Tratamento da regência verbal nos

 dicionários de português europeu

Eva Trindade

 

  1. Introdução

A área da regência verbal é uma das áreas que mais dúvidas suscita a falantes e aprendentes de português. Para encontrarem resposta às suas questões, a maioria dos consulentes procura instrumentos que consideram conter informação precisa e não ambígua. Esses instrumentos são sobretudo os dicionários (mais ou menos específicos) da língua portuguesa (as gramáticas e prontuários da língua pouco dizem sobre o assunto). Neles, os usuários deveriam encontrar facilmente a informação que procuram para esclarecer uma dúvida linguística. Acontece que os dicionários, mesmo os dicionários ditos de referência do português, são bastante inconsistentes e divergem frequentemente entre eles no tratamento da regência verbal. Este cenário faz com que um falante com dúvidas em relação aos elementos que devem acompanhar um verbo não veja, em muitos casos, a sua dúvida esclarecida e fique ainda mais confuso.

Neste trabalho, proponho-me analisar o modo como os dicionários de português europeu (PE) ─ dicionários de língua e dicionários de regência verbal ─ descrevem as estruturas verbais do português. Analisarei três dicionários gerais língua[1] (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora; Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa; e Dicionário Verbo da Língua Portuguesa, da editora Verbo) e três dicionários de regência verbal: dois de português europeu (Dicionário Sintáctico de Verbos Portugueses, da editora Almedina; e Dicionário dos Verbos Portugueses: Conjugação e Regências, da Porto Editora) e um de português do Brasil (Dicionário Prático de Regência Verbal, da Editora Ática). A opção por incluir a análise de um dicionário de português do Brasil (PB) deve-se ao facto de não existirem mais dicionários de regência verbal de PE que façam uma análise suficientemente abrangente do fenómeno[2] e de este dicionário brasileiro ser frequentemente referido como o melhor dicionário de regência verbal do português. No entanto, esta obra será apenas analisada para se proceder a uma comparação de conteúdos com os dicionários de português europeu. Apesar de ser uma obra de referência, não será cem por cento fiável quando se pretende tirar dúvidas de regência verbal relativas à variedade europeia, uma vez que uma dada regência verbal pode ser diferente, ou mais natural no PB do que no PE. Vejam-se os seguintes exemplos:

PE

PB

Não suspeito de nada.

Não suspeito (de) nada.

Necessito de dinheiro.

Necessito (de) dinheiro.

Não se dignou (a) aparecer.

Não se dignou (de) aparecer.

Alertou-me para isso.

Alertou-me disso.

A selecção brasileira ganhou à Alemanha.

A selecção brasileira ganhou da Alemanha.

O gato subiu à árvore.

O gato subiu na árvore.

Participei na manifestação.

Participar da manifestação.

Chegou hoje a casa.

Chegou hoje em casa.

Ligar ao João.

Ligar para o João.

           

À partida, não se espera encontrar o mesmo tipo de informação num dicionário de língua – geral – e num dicionário de regência verbal – específico. O primeiro tipo destina-se a um público mais vasto que procura informações gerais sobre a língua. Uma vez que o seu principal objectivo é registar o léxico de uma língua, de uma perspectiva mais semântico-pragmática do que sintáctica, poderá relevar para segundo plano informações mais específicas como termos técnicos ou construções-tipo associadas a uma dada palavra. Afinal, é para isso que existem as terminologias e os dicionários específicos (de regência, etc.). O segundo tipo de dicionários destina-se a usuários que procuram informações particulares e pormenorizadas sobre o comportamento dos verbos numa língua. No entanto, como veremos, alguns dicionários de língua propõem uma análise minuciosa das palavras que dê conta do seu comportamento sintáctico, objectivo esse que na prática nem sempre é concretizado. Da mesma forma, alguns dicionários de regência fornecem tão pouca informação que um falante ficaria certamente mais esclarecido se tivesse consultado um dicionário de língua.

