No texto Um guia para ter cultura (http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.phtml? cod=25769&cat=Artigos&vinda=S), Paulo Francis recomenda aos jovens a leitura de livros que ele considera indispensáveis. São obras de autores que vão dos clássicos gregos, passam pelo romano Suetônio (Os Doze Césares) e por Santo Agostinho (As Confissões), chegando aos modernos como Shakespeare (Hamlet), Popper (A Lógica da Pesquisa Científica), Bertrand Russell (História da Filosofia Ocidental), Tolstoi (Guerra e Paz), Dostoievsky (Crime e Castigo), Thomas Mann (A Montanha Mágica), Edmund Wilson (Rumo à Estação Finlândia). Dos autores brasileiros, Paulo Francis sugere a leitura de Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Memórias Póstumas de Braz Cubas, de Machado de Assis. Paulo Francis também recomenda a leitura de Memorial do Aires, de Machado, que, para ele, é o livro mais bem escrito em português que há. Porém, Paulo Francis afirma que não é preciso ler A Origem das Espécies, de Darwin e diz textualmente que a leitura da obra-prima de James Joyce, Ulysses, é simplesmente desnecessária. Será?

James Joyce nasceu em Dublin, Irlanda, em 2 de fevereiro de 1882 e morreu em Zurique em 13 de janeiro de 1941. Fez estudos de humanidades com os jesuítas no Belvedere College, em Dublin, onde tomou gosto pela literatura através do teatro de Yeats, Ibsen e Hauptmann. Ali recebeu prêmios pelos ensaios que escreveu, um dos quais se intitulava Meu Herói Favorito. É bastante significativo que, aos quinze anos, seu herói favorito fosse Ulysses, o homem errante levado de cá para lá pelas tormentas (Os forjadores do mundo moderno, pg. 1086). Do pai herdou o espírito belicoso e a bela voz de tenor.

Para Joyce, os irlandeses eram a raça mais atrasada de toda a Europa. Na juventude opôs-se ao estreito nacionalismo do Renascimento Irlandês, ridicularizou o Amanhecer Celta chamando-o twilight twalette e se tornou inimigo da principal figura daquele movimento, William Butler Yeats, dizendo-lhe: Encontramo-nos demasiado tarde; você é demasiado velho para que eu possa influenciá-lo (pg. 1085).

Dos 16 aos 20 anos, Joyce freqüentou o Colégio da Universidade. Devoto, acreditavam que fosse ingressar na ordem jesuítica. Antes de completar 20 anos, lia latim, francês e italiano tão bem quanto o inglês.

Transferiu-se para Paris em 1902 para estudar medicina, carreira da qual desistiu para dedicar-se ao ensino da língua inglesa e literatura. Durante muito tempo seu único alimento era o chocolate em Ulysses as xícaras de chocolate além de ser um elemento nutritivo, são um símbolo de sacramento e ficou doente (pg. 1087).

Em 1903 volta a Dublin, com a morte da mãe, ali passando o dia 16 de junho de 1904, tão minuciosamente imortalizado nos dezoito episódios do futuro romance Ulysses. Aos 22 anos conseguiu uma vaga de professor na Escola Clifton, em Dalkey, onde ampliou seus estudos de línguas estrangeiras. Participou do concurso de tenores do Festival Nacional, entusiasmando o auditório e os juízes, mas desistiu por não aceitar um dos requisitos: uma prova de canto sem ler a partitura antes. Em outubro de 1904, Joyce se casa com Nora Barnacle e partiram imediatamente para Zurique, Suíça, onde arranjou emprego como professor de línguas na Escola Berlitz.

Durante os vinte e cinco anos seguintes, a vida de Joyce é uma vida de exílio e sofrimento, de esforços constantes para publicar suas obras, de brigar contra as hostilidades dos filisteus, de desilusões e desespero (pg. 1088).

