TRÊS CORAÇÕES – UM SÓ POVO 

Raquel Pereira Bittencourt           

            O arqueólogo Fernando de Souza Pacheco, sempre foi muito bem respeitado no meio cientifico, por suas descobertas excepcionais, que fizeram com que o Brasil entrasse na lista dos paises mais cobiçados à exploração arqueológica tanto por europeus, quanto por americanos. A arqueologia no Brasil era fato relativamente recente, pois se tratando de um país jovem, as escavações também eram significativamente novas. O início de tudo se deu com Peter Lund, um dinamarquês que pesquisou as grutas de Lagoa Santa em Minas gerais e encontrou juntamente com sua equipe, uma infinidade de ossos humanos misturados aos de animais com mais ou menos vinte mil anos.  O acontecimento foi no ano de 1834, quando o Brasil já era independente de Portugal. Mesmo assim, houve contribuição por parte do Império, em especial por Dom Pedro II, para que se implantassem unidades de pesquisa no país, a fim de explorar melhor a arqueologia brasileira.  No entanto o interesse por buscar  sítios arqueológicos, começou a se intensificar a partir de 1950, quando se achou muito material no Amazonas, no Pará, no Piauí, no Mato Grosso e na faixa litorânea. Em 1961, uma lei foi instaurada para evitar a destruição dos sítios arqueológicos.

            Fernando fazia parte da nova geração de arqueólogos, que estavam em pleno século vinte e um, resgatando o passado perdido.  Ele era como a maioria branca brasileira, descendente do colonizador Português, muito embora em sua genética houvesse uma contribuição significativa de outros grupos étnicos europeus. O arqueólogo se orgulhava de sua pele branca, cabelos escuros e olhos claros que herdara de sua mãe. Muitas vezes, para ficar horas e horas procurando vestígios de civilizações perdidas, ele usava muitos aparatos para proteger essa tez tão clara, que poderia o sol tropical, lhe acarretar grandes problemas. Fernando trabalhava às vezes, nos sítios arqueológicos que ficavam em lugares lúgubres, cheios de animais, vegetação espessa, e toda a proteção era bem-vinda para mantê-lo longe de queimadura solar ou mesmo de picadas de muitos insetos que faziam parte da natureza, na qual estava sempre inserido. O trabalho de um arqueólogo não é fácil, resultado de muita pesquisa e paciência, que nem sempre resultava naquilo que deseja.  São cientistas que estudam pedras, pinturas, vestígios de fogueiras e objetos, de povos que viveram muitos anos atrás. Muitos desses povos não deixaram nada escrito e só estudando esses objetos, é que se pode chegar a algumas conclusões dos hábitos que esses grupos humanos poderiam ter.  Através da pesquisa desses vestígios é que os arqueólogos podem ter uma noção de como os humanos se comportavam, trabalhavam e fabricavam instrumentos, a alimentação, as roupas e até mesmo os ornamentos que usavam.

            No entanto, apesar da tecnologia que era utilizada para que pudessem trabalhar com mais competência e de toda a globalização no planeta, Fernando em suas andanças pelo país, constatou a existência de muitos locais ainda inexplorados no Mato Grosso, Pará e Amazônia. E sabia que a qualquer momento ele faria a descoberta que revolucionaria todo o mundo arqueológico. A sua equipe era formada por muitas pessoas conceituadas, algumas com renome internacional. Faziam parte alguns antropólogos, sócio-ambientalistas, historiadores, médicos e dois indígenas caiapós, que estudaram nas universidades tradicionais e contribuíam para a realização satisfatória do trabalho. As pessoas eram oriundas e muitas etnias e de culturas.  Mas Fernando sempre gostou de trocar experiências, pois sabia que em cada individuo, havia um mundo a ser explorado, e ele como bom arqueólogo, não hesitava em aprender cada vez mais.