Uma descrição adequada do comportamento de um verbo deve contemplar, em primeiro lugar, a sua classificação, ou seja, a especificação do tipo de verbo (se se trata de um verbo transitivo, intransitivo, pronominal, etc.). Esta classificação deve ser feita para cada acepção do verbo, uma vez que o comportamento sintáctico dos verbos varia em função do sentido que tomam (cf. falar de vs. falar com). Tratando-se da acepção de um verbo transitivo, é essencial que se refira se o mesmo é transitivo directo ou indirecto. No caso de se tratar de um verbo transitivo indirecto, com que preposições ocorre o verbo? Só uma? Mais do que uma? Se só uma preposição é admitida, a sua presença é exigida em todos os contextos? Que contextos admitem a sua omissão? Se pode ocorrer com mais do que uma preposição, essa alternância de preposições implica mudança de sentido do verbo? É um verbo pronominal? Se sim, a sua regência é a mesma que a do correspondente não pronominal? (cf. lembrar vs. lembrar-se.)

O esquema que se segue procura ilustrar as informações consideradas pertinentes na descrição da regência das acepções de um verbo[3]:

Levando em conta estes aspectos, analisarei os vários dicionários, atendendo ao modo como se propõem descrever os fenómenos de regência verbal e ao tratamento efectivo que é dado aos verbos nos diferentes dicionários. Esta análise será acompanhada de um contraste entre os dicionários, baseado nas informações gramaticais, estruturas e exemplos apresentados.

 

  1. 2.     Dicionários Gerais de Língua

2.1.   Grande Dicionário da Língua Portuguesa (GDLP)

Nas primeiras páginas deste dicionário, os autores propõem-se tratar exaustivamente cada palavra, fornecendo uma explicação rigorosa do seu sentido. No entanto, não há nenhuma referência ao modo como as informações de natureza gramatical estão tratadas no dicionário.

Nesta obra, os verbos apenas são classificados como transitivos, intransitivos e reflexos[4]. Nenhuma informação adicional é dada relativamente ao comportamento gramatical dos verbos e, mais especificamente, à regência verbal. Se quisermos saber se um verbo é transitivo directo ou indirecto, ou, no caso se ser transitivo indirecto, com que preposições se combina, não obteremos essa informação, nem explicitamente, nem implicitamente, uma vez que este dicionário não fornece abonações que possam apoiar as definições que são dadas.

2.2.   Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (DLPC)

Na introdução do DLPC, são apresentadas as decisões tomadas em relação à classificação gramatical das palavras neste dicionário. No que respeita aos verbos, os autores optaram por apenas indicar a classe (v.), sem indicação da subclasse, não havendo, por conseguinte, referência explícita à sua estrutura argumental (número, tipo e características dos complementos, etc.). A opção por não classificarem explicitamente os complementos deve-se ao facto de considerarem que «a definição das acepções, os exemplos de construção e as abonações são mais ilustrativas do comportamento sintáctico dos verbos, no que respeita à transitividade e a eventuais restrições na aceitação de complementos (e também em relação ao próprio sujeito) do que qualquer classificação genérica». É, assim, necessário partir dos exemplos e abonações apresentados, verificar os elementos com os quais o verbo coocorre para, então, inferir o seu comportamento sintáctico.

 

2.3.   Dicionário Verbo da Língua Portuguesa (DVLP)

Este dicionário propõe-se apresentar «uma visão tanto quanto possível completa de cada unidade, em si, nas relações que estabelece com as outras unidades da língua e com os contextos de uso». No que respeita à informação gramatical relativa aos verbos, estes são classificados sintacticamente como transitivos directos, transitivos directos e indirectos, transitivos indirectos ou intransitivos. Os verbos pronominais são incluídos numa destas classes se o seu comportamento se assemelhar a elas (o verbo agachar(-se), por exemplo, está classificado como verbo intransitivo). Além da classificação dos verbos, são também apresentadas construções exemplificativas simples e claras que ajudam a compreender melhor o comportamento sintáctico dos verbos.

 

  1. 3.     Dicionários de Regência Verbal

3.1.   Dicionário Sintáctico de Verbos Portugueses (DSVP)

O Dicionário Sintáctico de Verbos Portugueses, de Winfried Busse, propõe-se apresentar as propriedades sintácticas dos verbos mais frequentes do português europeu (cerca de 2000). Tendo como principais destinatários os aprendentes alemães de português, trata-se de um instrumento muito útil para qualquer falante (estrangeiro ou não) que tenha dúvidas sobre a(s) estrutura(s) sintáctica(s) em que um dado verbo ocorre em português. Vale a pena referir que este dicionário faz referência a todas as acepções de um verbo e não apenas àquelas em que este se comporta como verbo transitivo indirecto, construções a que se restringem muitas vezes os dicionários de regência verbal.