Aos 23 anos terminou uma série de contos, Os Dublinenses, aceitos para publicação, mas o editor negou-se a publicá-los pelo naturalismo da obra. Essa obra só seria publicada dez anos depois em Londres, em 1914.

A primeira obra publicada de Joyce, em 1907, foi Música de Câmara, um título para rir de si mesmo, cantor frustrado. Foi posto à venda quando Joyce tinha vinte e cinco anos e é a própria antítese do estilo que viria a caracterizá-lo. Longe de ser inovadora, esta obra está cheia de ecos tradicionais de poetas do século XVII, dos simbolistas franceses e da lírica de William Butler Yeats (pg. 1088).

Os Dublinenses é uma obra de transição. Joyce age como um informador insinuante, que narra um conjunto de episódios infelizes ocorridos na cidade onde nasceu. As três primeiras histórias parecem ser fragmentos tomados da infância; as outras são pinturas tristes e com freqüência impiedosa que irritaram seus compatriotas. A descrição vai desde a pintura de uma brutalidade casual de Dois Galãs, à austera emoção de Evelyn, passando pela mistura de dureza e angústia de Contraparte. O Morto é a história mais pungente e comovedora; o realismo começa a se orientar para o simbolismo (pg. 1088).

Joyce escreveu três histórias sob o pseudônimo Stephen Dedalus para George Russel, que publicou O Solar Irlandês, para fomentar os métodos agrícolas modernos e divulgar os textos do Movimento Céltico.

Retrato do Artista Quando Jovem é uma dupla narração: uma descrição nostálgica de Dublin que Joyce amou e odiou ao mesmo tempo, e um retrato de um escritor jovem e estilista, preocupado com as associações verbais e a força mágica das palavras (pg. 1089-90).

Com a entrada da Itália na Guerra, em 1915, Joyce refugia-se em Zurique, retornando a Trieste em 1920, seguindo para Paris no mesmo ano. Após a publicação de Ulysses, em 1922, Joyce se torna conhecido nos meios literários. Quando a França foi invadida pelos nazistas em 1940, Joyce refugia-se novamente em Zurique, onde morre um ano depois, quase cego e desapontado com a pouca repercussão de sua obra.

A última obra de Joyce foi Finnegan´s wake, que é a história de uma só noite de sono na cabeça do taverneiro H. C. Earwicker e sua mulher Ana Lívia, encarnação do rio Liffey, que banha Dublin. Livro ilegível para o leitor comum, o processo de montagens e associações lingüísticas atinge, nesta obra, um ritmo paroxístico. Seu ponto de partida é a teoria de Vico da realidade histórica como um movimento circular, um eterno retorno ao ponto de partida, de modo que o livro é concebido também circularmente, o seu ponto de partida ligando-se ao final, numa frase que é deixada em suspenso. O centro da obra é a stream of consciousness (corrente da consciência), que já foi o clímax do Ulysses, no monólogo de Molly Bloom (Mirador, Vol. 12, pg. 6552). Nesta obra, encontram-se, ainda, fragmentos de filósofos, cientistas e historiadores; A Interpretação dos Sonhos e A Psicopatologia da Vida Cotidiana, de Sigmund Freud; estudos de James Frazer sobre folclore e religião; a coincidência dos opostos, de Giordano Bruno; a concepção dos arquétipos antropológicos de Lucien Lévy-Bruhl. Calcula-se que na obra Finnegans Wake há milhares de trocadilhos em uma dezena de idiomas diferentes, o que torna Joyce o maior mestre do trocadilho desde os tempos de Shakespeare (Os forjadores do mundo moderno, pg. 1096-97).

Ulysses se baseia na estrutura da Odisséia de Homero, no qual Joyce lançou seu famoso método do monólogo interior. Ulysses foi a descrição de um único dia na vida de duas pessoas, Stephen e Bloom, versões modernas de Telêmaco e Ulisses.

