão que as outras não aprendem a cozinhar, lavar, passar, cuidar da casa, carpir o roçado e desviar-se dos carros na rua.
Quando a escola não valoriza esta diversidade de saberes, fruto das experiências anteriores faz com que estas crianças se sintam entrando em um novo mundo, estranho e hostil. Nessas condições, é de se esperar que elas percebam que não podem corresponder ao que os professores esperam delas e acabam desenvolvendo a crença de que são incapazes. Reconhecer as diferenças de repertório sobre a escrita implica um comprometimento efetivo com a aprendizagem dos alunos que não tem quase nenhum contato com textos e seus usos, pois são exatamente estes que mais dependem da escola para ter acesso ao conhecimento letrado. Respeitar e, de fato, considerar as diferenças, valorizar os saberes que os alunos possuem e criar um contexto escolar favorável à aprendizagem não são apenas valores de natureza ética: são à base de um trabalho pedagógico comprometido com o sucesso das aprendizagens de todos.

FERREIRO, Emília. A Psicogênese da Língua Escrita. Porto Alegre: ARTMED. 1995.