As entradas lexicais de cada verbo aparecem estruturadas da seguinte forma:

1. Indicação de todos os elementos que coocorrem com o verbo, que nos fornece de forma implícita, além de outras informações, a subclasse gramatical a que o verbo pertence. Assim, um verbo intransitivo será representado pela sequência N − V; um verbo transitivo directo, pela sequência N − V − N; um verbo bitransitivo, pela sequência N – V – N − a N. Quando uma subclasse do complemento é fundamental para a determinação da estrutura em que o verbo ocorre, essa informação é fornecida: se um verbo reger ou não preposição em função de o seu complemento nominal ser humano ou não, é fornecida a informação Np (seres humanos) e Nc (coisas); da mesma forma se distinguem complementos oracionais finitos de complementos oracionais não-finitos (F e I, respectivamente).

Se o complemento de um verbo ou uma preposição forem facultativos, são apresentados entre parênteses.

2. Apresentação de um ou mais exemplos da linguagem contemporânea ilustrativos das estruturas verbais em causa.

 

3.2.   Dicionário dos Verbos Portugueses: Conjugação e Regências (DVP)

Este dicionário, dedicado sobretudo à conjugação dos verbos em português, apresenta no final uma secção sobre regências e particularidades (cerca de 1700 verbos são listados). Estes não são classificados gramaticalmente (como transitivos indirectos ou como bitransitivos, por exemplo) e nenhuma informação é dada quanto ao sentido que esses verbos adquirem consoante se encontrem diante de uma dada preposição ou de outra. No caso de um verbo reger mais do que uma preposição, cada combinação verbo-preposição aparece numa linha independente, seguindo-se a essa combinação um exemplo. Quando se considera que o uso da preposição é opcional, esta aparece entre parênteses (ex.: namorar (com): namorava (com) um rapaz loiro).

 

3.3.   Dicionário Prático de Regência Verbal (DPRV)

O Dicionário Prático de Regência Verbal, de Celso Pedro Luft, é um dicionário muito completo, tido por muitos como um dicionário de regência verbal de referência, senão mesmo como o melhor dicionário de regência verbal do português.

Infelizmente, para nós portugueses, é um dicionário de português do Brasil. Ainda que grande parte da informação nele contida seja aplicável à variedade europeia, existem também muitas diferenças, como vimos.

Esta obra, dedicada à regência verbal da língua culta, em registo formal, sobretudo na escrita, leva em consideração inovações de regência. O autor apresenta as prescrições normativas tradicionais, mas expõe também usos populares, que, não sendo recomendados pelos instrumentos normativos, são cada vez mais recorrentes e, segundo o autor, aceitáveis em muito casos.

Os cerca de mais de 5000 verbos deste dicionário são classificados como transitivos directos, transitivos indirectos, transitivos directos e indirectos, intransitivos, transitivos directos predicativos («Julgo-os aptos»), transitivos indirectos predicativos («Gosto dela alegre») e intransitivos predicativos («Amanheci gripado»). Afasta-se da tradição dos dicionários comuns ao não classificar os verbos como pronominais, mas como verbos transitivos pronominais.

  1. 4.     Construções sob análise

Para analisar o modo como os dicionários escolhidos abordam o fenómeno da regência verbal, seleccionei quatro verbos que suscitam normalmente dúvidas em relação ao tipo de complemento com o qual ocorrem. São eles os verbos namorar, necessitar, esquecer(-se) e perdoar. Foram escolhidos estes verbos por apresentarem problemas distintos de regência.

No que respeita ao complemento do verbo namorar, importa saber se este deverá ser ou não seguido da preposição com, ou seja, será este um verbo transitivo directo ou indirecto? Ou será que ambas as construções são possíveis, sendo o uso da preposição opcional?

O verbo necessitar pode ocorrer com complementos de diferente natureza (nominais, oracionais finitos e oracionais não finitos). Será o seu comportamento igual em todos os casos?

O verbo esquecer(-se) reveste-se de diferentes regências se for usado como pronominal ou como não-pronominal?