O livro Ulysses, uma volta ao dia em 80 mundos, descreve com minúcia 18 horas do dia 16 de junho de 1904, com os personagens Stephen Dedalus (personagem também de Retrato do Artista quando Jovem, de 1913) e o casal Leopold e Molly Bloom. O dia 16 de junho, todo ano, é comemorado por fãs de todo o mundo como o Bloomsday (Dia de Bloom). Ulysses foi publicado pela primeira vez, em 1922, pela editora parisiense Shakespeare & Co. Somente em 1934 houve a 1ª edição da obra em língua inglesa.

A influência de Joyce tem sido enorme sobre inúmeros escritores, especialmente os da língua inglesa, como William Faulkner, John Dos Passos, Virginia Woolf e Samuel Beckett; de alemães como Alfred Döblin; de holandeses como Simon Vestdijk; de italianos como Carlo Emilio Gadda; e de brasileiros como Clarice Lispector e Guimarães Rosa.

Ulysses é uma obra cheia de neologismos, palavras-valises, citações eruditas, ironias, paródias e trocadilhos (Cfr. revista Istoé nº 1865, de 13/07/2005). No final do livro, há um monólogo de mais de 40 páginas, texto sem uma vírgula e um ponto sequer, que traduz o pensamento de Molly Bloom vindo aos borbotões, no fluxo normal de sua consciência. Ulysses foi escrito em inglês, mas possui inúmeras palavras em francês, latim, alemão e italiano além, é claro, do jamesjoycês.

Joyce sempre destruía seus originais e uma parte de Ulysses, vendida a peso de ouro por um colecionador, sobreviveu por ter servido de prova no julgamento por obscenidade que o autor sofreu em 1920.

Ulysses é uma obra praticamente intraduzível que, entretanto, já tem dois tradutores brasileiros. O primeiro foi Antonio Houaiss (Uais, segundo a verve de Paulo Francis), que editou o livro de 846 páginas em 1966 pela Civilização Brasileira. A outra tradução, que tem 912 páginas, foi feita por Bernardina da Silveira Pinheiro, professora de literatura emérita da UFRJ, e lançada pela Objetiva em 2005. Essa tradução é mais coloquial que a de Houaiss, que tem um estilo muito empolado. Há uma terceira tradução em andamento, de Caetano Galindo, também professor de literatura.

O escritor norte-americano Henry James foi o precursor do flux of conscience (fluxo da consciência), antes de Joyce e Freud, muito comum nos romances psicológicos modernos: Os personagens nunca deixam de discutir profunda e minuciosamente os acontecimentos mais banais. Toda a ênfase é dada ao reflexo dos acontecimentos no interior dos indivíduos (Mirador, Vol. 12, pg. 6407). James foi o criador da técnica da narração indireta: os acontecimentos são relatados por vários personagens, sob os pontos de vista diferentes de cada um, com o emprego do flash-back (idem, pg. 6407). Vale lembrar que, ainda antes de James, Machado de Assis já era um craque do romance psicológico, em livros como Memórias Póstumas de Braz Cubas e Dom Casmurro; nesta última obra, a personagem dúbia de Capitu é tratada com mão de mestre.

O labirinto de Ulysses (1922) é o mais complicado de quantos labirintos literários já existiram: labirinto de temas, de línguas, de estilos, de alusões, de relações epaço-temporais, enfim, labirinto da linguagem do homem que é identificado com o cosmos.

A cidade de Dublin é o símbolo desse cosmos, no centro do qual está o homem. Mas este centro não é mais o herói individual, Dedalus, deslocado para um plano secundário, e sim o homem comum, o judeu Leopold Bloom, que simboliza, no errante do homem dentro do labirinto cósmico. Este labirinto é rigorosamente construído segundo determinadas relações.