            Fernando tinha na equipe, um amigo que o acompanhava desde que foi estudar no exterior, pois no Brasil infelizmente, não havia uma universidade formadora de arqueólogos. Edinardo era para ele como um irmão. Um afro-descendente, que havia conseguido sobreviver e estudar, as duras penas, mas que ainda assim, adorava samba e fazia as noites no sitio, muito mais felizes.  Os dois se formaram na mesma universidade, e por estarem longe do Brasil, se apegaram muito um ao outro, pois podiam conversar o mesmo idioma e os interesses eram comuns. O afro-descendente adorava suas raízes e quando podia, viajava com outros arqueólogos para a África, para poder ouvir histórias de seus ancestrais e para poder satisfazer sua duplicidade entre ser brasileiro e africano. Porém, Fernando era o companheiro de labuta que Edinardo mais admirava. Para Edinardo, ele era uma pessoa respeitada no meio cientifico, mas que não havia perdido sua simplicidade. Isso o fazia ainda mais valoroso como alguém que transitava entre vários mundos, assimilando quando necessário, brigando pelos interesses em outros momentos e acalmando os temperamentos quando os ânimos da equipe se desalinhavam. Como afro-descendente, Edinardo conseguia ver em Fernando, a figura de Exu, aquele que liga os deuses ao ser humano.

            Essa figura mítica africana, por ter sido trazida da África e adaptada aos costumes da colônia, se modificou para a própria sobrevivência da cultura. Havia ganhado vários aspectos outros na personalidade, que o verdadeiro deus africano, não possuía. Na realidade essa entidade tornou-se quase que praticamente outra, em terras brasileiras. Fernando não gostava muito quando era comparado a Exu. Foi criado na religião cristã, onde Exu era visto como algo mal e não alguém capaz de ligar o divino com o humano. No entanto Edinardo, quando se inspirava na brincadeira com Fernando, quase sempre o provocava, comparando-o com a entidade:

            - Hoje Exu baixou na terra! – dizia Edinardo sorrindo, limpando uma cerâmica que havia achado no meio do areal.

- Edinardo, tu não me provoca, que já vamos pro braço!

- Eu vi o jeito que Ito e Renato estavam se cutucando hoje por causa daquele pedaço de osso que acharam ali no sitio três.

- É amigo, os dois ali vivem disputando quem consegue ser mais rápido na busca por novos objetos dentro do sitio – respondeu Fernando, tirando com o pincel a terra que encobria algo que ele pensou ser um osso.

- Depois não quer que eu o chame de Exu – sorria Edinardo – só você mesmo pra ter paciência com duas estrelas como nossos amigos ai. Se fosse eu já partia pra capoeira. Você sabe que sou bom nisso.

- Tem vezes que eu até tenho vontade de partir para a capoeira, mas eu sou responsável por esse trabalho, se qualquer coisa sair errado, não recebemos mais verbas para podermos colocar nosso projeto adiante.

- Eu sei disso Fernando, mas esses dois brigam demais, porque o Renato vive chamando o Ito de Japona, e ele diz que não é japonês, que é brasileiro.

- É... alguém tem que colocar ordem no recinto, todo o nosso trabalho será em vão, afinal de contas, estamos atrás de vestígios de povos humanos e isso é o que tem que ser mais importante por aqui, não a importância pessoal de cada um – disse Fernando.

- Mas que você parece Exu, parece!

- E você vai ficar parecendo um fantasma, agora mesmo! – respondeu Fernando jogando toda a terra que tirava, em cima de Edinardo, que saiu tossindo e gargalhando para o outro lado e tentando limpar o pó que havia impregnado o seu rosto.

             Edinardo era o terror das meninas. Menino neto de escravos teve que enfrentar muitos problemas no mundo “branco” para sobreviver. Foi engraxate, vendedor de picolé, até conseguir terminar o nível médio, e conseguir uma bolsa integral de estudos no exterior.  Apesar de no Brasil, a maior parte a população ser miscigenada e ter sangue de africano nas veias, o preconceito em alguns locais ainda é muito grande e não foi diferente de Edinardo. No entanto, ele era desses rapazes conversadores, que sempre estão alegres e que fazem o ambiente ficar mais leve. Onde havia uma roda de meninas, podia saber... lá estava Edinardo, com seu senso de humor apurado, suas piadinhas leves e seu jeitinho de menino travesso.  Mas ele conservou todo esse bom humor, graças a sua inteligência e sua capacidade. Ali no meio da equipe, nunca teve problema nenhum. Todos tinham cultura e isso faz diferença nas pessoas. Mesmo quando Renato brincava com Ito, no fundo todos sabiam que aquilo não tinha a menor importância, pois não era a etnia a qual eles pertenciam, que os faziam menos ou mais humanos que outros. Ele era respeitado como excelente arqueólogo, mas principalmente, por ser uma das pessoas mais carismáticas daquele lugar. Apesar de na equipe, haver uma antropóloga loira, descendente de alemães, que demonstrava de todas as formas querer se aproximar dele, ele não tencionava cortejá-la, pois adorava sua vida de solteiro e galanteador. Não poderia misturar trabalho com romance, isso implicariaem compromisso.  Erabom ser livre.