E o verbo perdoar, terá ele um comportamento se o seu complemento for [+humano] e outro se o complemento for [- humano]?

Na análise que se segue, procurarei ver se os diferentes dicionários dão conta da especificidade regencial destes verbos e se respondem às dúvidas que suscitam aos falantes da língua.

4.1.   Verbo namorar

As informações encontradas nos diferentes dicionários relativamente ao verbo namorar encontram-se compiladas no seguinte quadro:

Dicionário

Classificação

Preposições

Abonações

GDLP

v. tr.

Prep. com

Prep. (com)

Sem prep.

DLPC

Prep. com

Prep. (com)

O filho namora (com) uma amiga de infância.

Sem prep.

 

DVLP

v. t.d.;

v. t.ind.

Prep. com

Namora com um amigo meu.

Prep. (com)

 

Sem prep.

Namora a filha do patrão.

DSVP

(1) N − V − N

(2) N − V − com N

Prep. com

(2) O João namorou com a Joana dois anos.

Prep. (com)

 

Sem prep.

(1) A Maria namora o João.

DVP

Prep. com

 

Prep. (com)

Namorava (com) um rapaz loiro.

Sem prep.

 

DPRV

TD ou TI

Prep. com

 

Prep. (com)

Namorar alguém. / Namorar com alguém.

Sem prep.

 

Três dicionários registam a opcionalidade da preposição com diante do verbo namorar. No entanto, outros dois, ainda que registem construções com e sem preposição, não deixam claro que essa preposição tem um carácter opcional. No Dicionário Prático de Regência Verbal, as duas construções são apresentadas em paralelo, acrescentando o autor a seguinte observação: «A regência primitiva é de transitivo directo. [...] Puristas, por isso, condenam a regência namorar com, que no entanto é normal considerando-se os traços ‘companhia, encontro’ e ‘conversa’— uso “perfeitamente legítimo, moldado em casar com e noivar com” (Aurélio).»

Não é assim completamente claro, a partir da consulta realizada nos vários dicionários, que a preposição seja opcional, ainda que tudo indique ser esse o caso.

 

4.2.   Verbo necessitar

Nas entradas verbais do verbo necessitar com o sentido de precisar, podemos encontrar as informações que foram reunidas no quadro que se segue:

 

Dicionário

Classificação

Preposições

Abonações

GDLP

v. tr.

Prep. de

Prep. (de)

Sem prep.

DLPC

Prep. de

1, 3

Necessitamos de um favor teu; Necessito de dormir pelo menos oito horas por dia.

Prep. (de)

Sem prep.

2

Necessito que escrevas uma carta rapidamente.

DVLP

v. t. d;

v. t. ind.

Prep. de

1

A juventude necessita de bons exemplos.

Prep. (de)

Sem prep.

2, 3

Necessito que me faças umas compras; Necessitavam descansar.

DSVP

(1) N − V − de N

(2) N − V − F

(3) N − V − de I

(4) N − V − I

Prep. de

1, 3

(1)Necessito da tua ajuda; (1) A Rodésia continuou a receber todo o combustível de que necessita; (3)Necessito de fazer compras.

Prep. (de)

 

Sem prep.

2, 3

(2) Ele necessita que lhe dês lições de inglês. (4) Necessito fazer compras.

DVP

Prep. de

1

Agora necessitas de repouso.

Prep. (de)

 

Sem prep.

2

Necessitava que o levasse ao hospital.

DPRV

TD ou TI

Prep. de

1, 3

Necessito de dinheiro; Necessito de viajar

Prep. (de)

 

Sem prep.

1, 3

Necessito dinheiro; Necessito viajar

(1 – Verbo seguido de complemento nominal; 2 – Verbo seguido de complemento oracional finito;

 3 – Verbo seguido de complemento oracional não finito.)

Da análise dos vários dicionários, pode-se constatar que:

— quando o complemento do verbo necessitar é um SN, todos os dicionários, à excepção do brasileiro (e o da Porto Editora, que não dá qualquer informação), exigem a presença da preposição de;

— quando o complemento do verbo necessitar é uma oração não finita, alguns dicionários optam por construções preposicionadas (DLPC), outros por construções não preposicionadas (DVLP), e outros ainda reconhecem a opcionalidade no uso da preposição (DSVP, DPRV);

— quando o complemento do verbo necessitar é uma oração finita, nenhum dicionário regista uma construção preposicionada.