As seções de Ulysses correspondem a três partes da Odisséia homérica: a Telemaquia, Ulisses e Nostos. Cada uma das partes começa com o nome do personagem central: Telêmaco é Setphen Dedalus, Ulisses é Leopold Bloom, Penélope é Molly Bloom. Cada uma das situações corresponde rigorosamente a um episódio homérico. Assim, por exemplo, o enterro de Patty Dignam, acompanhado por Bloom, é a descida de Ulisses ao Hades; o nacionalista virulento que ataca a menina Bloom é o Ciclope, monstro de um olho só; a menina Getty exibindo-se na praia para a excitação de Bloom, é Nausicaa; as cenas alucinadas no bordel, com Bloom, Stephen e os colegas, é o encantamento de Ulisses e dos seus companheiros na ilha da feiticeira Circe; o retorno para a casa Bloom e Stephen é a volta de Ulisses para Ítaca e o seu reconhecimento pelo filho, Telêmaco.

Os episódios não estão só relacionados com a Odisséia mas também com as partes do corpo humano e a cada uma das artes e ciências humanas. Assim, por exemplo, a cena da biblioteca, em que Bloom e Stephen se encontram casualmente, corresponde ao cérebro, como órgão do corpo, e à literatura, como uma das artes humanas. A teia de relações do romance foi descoberta por Valéry Larbaud e depois explicada exaustivamente por Stuart Gilbert. Além desse labirinto de relações, Ulysses é ainda um labirinto de línguas, de paródias estilísticas, de montagens e associações verbais, e também associação de imagens, sobretudo no delirante monólogo final de Molly Bloom. O romance é, enfim, a paródia da narrativa, romance para acabar com todos os romances, e a paródia lingüística da realidade humana (Mirador, Vol. 12, pg. 6551-2).

Ulysses toma a forma de uma busca escreveu William York Tindall na obra James Joyce: Sua Maneira de Interpretar o Mundo Moderno e quase todas as personagens participam dela. A busca é sempre a mesma, assim como seu motivo verdadeiro, seja esse a tradição ou o que alguns chamam a integração, a força vital ou o plano qüinqüenal, o último iogue dos Anjos ou Deus Todopoderoso... Joyce simbolizava a busca do pai. Tendo presentes na mente seu próprio abandono e necessidade, elaborou uma imagem sugestiva, talvez a mais perfeita de todas, da preocupação principal do homem moderno.

Maiores analogias aparecem à medida que se avança na leitura do livro: a predileção de Bloom pela música suave e por sabonetes perfumados; o episódio dos lotófagos; a aparição de Bloom num cemitério e a viagem de Ulysses a Hades; a visita à oficina de um jornal e (com grande propriedade) a Caverna dos Ventos; uma luta de um bêbado na taverna com um cidadão terrivelmente enfurecido e o antro de Ciclope.

Finalmente, o monólogo da cama, esse alarde sem precedente, essa cadeia ininterrupta dos pensamentos de Molly Bloom, uma única frase, sem pontuação, de mais de quarenta páginas e vinte e cinco mil palavras, uma vívida retrospectiva de sua vida terrena e uma serena aceitação da mesma (Os Forjadores do Mundo Moderno, pg. 1091-92).

Joyce levou sete anos para finalizar Ulysses, que começou a ser publicado em forma de folhetim, em 1918, no The Little Review. Nos Estados Unidos, pressionado pela Sociedade Norte-Americana para a Supressão do Vício, o correio confiscou todos os exemplares, sob acusação de obscenidade, e os editores foram multados e fichados. Na França, uma admiradora indignada, Sylvia Beach, fez uma publicação particular do livro, enviando um exemplar a Joyce, encadernado nas cores azuis e branca da Grécia. O livro teve nove edições clandestinas pelas quais Joyce não recebeu um centavo sequer, a exemplo de D. H. Lawrence, autor de O Amante de Lady Chatterley.

Ulysses é uma projeção panorâmica da nostalgia de Joyce. Tal qual a narração épica da qual toma emprestado o nome,é um retrato, de vastas proporções, de exílio e viagens, de uma busca insana, entremeada de desespero, e de uma resignação final.