II

            A floresta no Estado do Mato Grosso, divisa com Pará próxima à Serra do Xingu, era densa e os carregadores se emaranharam dentro dela para colher algumas frutas silvestres, disseram ouvir vozes, som de batuques e danças. Eles haviam ficado naquele sitio arqueológicos por seis meses, mais três dias e estariam em casa desfrutando de alguns dias de folga. Porém, a expectativa de se encontrar alguma cidade no meio daquela mata foi tamanha, que a equipe de Fernando em uma rápida reunião, decidiu averiguar quem estaria naquelas matas tão cerrada e fechada.  Eles teriam que ser muito cautelosos, pois o lugar estava coberto de vegetação, musgo e estava úmido. A impressão que se tinha, era que nunca, ninguém havia entrado naquele local antes deles, ao menos não um grupo de cientistas, pois tudo estava completamente fechado. Mas de onde vinham aqueles sons?  As copas das árvores encobriam completamente o céu e por não passar um raio de sol por entre elas, a umidade fazia com que houvesse uma garoa fina interminável.  Os carregadores olhavam desconfiados para todos os lados, era dia, mas pareciam altas horas da madrugada. Qualquer barulho fazia seus corações dispararem. Um pássaro, uma capivara ou qualquer animal que se movesse no meio da floresta, fazia com que todos ficassem aterrorizados.  Estavam andando com calma, devagar, sondando o ambiente. O celular via satélite (GPS)[1], havia parado de funcionar. O jeito era voltar ao meio tradicional, usando bússola para não se perder. Afinal de contas, não estava no contexto se embrenharem na floresta desta maneira, mas a pergunta não queria calar: como poderiam humanos estar num lugar assim tão inóspito?

            Fernando e Edinardo estavam atentos. Os sons na floresta se confundem, o vento parece ter uma voz própria. Eles não podiam demonstrar a ansiedade que os estavam consumindo. De repente começaram a escutar um som de um instrumento que parecia ser de sopro abafado. Pararam e se entreolharam. A euforia começou a tomar conta da equipe, quando sinais de uma antiga civilização começaram a despontar na medida em que avançavam em direção ao som, que ficava cada vez mais alto. Agora não havia duvida, eram homens e mulheres que dançavam e entoavam cânticos, numa linguagem que ninguém conseguia entender.  Edinardo foi o primeiro a entrar no cenário. Pareciam que dois mundos foram separados pela floresta, um mundo encerrado nela mesma, denso e escuro e um outro em que o sol imperava magicamente e que o cegou momentaneamente.  Ele adentrou naquelas ruínas, seguido pelo restante da equipe, meio aturdidos com a visão embaçada pela luz, eles não se deram conta de que haviam achado uma edificação em ruínas.

            No entanto, a perplexidade deu lugar ao pânico. Indígenas altos, de cabelos compridos até a cintura, circundaram a equipe. Eles eram muitos, entre homens, mulheres e crianças, pareciam chegar perto dos cem. Alguns deles usavam botoque introduzido no lábio inferior e estavam com os corpos pintados de preto e vermelho. Mas não aparentavam ameaça e nem estavam em atitude de ataque. Pareciam mais curiosos, do que agressivos. Começaram rodear todos de uma só vez em torno do grupo, e falavam entre si, uma linguagem aparentemente bem articulada. Olhavam para a antropóloga loira e alguns inclusive, tocaram seu cabelo amarelo e riram. Outros se admiravam dos olhos de Fernando, alguns apontavam para eles e gesticulavam entre si.  Apesar de serem morenos, ficaram admirados com Edinardo. Passavam as mãos em sua pele e principalmente as mulheres, se cutucavam e riam ao olhar para ele. O que surpreendeu oi uma indígena que devia ter uns dezessete anos, com os cabelos brilhantes e lábios carnudos. Fernando falou nervosamente:

- Ito você como lingüista, tente fazer algum gesto para esse povo e ver se consegue identificar o que eles estão falando entre eles.

