A utilização de filmes em sala de aula não é nova nem tampouco incomum entre nós; pelo contrário, é cada vez maior o número de professores que se utilizam da filmografia existente para enriquecer ou diversificar uma aula, para ilustrar determinada passagem ou evento, ou ainda para recriar o cenário histórico propriamente dito. Professores de história ou de literatura, professores de geografia ou mesmo professores de ciências naturais não se cansam de enaltecer o vídeo como a grande panacéia para a monotonia de suas aulas, a apatia de seus alunos ou mesmo a mesmice do nosso sistema educacional como um todo, cujo repertório metodológico há muito encontrava-se fossilizado.

O que grande parte dos profissionais de educação parece esquecer é que antes de ser um ornamento para as suas aulas ou um bálsamo para a sensaboria e o tédio existencial que seus alunos experimentam, o filme é uma obra de arte! Como tal, possui valor potencialmente documental, é datado e possui não apenas semântica, mas também gramática própria. Como qualquer forma de arte, a produção cinematográfica possui um fazer específico, ligado a uma determinada estética, a um estilo. O filme é fruto de uma determinada época e da personalidade de um determinado artista, o cineasta.

Neste breve estudo pretendemos discorrer sobre duas tendências, dois estilos, três cineastas, três grandes filmes. Pretendemos demonstrar, ao longo de nossa exposição, que existe uma relação dialética e analógica nestes movimentos, uma relação dialógica entre os cineastas e uma relação analógica entre os filmes. Que o leitor nos perdoe a liberdade poética de transitarmos por vários outros filmes, pinçados aqui e ali, cuja alusão nos pareceu relevante, mas, afinal, é também de transgressão que tratamos.

Inicialmente diremos que SATYRICON, realizado por Federico Fellini em 1970, não é exatamente uma produção emblemática do neo-realismo italiano. Se desejássemos aludir, dentre a vasta produção deste grande cineasta, a um filme que servisse de paradigma, falaríamos de AMARCORD ou então LA NAVE VÀ, mas, embora não tenha tido a posteridade destes, SATYRICON é o documento pungente da relação que a modernidade guarda com a idade clássica e da relação que a Itália moderna estabelece com o império romano.

Trata-se de um trabalho que é antes de tudo arqueológico, já que é a recuperação de Petronio Arbitro, um autor romano, mas, também uma obra de arte, já que este passado clássico é recriado, não reapresentado. Trata-se do real em segunda instância, da releitura que o artista (cineasta) faz do texto literário utilizado e da época na qual ele foi escrito.

O enredo gira ao redor do triângulo amoroso formado pelos belos estudantes de artes Ascilto e Encolpio, que compartilham a paixão pelo adolescente Gitone. Ascilto conquista o amor de Gitone e parte com ele do cortiço onde vivia com Encolpio . Há um terremoto, o cortiço é destruído e tem então início as aventuras de Encolpio: participa do banquete de um novo rico que se julga literato, rapta, juntamente com Ascilto, o suposto Hermafrodite (semideus, filho de Venus e Mercúrio e que possui características de ambos os sexos) que vem a morrer, vivendo à seguir com o companheiro e uma escrava negra um idílio amoroso na “villa” abandonada de um casal patrício que se suicidou após libertar todos os escravos. Encolpio é então raptado por um mercador de escravos, com quem acaba se casando no mar . Por fim, luta com um minotauro e torna-se subitamente impotente, tendo de buscar o auxílio de uma feiticeira para recuperar a potência.

Os figurinos foram primorosamente adaptados de esculturas da era imperial romana, bem como os penteados das matronas e das demais personagens femininas apresentadas, o que dá à ambientação histórica um alto grau de veracidade. No entanto, os cenários conservam algo de teatral: o cortiço onde vivem as personagens principais é apenas uma boca de cena, um pano de fundo, bem como todas as demais construções onde se desenvolve o enredo; o barco do traficante de escravos é apenas um adereço cênico, sem qualquer possibilidade de navegar num mar real, no mundo real...

Esta ambientação fantasista engendra o diálogo que o cinema italiano restabeleceu com os seus artistas plásticos consagrados. Não há como não encontrar Giotto analisando este tipo de cenografia.