Uma consulta a estes dicionários parece, assim, não resolver completamente as dúvidas que a regência deste verbo possa levantar. Tenderemos a usar a preposição com complementos nominais, a omiti-la com complementos oracionais finitos e ficaremos na dúvida se o complemento do verbo for uma oração não finita.

Outras obras que abordam questões sensíveis da língua portuguesa como a que aqui se coloca também não ajudam a esclarecer o comportamento deste verbo. Peres e Móia (1995), nas Áreas Críticas da Língua Portuguesa, relativamente ao comportamento dos verbos precisar e necessitar, dizem que estes são predicados que admitem tanto complementos preposicionados com de como complementos não preposicionados, ainda que considerem as formas preposicionadas mais frequentes quando os complementos são nominais ou oracionais infinitivos e as não preposicionadas mais frequentes com complementos oracionais finitos. Registam, assim, a opcionalidade no uso da preposição nos três tipos de construção em causa:

(i)             Este cão está a precisar (de) um bom banho.

(ii)            O Paulo precisa (de) comprar um casaco novo.

(iii)           O Paulo precisa (de) que lhe faças um favor.

 

4.3.   Verbo perdoar

No quadro que se segue, encontra-se reunida a informação presente nos diferentes dicionários relativamente ao verbo perdoar[5].

 

Dicionário

Classificação

Preposições

Abonações

GDLP

v. tr. e intr.

Prep. a

Sem prep.

DLPC

Prep. a

Perdoa todas as ofensas aos filhos.

Sem prep.

Perdoar o atraso.

DVLP

v. t.d e ind.

Prep. a

As mães perdoam sempre aos filhos os seus erros.

Sem prep.

Os medíocres não conseguem perdoar o sucesso alheio

DSVP

(1) Np  − V − Nc

(2) Np − V − a Np

(3) Np − V − Np (por N)

(4) Np − V − Np (por I)

Prep. a

(2) Perdoou ao seu filho

Sem prep.

(1) O padre tem por missão perdoar os pecados.

(3) Perdoo-a pelas suas palavras.

(4) Perdoo-a por me ter chamado nomes.

DVP

Prep. a

Perdoar alguma coisa a alguém.

Perdoemos a quem nos ofendeu.

Sem prep.

Perdoar alguém por alguma coisa; Perdoar alguma coisa a alguém.

DPRV

TDI

Prep. a

Perdoar algo a alguém.

Sem prep.

Perdoar algo a alguém.

A análise dos dicionários permite-nos supor que três construções com o verbo perdoar são possíveis:

            (1) perdoar x [- humano] (a y [+ humano])

            (2) perdoar a x [+ humano] (y [- humano])

            (3) perdoar x [+ humano] por y [- humano]

Estas diferentes construções encontram justificação no traço [+ ou - humano] do primeiro complemento com que ocorrem. Quando esse complemento é [- humano], como em (1), o verbo liga-se directamente a esse complemento; quando o complemento é [+ humano], duas construções são possíveis: uma em que o verbo se liga ao complemento por meio da preposição a, construção (2), e outra em que o verbo se liga directamente ao complemento, exigindo, no entanto, outro complemento (correspondente «àquilo que se perdoa») introduzido pela preposição por, construção (3).

A maioria dos dicionários analisados abona apenas as construções (1) e (2), sendo que nenhuma informação explícita é dada relativamente ao facto de as diferentes regências se deverem ao traço [+ ou - humano] do seu complemento imediato. Exceptuam-se o DSVP e o DPRV. O primeiro regista diferentes regências em função de o seu complemento ser uma pessoa ou uma coisa, dando conta de forma clara das três construções acima apresentadas. O segundo também diferencia as regências em função da propriedade mais ou menos humana do seu complemento. O autor acrescenta ainda que ainda que a construção primária seja aquela que apresenta objecto directo de coisa e indirecto de pessoa, a construção com objecto directo de pessoa (perdoei-o) é possível e aceitável.

4.4.   Verbo esquecer/esquecer-se

As informações categoriais e as diferentes construções em que o verbo esquecer-(se) pode ocorrer recolhidas dos dicionários em análise são apresentadas no quadro que se segue:

Dicionário

Classificação

Preposições

Abonações

GDLP

v. tr.; v. refl.