- Temos dois indígenas entre nós Fernando, tente algo.

- Me admiro você não saber que existem várias etnias entre estes povos Ito. Você acha que índio é todo um grupo só?

- Mas tente, vamos ver no que dá.

            Os indígenas se chamavam Bebidirti Metuktire e Bebijore[2] e imediatamente viram que se tratava de um grupo da mesma etnia.  Logo começaram a conversar o mesmo dialeto com o cacique, que lhes informou estarem na ruína daquela cidade, porque estavam vindo do Pará, fugidos de garimpeiros e madeireiros que haviam invadido as suas terras e queriam ajuda.  Os indígenas da equipe, explicaram a Fernando que, geralmente os caiapós não admitem contato com civilizados e que entram até em guerra se forçados a isso, consequentemente a tribo se dividiu há cinqüenta e sete anos e os que foram viver junto com os brancos pensaram que o restante do grupo, havia morrido, pois não queriam viver na civilização e fugiram. Disseram também que essa tribo era da mesma família dos índios da tribo do cacique Raoni[3].  Assim que a tribo entendeu que havia mais deles vivendo junto com os brancos, choraram e chamaram todos para dançarem e cantarem, pois poderiam se reencontrar com aqueles que pensaram nunca mais ver[4].  Fernando ficou preocupado porque essas pessoas não poderiam ficar muito tempo em contato com eles. Os brancos tinham doenças transmissíveis, que poderiam contaminar todos os indígenas, pois eles não tinham anticorpos para combatê-las.

- Edinardo, fizemos a maior descoberta de antropologia de todos os tempos!

- É mesmo Fernando, conseguimos entrar em contato com os primeiros habitantes do Brasil, ainda em estado selvagem. Isso compensa qualquer coisa.

- De onde será que esses povos se originaram hein? Você sabe que como arqueólogos, qualquer dia desses nós saberemos a resposta.

- Vejam como estão alegres pela possibilidade de reencontrarem os parentes. Por quanto tempo pretendem ficar nestas ruínas? – disse Fernando pensativo.

            Enquanto os dois questionavam sobre o destino dos indígenas, a indiazinha se aproximou juntamente com uma outra mais madura, trazendo bebida para toda a equipe, de algo que parecia uma fruta fermentada. Todos aceitaram de bom grado, afinal de contas, a emoção ainda estava aflorando e isso significava que os indígenas os haviam aceitado compartilhar com o grupo.

III

            A noite chegou rapidamente, os indígenas acenderam a fogueira no meio das ruínas, no meio de algo que há muito tempo atrás, deveria ter sido um pátio. Estavam de alguma forma protegidos naquelas construções milenares e apenas alguns deles precisou construir barracos para se acomodar. Na floresta havia muita madeira e todo o tipo de vegetação possível, onde os índios puderam colher vários frutos e também havia muitos rios com muitos cardumes.  Os indígenas começaram a dançar em volta da fogueira, usando seus instrumentos musicais o japurutu, o cariçu e a flauta (instrumentos de sopro), também usavam chocalhos e maracás.  Ficaram um pouco assustados quando os indígenas que viviam com os brancos, contaram muitas histórias e disseram a eles que as matas estavam cada vez menores, por causa da ambição de alguns homens em busca de riquezas, e agora, se eles voltassem para perto dos familiares, teriam que viver em reservas, que o governo brasileiro providenciava para as tribos.  No Mato Grosso havia uma reserva em especial, que seria bom se mudassem pra lá chamada Capoto / Jarina, a mesma de Raoni. Lá habitava também o cacique Megaron Txucarramãe, que lhes daria guarida, pois além de morar na aldeia, era administrador regional da Funai, numa cidade próxima chamada Colider. Esta aldeia fica isolada, para que não ficassem doentes pelo contato com o branco.