O minotauro apresentado é tão pouco convincente quanto a feiticeira; no entanto, embora seja evidente que tudo não passe de embustes, o filme nos convence. Intrínsecamente ele possui uma grande dose de verdade. Esta verdade, esta veracidade reside no fato de que ele não pretende reapresentar a realidade, mas sim recriá-la.

O tempo todo Fellini quer deixar bem claro ao espectador que se trata de um filme e não do mundo real. Tal como o pintor impressionista que nào esconde a sua pincelada, não apagando o seu fazer artístico, Fellini deixa claro que o filme, enquanto obra de arte, é ilusionista, quando muito realista, e não naturalista!

Existe uma dose muito maior de força e de verdade nos filmes de Fellini do que nos grandes épicos de cecil b. de mille, contemporãneo de sua primeira fase, pois, embora houvesse um cuidado imenso nas reconstituições primorosas de locações e figurinos naqueles grandes épicos (como os dez mandamentos, spartacus ou ben hur ) às vezes acontecia do todo nos parecer exageradamente ascéptico, de cores extremamente uniformes e de personagens absolutamente compostas, mesmo após uma cena de batalha... estava banida a sujeira,, o sangue e o suor, os odores e os sabores e, quando somos levados a esta constatação, rompe-se o encanto e a ilusão se desfaz; por mais que o cineasta tenha desejado instaurar a ilusão perfeita,, a mímesis, o efeito conseguido foi exatamente o contrário.

A realidade da obra cinematográfica reside exatamente no fato de que não se trata meramente de uma empostura, mas de uma releitura!

É delicioso apreciar a cena em que o jovem encolpio está em uma “galeria de arte” sendo orientado por um artista. Galerias de arte são um fenômeno contemporâneo e , certamente, se existissem na antiguidade aquelas não seriam as obras expostas!

Caravaggio, de derek jarman (inglaterra 1986) pertence ao neo-realismo inglês e chega a ser paradigmático: um filme produzido em pouco mais de vinte dias, numa garagem e com atores iniciantes retirados das ruas. Há objetos da nossa época (máquina de escrever, motocicleta,, calculadora, etc) , alguns figurinos absolutamente contemporâneos, baixo custo e uma temática “marginal” (a bissexualidade de caravaggio e a sua prática de recrutar modelos entre a escória da sociedade, michês, marinheiros e prostitutas).

Embora a tentativa de reconstituição de época seja práticamente ausente, há uma grande dose de situação, de alusão: a penumbra caravagesca está presente da primeira à última cena e cada uma de suas obras é primorosamente recriada (bem como obras de artistas consagrados de outras épocas, como david, cuja morte de marat é caricaturizada através do “descanso” na banheira de um crítico de arte, que usa máquina de escrever ao invés de pena). Respira-se a atmosfera real - e não a idealizada - na qual viveu michelangelo da caravaggio, com todos os seus vícios.

A alusão ao mestre fellini é inevitável e, neste caso, é intencional: derek jarman lhe presta uma homenagem. A verdade e a força deste filme são patentes, trata-se de uma autêntica aula de cinema: na cena em que se quer representar a passagem do século xvi para o xvii há apenas três pessoas e um cavalo, no entanto, a camera circula ao centro e há cortes bem colocados que, às vezes, nos dão a idéia da presença de uma multidão ruidosa; há tam,bém a cena em que dois personagens (lena e ranuccio) estão deitados numa rede e há roupa estendida no varal, o que sugere, precisamente, que estejam em um exterior, embora seja a mesma garagem de sempre. A referida garagem se metamorfoseia em praça de roma (à qual não falta sequer o chafariz), palácio papal e hospital, dentre várias outras locações extremamente bem situadas pela iluminação seletiva e colocação de alguns objetos de cena - que servem como índices ou marcadores para o espectador.

As cenas finais (o “flash-back” em que é mostrado como caravaggio mata ranuccio, após este revelar que havia matado Lena por ciúme, por amor dele; e a morte de caravaggio, seguida de uma cena surreal em que sua alma se transforma em anjo e assiste ao próprio fim) são absolutamente fantásticas e só adquirem coerência em virtude da coesão que existe em todo o enredo apresentado.