Os acontecimentos narrados por Homero ocorrem, porém, num dia comum (16 de junho de 1904) em Dublin, envolvendo Stephen Dedalus (Telêmaco), Leopold Bloom (Ulysses) e sua esposa Molly (uma Penélope infiel). Há muitas outras personagens secundárias, entre as quais Mrs. Bella Cohen, que dirigia um bordel (Circe), Miss Doyce e Miss Kennedy, camareiras (as sereias), Mr. Deasy, professor (Nestor), a romântica exibicionista de dezesseis anos, Getry MacDowell (Nausicaa). Mas a narração tem como centro Bloom, que perdera um filho e procura um filho substituto, e Dédalo, que repudiou a família e a religião e, desligado dos homens, procura um pai (pg. 1090).

Com significativos jogos de palavras, com alusões constantes à Música, à Mitologia, à Filosofia, a obras pouco conhecidas, com suas personagens estranhas, com seu ambiente pagão, com seu ritual católico e com sua penetração no antigo, a obra Ulysses é, incontestavelmente, a mais complexa, a mais desconcertante e a mais ilustradora de todos os romances se a considerarmos um romance jamais escritos em qualquer época (pg. 1094).

James Joyce ampliou o solilóquio shakespeareano, desenvolvendo um monólogo interior de extensão, amplitude e riqueza sem precedentes. Foi o primeiro a empregar a corrente da consciência como comentário fluido, como um desencadeamento avassalador de associações livres. Apreendeu e reteve em um amálgama fluido formado em parte por palavras, em parte por sílabas que deslizam insinuantes as formas dos sonhos difusos. Sendo um gênio que uniu o cósmico ao cósmico, um jesuíta renegado dotado da pureza de Rabelais e da crueza de Swift, Joyce foi um escritor tão influente que os imitadores foram inevitáveis, e de estilo tão próprio que a imitação tornou-se impossível (pg. 1098-99).

Na edição que tem Antônio Houaiss como tradutor, observa-se a riqueza de neologismos utilizados em Ulysses, alguns de tamanho quilométrico, um calhamaço de 846 páginas: andando sobre isso algoqualcerto (pg. 42), um letrâmetro cataléctico de iambos marchando (pg. 42), pereternidade (pg. 43), com omóforion empertigado (pg. 43), os hipocampos alvimontados, mordendo luciventibridões, os corcéis de Mananaan (pg. 43), sinsenhoreando o pai (pg. 43) guerreando a vida inteira quanto à contransmagnificandijudeibumbatancialidade (pg. 43), um naco de língua de lobo rubrifolegando de suas fauces (pg. 52), olhos pudoscentes, dentes lactibrancos (pg. 62), lambelambendo (pg. 63), enterra-o barato num comoquerquelhechames (pg. 79), via seu corpo e membros ondondulando leve e sustido (pg. 97-98), suas enormes botas cinzempoeiradas (pg. 113), óculos negribordeados (pg. 147), nutibocejissorriu tudo de uma vez (pg. 202), seu queridomeuamoreco (pg. 230), quando Rutlandbaconsouthamptonshakespeare escreveu o Hamlet (pg. 237).