            O amanhecer naquelas ruínas era simplesmente fantástico, Luana (a antropóloga loura), subiu as escadarias do templo que se erguia no meio daquela selva e admirava aquele sol radiante.  O vento batia em seus cabelos e lhe dava ares de deusa, pelo menos foi o que pensou o indígena que a espreitava em cima da copa de uma das árvores, enquanto ela admirava a paisagem.  Ele acompanhava cada movimento daquela mulher linda, que ele jamais tinha visto em sua vida. Nunca havia imaginado que as mulheres brancas poderiam ser tão atraentes, aliás, nem sabia que existiam outras mulheres que não as índias. Mas ele estava realmente muito empolgado em ver criatura de tal beleza.  Mas, seus pensamentos foram subitamente atrapalhados, porque ao ficar tão concentrado na figura feminina que estava na sua frente, não viu que o galho da árvore estava prestes a quebrar.  O indígena caiu com um som surdo no meio das folhas secas. Luana voltou o olhar para a direção do som e viu Takak, um indígena de cabelos pelos ombros, negros e brilhantes. Ele se levantou meio sem graça, afinal para um guerreiro, isso deveria ter sido terrível. Luana sorriu e pediu para que ele a encontrasse lá no templo, através de sinais.

            Fernando acordou com a sensação de ter levado uma surra. Seu corpo estava todo dolorido. “Estou ficando velho”, pensou. Ao se virar, teve uma surpresa, ao seu lado, a indiazinha que Edinardo havia achado bonita, estava ressonando. Tentou levantar, mas os braços da menina estavam ao redor de seu pescoço. Sua cabeça doía demais e isso o fez concluir que havia passado do limite na noite anterior. Não estava acostumado com aquele tipo de bebida e certamente ela havia produzido um efeito indesejado. Olhou confuso para a índia e entendeu perfeitamente o que havia acontecido. Levantou cambaleante e olhou ao redor.  A índia nem se mexeu, virou-se e continuou no seu sono.  Fernando ficou aturdido, qual seria a reação dos indígenas com aquela cena? Ele mesmo não entendia o que havia ocorrido, mas percebeu que daquele momento em diante, algum tipo de conseqüência o aguardava. Saiu da cama improvisada, meio tropeçando e tentando lembrar dos fatos da noite anterior. O sol estava forte, seus olhos ardiam, sua cabeça fervilhava e ele não conseguia compreender.  O pátio estava silencioso. Deveria ser muito cedo, porque todos estavam quietos e recolhidos nas suas cabanas ou dentro das ruínas. Fernando chegou perto do rio para tomar banho e colocar as idéias no lugar. Foi quando olhou suas mãos que estavam todas machucadas, como se tivesse brigado. Olhou seu reflexo na água e viu que seu rosto também estava com hematomas vermelhos. Sentou aturdido. Foi quando o cacique apareceu acompanhado dos dois indígenas da equipe de Fernando e mais três dos que faziam parte da tribo selvagem. Seu rosto estava transtornado e parecia esbravejar. Os indígenas companheiros de Fernando procuravam mantê-lo protegido dos outros, que vociferavam e queriam de qualquer forma guerrear contra Fernando.

- Bebijore, o que está acontecendo?

- Fernando, ontem você bebeu demais e Edinardo também.

- Como assim Bebijore... não me diga que Edinardo se meteu em confusão.

- Se meteu com você, que tirou a índia dele.

- Eu tirei a índia dele? Como Bebijore?

- Vocês brigaram ontem na disputa por essa índia. Como os meus parentes aqui não entendiam o costume dos brancos, deixaram que se entendessem sem intromissão. Porém seu erro Fernando foi levá-la para seu leito. Os indígenas entenderam que havia se casado e agora o cacique exige a cerimônia de consumação.

            Lá nas ruínas, Luana e Takak trocam informações através de mímica. Um admirando a beleza do outro, que era exótica para ambos. Eram contrastantes na realidade, pois Takak tinha um cabelo preto, liso e brilhante. Era alto, tinha músculos bem definidos, seu corpo pintado para evitar picadas de mosquitos, o deixava mais forte aos olhos de Luana. Enquanto isso Takak admirava as formas daquela mulher delicada, de pele macia e alva, aqueles cabelos cor do sol. “Será que aquela menina seria capaz de gostar de um caiapó?”, ele pensava, enquanto a admirava.

            Edinardo acordou tão tonto quanto Fernando. Lembrava vagamente de ter brigado com seu amigo, por causa da indiazinha. Sentou desconsolado. “Menos de dois dias para estragar uma amizade de quantos anos?”.  Ele tentou recordar os fatos da noite anterior. Tinha que falar com Fernando e dizer a ele, que antes de qualquer coisa, havia a amizade deles maior que todo o acontecimento. Mas não precisou nem mesmo sair do lugar, quando viu Fernando vindo em sua direção acompanhado do cacique e dos demais. Seus rostos sisudos deram a Edinardo a idéia do problema que isso havia ocasionado.

