O flâneur é ser que observa o mundo que o cerca de maneira real e descritiva, levando a vida para cada lugar que vê. O flâneur descrever as cidades, as ruas, os becos, o externo. Desvincula-se do particular, recrimina o privado, de forma a ver a rua como lar, refúgio e abrigo. Este sentimento flaneuriano reflete a necessidade de segurança do indivíduo, a necessidade de identificação dele para com a sociedade. A rua é seu lar, seu mundo. Ali nada é estranho ou prejudicial. Na rua se sente confortável e protegido. O flâneur do século XIX representou a angústia da Revolução Industrial.

Mesmo que não habitante constante da rua, o indivíduo flâneur utiliza sua janela (caminho livre para o externo) para fazer sua observação e seu retrato. O flâneur é um fotógrafo. Porém além de imagens, ele registra idéias, sentimentos e atitudes. Descreve tudo com perfeição e carinho. Ama o mundo exterior e dele faz seu ideal profissional e emocional.

Baudelaire foi o precursor deste sentimento, foi ele quem abriu as portas e as janelas da rua para o leitor. Foi ele quem expandiu sua idéia, tão próxima da realidade, aos diversos flaneures ocultos pelo mundo. Esse sentimento observado é tão real e tão forte que caminhou pelo tempo e até os dias atuais, deixando um rasto perceptível em cada época da literatura. 

Através da visão do poeta-flâneur mostraremos as transformações urbanas.

OS POETAS

Charles-Pierre Baudelaire, poeta e crítico francês, nasceu em Paris em 9 de abril de 1821. Baudelaire move-se de acordo com sua  profunda instabilidade interior, o que  torna sua produção uma alma vertiginosa. Sua realidade é atormentada por causa da degradação da vivência moderna. Essa realidade aguda se reflete em sua poesia desesperadamente inquieta, tornando-o uma ameaça ao conformismo. No dizer de Walter Benjamin, Baudelaire é um lírico no auge do capitalismo que enfrenta a inquietação e o estranhamento. Na visão baudelairiana o homem moderno é vítima das agressões das mercadorias e tragado pelas multidões, com isso configura-se como um embriagado a perambular pela cidade em total estado de abandono, à beira de um precipício.

A uma passante
A rua em torno um frenético alarido
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa

Erguendo e sacudindo a barra do vestido.
Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,

A doçura que envolve e o prazer que assassina.
Que luz...e a noite após! Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de ter senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!

(BAUDELAIRE, apud BENJAMIN:2000 p.42)

O cenário inicial era a Paris do século XIX, logo o incômodo da industrialização afetou outras cidades, e hoje temos representantes dessa angústia no mundo inteiro. Baudelaire é apenas o alicerce para uma vasta coleção de seguidores que nunca se findará. Carlos Drummond de Andrade em seu poema Rua do olhar descreve seu sentimento em relação à um rua de Paris, como se ela fosse um olhar solitário a observar os homens que passam por ela. A rua  do olhar guarda cada passo, cada palavra dita nos caminhos sobre ela, sem contar a ninguém. É um local seguro e fiel, transmite amor, carinho e até sorri. Acalma e acolhe. O eu lírico dá vida à rua e aos objetos integrantes dessa rua, menciona o olho das coisas e até sugere que essas coisas respiram. Transmite a idéia de que o mundo cabe num olhar.

Entre tantas rua
que passam no mundo,
a Rua do Olhar,
em Paris, me toca.(...)
 

(DRUMMOND: Nova Reunião, p.87)

Baudelaire, da mesma forma que influenciou poetas e escritores do mundo inteiro, foi influenciado por Edgar Allan Poe mediante a tradução feita de O Homem das multidões. Poe tem como base em sua prosa o fantástico das exacerbações da natureza humana: as alucinações, cuja lógica ultrapassa a consciência habitual;  mentes inquietas e febris; e personagens neuróticos. Os cenários são repletos de morte e fatalidade, é a angústia de quem vê sua rotina tranqüila se tornando caótica.  O homem das multidões ou escritor maldito mergulhou fundo no lado desconhecido da alma humana. Sua influência foi além de Baudelaire, além da poesia Simbolista: Poe continua sendo lembrado na ficção científica, no romance policial moderno e psicológico.