Há frases surpreendentes em Ulysses, que devem ferir de morte os ouvidos dos puritanos stalinistas defensores do politicamente correto: A Inglaterra está nas mãos dos judeus. Nos mais altos postos: nas finanças, na imprensa. E são o sinal de decadência de uma nação (comentário de Mr. Deasy, pg. 38); A Irlanda é o único país que nunca perseguiu os judeus. Sabe por quê? Porque nunca os deixou entrar (pg. 41); Estas pesadas areias são linguagem que maré e vento inscreveram aqui (pg. 50); Trotou adiante e, levantando a perna traseira, mijou rápido curto numa rocha incheirada. Os prazeres de pobre (sobre um cão, pg. 53); Achas minhas palavras obscuras. Escuridade está em nossas almas, não achas? Mais maviosa. Nossas almas, vergonhiferidas por nossos pecados, apegam-se a nós ainda mais, uma mulher apegando-se ao seu amante, e mais e mais (pg. 55); Ele lhe olhava calmo a corpulência e para o entre-seio de suas mamas macias, esparramadas dentro da camisola como ubres de uma cabra (pg. 71); Cova de palha com bosta. A melhor coisa para limpar luvas de pelica de senhoras. O sujo limpa. Cinzas também (pg. 76-77); Lá está ele: fuzileiros de Dublin. Rubritúnicas. Muito chamativos. Isso deve ser o porquê as mulheres caem por eles. Uniforme (pg. 81); Aqueles velhos papas eram entendidos em música, em arte e estátuas e pinturas de todas as espécies. Palestrina também por exemplo. Ainda assim, ter eunucos no seu coro era forçar um pouco. Que espécie de voz é isso? Deve ser curioso ouvir depois da de seus baixos profundos (pg. 92); Rosto afogueado: rubriquente. Excesso de João Bebessobe. Tratamento nariz vermelho. Beber como o diabo até torná-lo adelito. Um bocado de dinheiro ele gastou para colori-lo (pg. 108); A carruagem galgava mais lentamente a colina da praça de Rutland. Batem seus ossos. Sobre caroços. É um indigente. Nem chega a gente (pg. 109); Deve-se ser cuidadoso com as mulheres. Pegá-las com as calças nas mãos. Nunca mais lhe perdoam (pg. 114); O padre alviblusado entrou após ele dispondo sua estola com uma mão, balançando com a outra o pequeno livro contra sua barriga de sapo. Quem lerá sem estorvo? Eu disse o corvo. Pararam perto do catafalco e o sacerdote começou a ler de seu livro num fluente coaxar (pg. 117). Açougueiros, por exemplo: tornam-se parecidos com bifes crus (pg. 118); Os cemitérios chineses com papoulas gigantes crescendo produzem o melhor ópio, contou-me Mastiansky. O Jardim Botânico é logo ali. É o sangue infiltrando-se terra adentro que dá vida nova (pg. 123); Ler a própria notícia necrológica dizque que se vive mais tempo. Dá-te um novo fôlego. Novo contrato de vida (pg. 124); Estamos agora rezando pelo repouso de sua alma. Desejando que sejas eterno e não no inferno. Bela mudança de clima. Da frigideira da vida para o fogo do purgatório (pg. 126); ... de fazer uma sesta dentro de uma cesta. Bobagem, não é? Cesta foi posto aí está claro por causa da sesta (pg. 138); Soa mais nobre que britânico ou brixtônico. As duas palavras como que sugerem gordura na grelha (pg. 149); A carne flácida do seu pescoço tremelicava como barbela de galo (pg. 155); Deus quer vítima cruenta. Nascimento, hímen, martírio, guerra, fundação de um edifício, sacrifício, flamofertório de rim, altares de druidas (pg. 170-71); Tudo à Mateu, primeiro eu (pg. 171); Foi uma freira dizque que inventou o arame farpado (pg. 175); Baboseira para embasbacar bobocas (pg. 183); Jejum do Yom Kippur limpeza da primavera do de dentro. A paz e a guerra dependem da digestão de algum sujeito. Religiões. Perus e gansos de Natal. Matança dos inocentes. Comer, beber e alegrar-se. Então é o pronto-socorro cheio depois. Cabeças atadas. O queijo digere tudo menos a si mesmo. Queijo poderoso (pg. 195); Deus fez o de comer, o diabo o como comer. Siri á la diable (pg. 195); E nós a empanturrar comida num buraco com outro atrás: comida, quilo, sangue, esterco, terra, comida: ter de alimentar-se como se atiça locomotiva (pg. 200); Dizem que ele dava sopa às crianças pobres para fazê-las protestantes na época da crise de batatas (sobre o Reverendo Thomas Connellan, pg. 205); Peter Piper picou um pito da pica de pico de picante pimenta (pg. 218); Cuidado com o que queres na juventude, pois o terás na maturidade (citando Goethe, pg. 223); meu reino por um trago (pg. 241); Depois de Deus, Shakespeare foi quem mais criou (pg. 242); arreganhou num sorriso sua grossa nigribeiçola (pg. 253). Os personagens de Ulysses gostam muito de caldeirada de carne do Egito, frase repetida muitas vezes no livro. Seria uma sopa de camelo?