- Fernando....

- Já sei Edinardo – disse Fernando – eu já sei o que aconteceu conosco e não... não estou chateado com você... sim... estou chateado comigo.

- E agora?

- Agora que estou indo me preparar para a cerimônia do meu casamento. Se assim não o fizer, nossas vidas já eram.

- Não há possibilidade de negociação?

- Eles disseram que é uma desonra para a tribo, o que fizemos dentro da comunidade deles e que a menina que ficou comigo esta noite, estava destinada a um guerreiro, que também como nós, trouxe a ira dos deuses na tribo, porque este também foi atraído pela mulher de cabelo do sol. Por isso ou eu me caso com a índia, ou morreremos todos e seremos sacrificados aqui mesmo.

- Me perdoe meu irmão – falou Edinardo chorando.

Os indígenas riram e conversaram entre eles. Apontavam para o rosto de Edinardo e riam. Fernando perguntou a Bebijore o que diziam e ele lhe respondeu que, eles riam porque homem de pele escura chorava feito uma mulher e o homem de pele branca tremia feito um macaco quando ia ser abatido. Fernando e Edinardo apenas se entreolharam.

            Os índios subiram até as ruínas onde estavam Takak e Luana, avisá-lo que sua prometida agora seria mulher do branco que atraiu a fúria dos deuses e que se ele não se afastasse da mulher cabelo de sol, provavelmente os deuses ficariam mais irados com eles ainda. Takak em principio ficou irado, mas como se o destino dele fosse outro, olhou para aquela mulher que passara quase toda a manhã gesticulando e sorrindo, e entendeu porque a sua prometida havia aceitado Fernando. Disse que saíssem que iriaem seguida.  Eleentendia que os deuses haviam mandado os homens e mulheres brancos para aquela selva para salvá-los dos próprios homens brancos. Ele analisava consigo mesmo, que apesar de ser selvagem, sabia que dentro da tribo deles havia homens bons e homens maus e que dentro da tribo dos homens brancos, provavelmente acontecia a mesma coisa. Se a indiazinha aceitou ficar com Fernando, foi porque o amou, assim como Takak já amava aquela mulher branca.

            Fernando agora sabia como o português se sentiu, quando saiu de sua terra e solitário encontrou nas mulheres africanas e indígenas, o amor que havia perdido na sua terra natal, ou mesmo quando, homens negros e índios, tiveram que se unir para se defender do homem branco, que os escravizava e os dizimava. Fazia dois dias que estavam naquele local, mas parecia uma eternidade, por tantos fatos inusitados que aconteceram desde que encontraram esse povo tão guerreiro. Ele já havia passado por todos os ritos para se tornar um caiapó e dentro da lei da tribo, se casou com Awá Txucarramãe. O que faria quando chegasse a civilização? As leis que ele seguia eram leis de brancos, mas sua esposa iria morar inevitavelmente em uma reserva, pois provavelmente, as chances de se adaptar na cidade seria difícil.  A não ser, que ele morasse em Colider, que ficava perto da aldeia para onde tencionam levar os indígenas e protegê-los dos garimpeiros e madeireiros, que já haviam assassinado vários deles, para ficar com a terra. Precisava urgentemente retirá-los dali e pô-losem segurança.  Depoisdisso, explorar o local e descobrir através dos objetos, a história de uma civilização inteira e vislumbrar a possibilidade desses indígenas serem os descendentes dos construtores daqueles templos e casas que se encontravamem ruínas. Eletentaria junto ao governo brasileiro, patrocínio e se porventura não fosse o suficiente, poderia barganhar com outros arqueólogos estrangeiros, o direito de exploração da descoberta. Sem contar, que a equipe se tornaria famosa, pois foram os primeiros brancos a entrar em contato com essas pessoas.