Entre os dois filmes e os dois movimentos são evidentes as afinidades; o gosto pelo marginal, os odores e os sabores, a vontade de deixar patente a todo instante que se trata de uma obra de arte, de um filme, e não da vida real! Os personagens retratados em um filme francês, a rainha margot, foram chamados pela crítica de “feios, sujos e malvados”. Talvez os personagens de fellini e de derek jarman também mereçam estes honrosos títulos, que só cabem em personagens que possuem força , vigor e uma grande dose de verdade.

O neo-realismo inglês da década de 1980 homenageava o neo-realismo italiano das décadas anteriores. Uma estranha passagem em veneza, filme italiano atual, de paul schrader e angelo rizzoli (itália, 1991), por sua vez devolve a homenagem.

É interessante discorrer brevemente sobre o enredo do filme, que se inicia com a voz de um homem, robert, contando uma anedota sobre a figura de seu pai, que ele repetirá inúmeras vezes ao longo da história. Colin e mary viajaram pela segunda vez à veneza, que foi a cidade onde estiveram dois anos antes. Há um mistério em torno do tipo de relação que existe entre eles (se trata-se de irmãos, colegas, confidentes), pois dormem em camas separadas e em nenhum momento há a menção de sexo entre eles.

Há um momento inclusive em que chegamos a crer que colin teria algum problema relacionado ao sexo. ao estarem perdidos numa série de vielas, e se depararem com uma obra de arte moderna, iluminada à neon e exposta num beco, que constava de uma cama com dois bonecos deitados, ele não apenas se assusta como denota desaprovação.

Exatamente na metade do filme tudo se aclara e eles tem um intercurso amoroso após entrarem em contato com Robert, que os leva para dormirem em sua casa. Há uma longa sequência onde permanecem despidos, ao final da qual conhecem caroline, esposa de robert. A partir daí vai se formando uma teia que visa capturar colin, pois, na ultima parte do filme é revelado robert e caroline compartilham de uma paixão obsessiva e doentia ´por ele. Mary é dopada e assiste aos momentos finais de colin, onde se misturam - em doses igualmente densas - erotismo e violência: ele é beijado por caroline que em seguida abre a sua braguilha,, quando robert faz menção de beijá-lo, o que faz na realidade é feri-lo mortalmente.

Este foi o clímax da ambiguidade erótica que robert e caroline mantinham em relação ao belo colin; o assassínio brutal deste, de forma virtualmente idêntica a que “michele” caravaggio utilizara para assassinar ranuccio; um corte preciso na jugular.

Tal como ranuccio - que também mantinha relação afetiva ambígua com caravaggio e lena - colin tomba ao chão, leva a mão ao pescoço e morre. O local dos excessivamente belos não é este mundo!

Robert não poderia consumar a sua paixão por colin, pois tem sempre de manter a imagem de “machão’ herdada do pai, conhecido pelo espectador através da anedota repetida monótonamente ao longo do filme. Ao mesmo tempo, não pode deixar que ele viva sem possuí-lo; a solução é evidente.

Uma vez que colin foi morto, robert se transforma em “roberto” e caroline em “carolina”. São dadas claras indicações de que eles fazem amor: haviam consumado os seus anseios necrófilos em relação ao seu objeto de desejo, eros e tanatos estão enfim reconciliados.

A mesma camera lenta de jarman, a mesma penumbra, acrescida do recurso fundamental de utilizar vários espelhos (inclusive o imenso espelho d’água sobre o qual está refletida a etérea veneza) fazem deste filme - embora infinitamente mais “clean” - também digno de figurar nesta nossa breve dissertação.

Esperamos ter levado o leitor a refletir não apenas sobre as infinitas possibilidades de utilização 9adequada e contextualizada) do cinema em sala de aula, mas também sobre a poética inerente á sétima arte, sua especificidade e sua capacidade de elaborar uma releitura crítica do real.

Luiz Carlos Cappellano, agosto 1998.

Publicado originalmente em:

SINPRO(Sindicato dos Professores de Campinas e região) – revista Cultura, ano IV, nº 36, setembro 1998, pp 14-16.

Republicado em:

FESB- Fundação Municipal de Ensino Superior de Bragança Paulista. Bragança Paulista. Revista GABARITO ano I, Edição 1, abril de 2005, pp 17-20.