Há admiradores e severos críticos de Joyce. Segundo Alfred Noyes, Ulysses é simplesmente o livro mais imundo já publicado. Yeats, porém, disse que era indubitavelmente a prosa mais reveladora de gênio já escrita desde a morte de Synge. T. S. Eliot declarou: Mediante o mito, mediante o emprego contínuo de paralelos entre o contemporâneo e o antigo, Joyce emprega um método que muitos outros utilizarão depois dele. É um modo simples de abordar, ordenar, de dar forma e significação ao imenso panorama de trivialidade e anarquia que é a história contemporânea (pg. 1093). L. A. G. Strong escreveu: Para apreciar a obra de Joyce de modo completo, os críticos precisariam saber tudo o que Joyce sabia (pg. 1098).

Para sobreviver, Joyce recebia a ajuda de amigos e anônimos. A maior parte do dinheiro recebido se destinava ao tratamento de sua filha Lucy, internada num sanatório, com problemas do sistema nervoso. No final da vida, começou a ficar cego e viu-se obrigado a escrever seus trabalhos em milhares de folhas grandes, com letras enormes. Joyce morreu em Zurique, no dia 13 de janeiro de 1941, depois de ser operado de uma úlcera maligna no duodeno.

Marx, Darwin, Freud, Proust, Joyce e Einstein foram os principais demolidores do século XIX. O mundo moderno começou em 29 de maio de 1919, quando fotografias de um eclipse solar obtidas na ilha de Príncipe, na costa oeste africana, e em Sobral, no Brasil, confirmaram a Teoria da Relatividade Geral, de Einstein. No princípio dos anos 20 surgiu uma crença, pela primeira vez em nível popular, de que não mais havia quaisquer absolutos: de tempo e espaço, de bem e mal, de conhecimento, sobretudo de valores. Erroneamente a relatividade se confundiu com relativismo, sem que nada pudesse evitá-lo (Tempos Modernos, pg. 3). Não há dúvida de que esse relativismo, de vários aspectos - o relativismo moral de Freud, o relativismo econômico de Marx, o relativismo literário de Joyce e o relativismo temporal de Einstein -, colocou o mundo moderno às avessas.

Paulo Francis estava errado. Ulysses não é uma obra desnecessária. Ela iniciou uma revolução na literatura, abraçada por escritores do naipe de Virgina Woolf, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Com Joyce, qualquer simples mortal se torna um herói homérico, não em luta contra monstros, deuses e sereias hipnóticas, mas na eterna luta pela vida, na trivialidade do dia-a-dia de um executivo ou de um simples operário. Que pode ser resumido nos oitenta mundos percorridos em um único dia, como Mr. Bloom, descrito magistralmente por James Joyce.

Bibliografia consultada:

1. ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA DO BRASIL PUBLICAÇÕES LTDA. MIRADOR, Volume 12. São Paulo e Rio de Janeiro, 1992.

2. JOYCE, James. Ulysses. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1966. Tradução de Antônio Houaiss.

3. JOHNSON, Paul. Tempos Modernos O mundo dos anos 20 aos 80. Biblioteca do Exército e Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1994.

4. Os forjadores do mundo moderno, 5º volume. Editora Fulgor, São Paulo, 1962 (direção de José Severo de Camargo Pereira, da USP). Tradução de João Neves dos Santos e Cecília Thompson.

5. Revista Istoé nº 1865, de 13/07/2005. Luiz Chagas, in Na pista de Joyce.