Seguindo o mesmo caminho temos o filósofo alemão Franz Hessel. Em seu livro Passeios por Berlim, Hessel diz que o flâneur já não existe, dizem as pessoas, porque é contrário ao ritmo do nosso tempo. Mas eu não acredito(HESSEL:1999,p.54). Em sua concepção, flâneur é um nativo que se move pela cidade como se fosse um estranho. Hessel foi o primeiro que notou na cidade um enigma e foi ele quem soube fazer dos devaneios do flâneur um verdadeiro gênero literário. Para ele passear  e pensar se revelam uma mesma coisa(HESSEL:1999, P.54). Essa relação é encontrada desde a filosofia grega; Montaigne se apropria dela e acrescenta um novo conceito fundamental: andar e escrever, os corpos passeiam como movimentos de escrita. Rousseau, por sua vez, agrega ao movimento do corpo sobre o domínio da natureza, surgindo, assim, o passante solitário, criando a concepção do passeio como uma ação poética. Seguindo o preceito de Nietzsche em Ecce Homo, Estar sentado o menos possível; não confiar em nenhum pensamento que não tenha nascido ao ar livre e em plena liberdade de movimentos(NIETZSCHE:2000, p.140).

Depois de Paris, a arte de flanar segue por toda Europa, em especial Portugal e Inglaterra. Em Portugal com Fernando Pessoa, e seu heterônimo Álvaro de Campos; e, o herdeiro do caos urbano, Bernardo Soares, sendo que este despreza viagens em favor de passeios pela cidade. Mas nos fixaremos em Campos.

Homem do século XX, poeta futurista, vivencia o processo de industrialização de Portugal. É um inadaptado, não se rende às convenções sociais. Pessoa tem como raízes a percepção visual da realidade e o conflito familiar. Para Campos, o interesse pela cidade se dá pelo progresso material, é um lugar de mistério. Mas viver na cidade o reduz ao estado de mendigo e, sofre ainda mais por ser tão dependente dela e por ela ser tão indiferente a ele. Ele se sente isolado e abandonado na cidade, por isso a repele, mantendo dentro de si um mágoa grandiosa e um oculto desejo de incluir-se em sua vibração. O mais moderno heterônimo de Fernando Pessoa, em sua segunda fase, sensacionista e mecanicista, revela-nos o predomínio do espírito nietzschiano, a inspiração de Walt Whitman e o Futurismo de Marinetti. Da influência recebida de Nietzsche nota-se o seu gosto de observar as coisas e as pessoas que passam nas ruas, como exemplo temos o poema Tabacaria, que mistura, de forma fascinante, o mundo interior e a realidade universal ao mesmo tempo. Mostrando a angústia do cotidiano e o sonho de libertação.

(...)Para uma rua inacessível a todos os pensamento,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecida certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.(...)
(...) À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,

E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

(PESSOA:1983, P.139)

Em Londres temos um tipo inusitado de flâneur, personagem título da mais conhecida obra de Bram Stoker, Drácula. Adaptado para o cinema em 1992 por Francis Ford Coppola, o senhor das trevas, demonstra características de flâneur quando deixa a Transilvânia e vai para Londres. Em sua passagem pelas ruas londrinas, como flâneur, o Conde Drácula demonstra um olhar de estranhamento. Aparece na rua, como alguém fora de seu mundo, perdido e ignorado. Ele está entre a cidade grande e a burguesia, mas não se sente em casa em nenhum deles. Ele busca o lar na multidão. A história se passa no século XV, um líder e guerreiro dos Cárpatos renega a Igreja quando esta se recusa a enterrar em solo sagrado a mulher que amava, pois ela se matou acreditando que ele estava morto. Assim, perambula através dos séculos como um morto-vivo e, ao encontrar um advogado, descobre que a noiva deste é a reencarnação da sua amada. Deste modo, o deixa preso com suas noivas e vai para a Londres da Inglaterra vitoriana, no intuito de encontrar a mulher que sempre amou.

Na poesia baudelairiana a priori as imagens da mulher e da morte se interligam no cenário parisiense. A Paris de seus poemas é uma cidade submersa (...) o decisivo em Baudelaire é, no entanto, um substrato social, no idílio fúnebre da cidade: o moderno.      (Benjamin:2000, p.39) Nesta visão surge o Conde Drácula, o melhor representante do idílio fúnebre, além disso, nota-se também uma única diferença entre o poeta das  Flores do Mal e o texto fílmico de Coppola: são as cidades, Paris e Londres, que, mesmo assim, se interpenetram inevitavelmente, especialmente nesse período. Numa passagem do filme o Conde demonstra ter uma visão sóbria a respeito do homem. Durante uma negociação imobiliária refere-se a sua ida a Londres dizendo: andar pelas ruas povoadas de Londres. Estar no meio da precipitação da humanidade. Participar de suas mudanças e de suas mortes. Parece lógico que isso não é apenas um pessimismo vampiresco.

Um dado importante a se observar é a modernidade de flanar devido a iluminação a gás. A luz é essencial para todo o tipo de percepção, com ela surgiu a possibilidade de a multidão freqüentar as ruas à noite, transformando os passantes noturnos em presa fácil para a alimentação do Drácula. Ela não revela objetivamente as coisas que ilumina.