            O arqueólogo olhou para sua esposa caiapó. Ela era linda, exoticamente linda. Na realidade este casamento as pressas foi bem-vindo na vida dele. Já estava com quase trinta anos, era tempo de arranjar uma esposa e constituir família, teria que aprender o dialeto que falava e ensinar algumas coisas a ela.  Era hora de trocar experiências, de aceitar as diferenças e de aprender mais um sobre o outro. Edinardo tinha razão, ele foi Exu, conseguiu mesmo sem querer, ligar o mundo dos brancos, com o mundo dos indígenas. Ele havia aprendido muito também com os afro-descendentes e este era o lado bom da miscigenação, porque a cultura desse povo não empobreceu, muito pelo contrário, somou com a do branco, e ambos ganharamem sabedoria. Sorriue pela primeira vez em muitos anos, se sentiu feliz.

           

IV

            A imprensa toda se reuniu para ouvir a declaração do famoso arqueólogo brasileiro Fernando de Souza Pacheco, que em conjunto com sua equipe, tiveram a grata surpresa em encontrar a tribo pedida dos caiapós.  O cacique Megaron Txucarramãe foi o principal mentor em reorganizar o grupo na aldeia Capoto / Jarina.  A emoção foi muito grande na aldeia, quando os anciãos da tribo tomaram conhecimento de que aquele grupo que havia se separado deles há cinqüenta e sete anos, havia sido localizado pela equipe de arqueólogos. Choraram muito ao receberem os parentes distantes e ficaram profundamente emocionados, ao ouvir o canto dos guerreiros perdidos, que há muito já havia mudado, devido a miscigenação com os brancos. A cultura não havia sido totalmente modificada, mas muitos costumes de não índios haviam sido incorporados a ela. Daquele momento em diante, os caiapós ficariam isolados completamente dos brancos, a fim de não serem vitimas de doenças dos brancos.

            Os indígenas contaram que madeireiros e garimpeiros tentaram tomar as suas terras a força e que para conseguir tal façanha, assassinaram alguns deles. Com muito medo partiram sem uma localidade determinada, a fim de pedir socorro. Acabaram chegando naquelas ruínas, mas a intenção era caminhar mais cinco dias e chegar a algum lugar, onde avistassem alguém que entendesse seu dialeto, mesmo não sabendo se havia tal possibilidade. Megaron lhes deu de presente miçangas coloridas, facões e machados, pois os caiapós apreciam este tipo de objeto. A primeira determinação do governo foi isolá-los, mesmo os que viviam em comunidade, e com isso, Fernando não pode continuar com sua Awá por um período. Entretanto, a afeição pela índia havia aumentado muito, desde que saíram das ruínas e voltaram para a civilização, que o arqueólogo resolveu trazê-la para perto de si, tomando todas as atitudes possíveis em relação a saúde da pequena. Levou-a consultar os melhores médicos, dando-lhe vacina e  imunizando-a das supostas doenças que poderia deixar sua indiazinha doente. A consulta na ginecologista foi a mais interessante de todas, pois Fernando soube que seu filho primogênito estava a caminho. Fernando se sentiu muito feliz em saber que mais um brasileiro estava prestes a ingressar no paraíso cultural.

            Quanto a Takak e Luana, a história poderia ter sido diferente. Porém o amor era só da parte do indígena, Luana não correspondia ao amor de Takak, pois era apaixonada por Edinardo, que continuava sendo a atenção das meninas por onde passava. Entretanto os olhares entre os dois, já estavam diferentes. Quem sabe? Uma loira com um afro-descendente? Sabemos que a cultura brasileira é formada principalmente por afro-descendentes, portugueses e indígenas. Então, logicamente que essa miscigenação só tende a dar certo, as culturas viajam e com elas todas as riquezas, costumes, alimentação, vestuário etc. “Brasil , meu Brasil brasileiro, meu mulato inzoneiro, vou cantar-te nos meus versos”[5].

                                                                                                                                                                                   

http://portalamazonia.globo.com/artigo_amazonia_az.php?idAz=320

<http://www.estadao.com.br/ultimas/nacional/noticias/2007/jun/01/349.htm?RSS#>  



[1] Sigla em Inglês de Global Positioning System

[2] São pessoas verdadeiras, ambos coordenadores das 18 aldeias localizadas na reserva indígena do Xingu.

[3] Cacique da tribo dos caiapós.  Tornou-se famoso ao excursionar pelo mundo com o cantor Sting.

[4] Para escutar a musica dessa tribo, que estava em parte dada como perdida, acessar:     <http://www.estadao.com.br/ultimas/nacional/noticias/2007/jun/01/349.htm?RSS#>  

[5] Aquarela do Brasil – musica composta por Ary Barroso em 1939.