A aparição do flâneur no cinema não se restringe ao filme de Coppola. Na obra cinematográfica do diretor italiano Michelangelo  Antonioni é notória sua presença. Blow Up, traduzido para o  português como Depois daquele beijo, possui uma nova linguagem que marcou a década de 60 nesse suspense. Rodado na Inglaterra, o filme é carregado de simbolismos e chega quase a ser hermético. O enredo enfoca o envolvimento de um fotógrafo em um crime. Ao ampliar fotos feitas em um parque descobre o que parece ser um cadáver escondido nos arbustos. Obcecado, ele começa a investigar e se vê envolvido em situações bizarras. Ele tenta elucidar o caso cercado de mistério, sem temer eventuais riscos. É um mergulho profundo em um fragmento qualquer que revela nuances de outra forma imperceptível da realidade londrina. Porém, esse mergulho, à medida que tem na técnica seu principal instrumento, favorece a atrofia dos sentidos humanos não vinculados aos fins últimos da máquina. O incremento do senso estético, por conseguinte, tende a ser acompanhado da debilitação de outras modalidades de valorização.

No Brasil também temos representantes desta categoria. João do Rio (1881-1921), andarilho urbano com forte senso de observação, é um flâneur, em A alma encantadora das ruas, que relembra o Rio de Janeiro de 1905, onde o prefeito Pereira Passos  e o sanitarista Oswaldo Cruz levavam o projeto Paris Tropical, dando uma nova feição à cidade.

Repórter ficcionista, tematizava os problemas da subjetividade individual que enfrenta o ritmo da metrópole moderna e que nela encontra, ao mesmo tempo, a sedução e a ameaça. Esse mal-estar na civilização, experimentado pelo indivíduo, permite a Paulo Barreto, seu verdadeiro nome, lançar uma ponte entre o Rio de Janeiro e a realidade européia da belle époque.

O progresso em João do Rio é uma utopia ambígua, ao mesmo tempo sedutora e destruidora como as Flores do Mal  de Baudelaire. Os modelos que ele elege para legitimar sua criação Oscar Wilde, Poe e Dickens fazem parte daquela literatura que, segundo Benjamin (1980,p.53-55), detém-se sobre os aspectos ameaçadores e inquietantes da vida urbana e de suas multidões. Dado o grau de civilização atual, civilização que tem em germe todas as decadências, o crime tende aumentar, como aumentam os orçamentos das grandes potências, com uma percentagem cada vez maior de impunidade.   ( RIO, apud VENEU:2000, p.229). É esta proposta literária que faz do cronista da alta sociedade simultaneamente o observador da miséria urbana, pois ambas as realidades, refletidas pelo olhar do artista, são necessárias para equiparar o Rio a Paris. O progresso é unificador, capaz de tornar o Rio igual a Paris, Londres ou qualquer outra metrópole civilizada e decadente.

João do Rio se identifica como flâneur para solucionar o dilema do indivíduo. Cosmopolita desde o nome que o designa, para ele flanar é verbo universal, não pertence a nenhuma língua; ao flâneur, não cabem as estruturas fixas da vida social.

Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, Ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça (...). É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas.
 (RIO, apud VENEU:2000,p.235).

Mas a flanagem carioca não se resume a João do Rio, podemos considerar o Poetinha Vagabundo  Vinícius de Moraes um flâneur. Em seus versos, como observador, nasceu Garota de Ipanema. Vinícius exalta a beleza da mulher carioca que passa por ele na praia de Ipanema. Nestes versos há grandes semelhanças com o poema anteriormente citado de Baudelaire (A Uma Passante).

Olha que coisa mais linda,
Mais cheia de graça.
É ela menina que vem,
E que passa.

Num doce balanço,
a caminho do mar.
Moça do corpo dourado,
Do sol de  Ipanema.

O seu balançado,
É mais que um poema.
É a coisa mais linda,
Que eu já vi passar (...)

A cidade pós-moderna como núcleo urbano já não se configura como fetiche recorrente para o cosmopolita contemporâneo, não é mais lugar do choque, que inspirava o flâneur. Walter Benjamin acreditava no desaparecimento do poeta flâneur com as transformações das grandes cidades. Mas, assim como Hessel, nós não acreditamos na queda do flâneur. Hoje, o espaço para ser visto fragmentou-se em bares, restaurantes, lojas não do centro de uma metrópole em particular, mas no mundo inteiro. Mais além, é mais relevante ser visto através das telas, da televisão, do cinema e, principalmente, do computador. As imagens são mais valiosas para o cosmopolita pós-moderno que a realidade.

Atualmente, andar na cidade ou clicar numa home page transformaram-se em formas de flanar, o indivíduo-observador segue: passeando pelo mundo afora na cidade que não tem mais fim. (LIMA,1994)