Prep. de

Sem prep.

DLPC

Prep. de

Esqueceu-se de pôr a carta no correio.

Sem prep.

Esqueceu o telefone do amigo.

Esqueci-me como se põe a funcionar esta câmara.

DVLP

v. t.d., v. t.ind

Prep. de

Esqueci-me de comprar os bilhetes.

Sem prep.

Esqueceste o meu nome?

DSVP

(1) Np − V − N

(2) Np − V − F

(3) Np − V − I

(4) Np − Vse − de N

(5) Np − Vse − (de) F

(6) Np − Vse − de Int

(7) Np − Vse − de I

Prep. de

(4) O João esqueceu-se da reunião; (6) me esqueci de como se joga xadrez; (7) Esqueci-me totalmente de te telefonar.

Prep. (de)

(5) Eu já me esquecera (de) que ele tinha sido campeão nacional.

Sem prep.

(1) Esqueci-o; (2) Não esqueceu que ele tinha prometido levá-la a Lisboa; (3) Esqueci ter dito isso.

DVP

Prep. de

Esqueceu-se da caneta.

Sem prep.

 

DPRV

TD (esquecer)

TDpI[6] (esquecer-se)

Prep. de

Ele já se esqueceu do incidente; Ia esquecendo de fazer uma confidência importante[7].

Prep. (de)

Esqueceu-se (de) que não havia reunião.

Sem prep.

Eleesqueceu o incidente.

Como se sabe, o verbo esquecer tem uma regência diferente do seu equivalente pronominal esquecer-se. Importa saber se os dicionários registam essa alternância de forma explícita. Com o verbo pronominal, há ainda que ter em atenção o problema que tínhamos com o verbo necessitar, ou seja, registarão os dicionários que a preposição de não é obrigatória diante de um complemento de natureza oracional?

Segundo o que os vários dicionários em análise registam:

— o verbo esquecer é sempre transitivo directo. Excepção feita ao dicionário brasileiro que regista a construção «Ia esquecendo de fazer uma confidência importante.».

— o verbo esquecer-se é transitivo indirecto, regendo a preposição de antes de um complemento nominal ou oracional infinitivo. Quando o seu complemento é uma oração finita, os dicionários apresentam informações divergentes: o DSVP considera a preposição obrigatória antes do complementador como e opcional antes do complementador que; o DLPC abona uma construção sem preposição antes do complementador como; o DPRV também regista a opcionalidade da preposição antes do complementador que; e os dicionários GDLP, DVLP e DVP nenhuma informação dão em relação a estas últimas construções.

São, assim, sobretudo, as construções em que o verbo esquecer-se ocorre antes de um complemento oracional finito que mais dúvidas suscitarão aos consulentes, dúvidas essas que não têm uma resposta singular resultante da análise destes dicionários.

  1. 5.     Análise contrastiva

5.1.   Dicionários Gerais de Língua

De uma forma geral, a regência verbal nos dicionários de língua é tratada de modo simplificado e muitas vezes implícito. A informação chega ao usuário por meio da indicação da transitividade ou intransitividade do verbo ou de exemplos a partir dos quais é necessário inferir o uso de preposições de acordo com o contexto em que os verbos ocorrem.

A informação gramatical que o GDLP fornece é sem dúvida muito limitada. Se eu considerar que as seguintes frases estão correctas, este dicionário também não me contradiz:

(1) Necessito um remédio.

(2) Perdoei o meu pai isso.

(3) Esqueci de fazer o trabalho de casa.

O DLPC já fornece mais informação ao consulente. No entanto, essa informação aparece de forma implícita e não explícita, tendo o consulente de partir dos exemplos, muitas vezes extensos e pouco claros, para inferir generalizações que nem sempre darão conta de todos os comportamentos do verbo. Será que pelo facto de as construções necessitar + infinitivo ou perdoar alguém por algo nunca aparecerem nas abonações posso deduzir que estas construções são erradas em português? Não, até porque outras obras registam esses usos.

Dos dicionários de língua do português europeu, o DVLP parece ser aquele que fornece mais informações sobre o comportamento sintáctico dos verbos. Apresenta-nos a sua classificação, as preposições e o tipo de complementos com que ocorre, bem como exemplos simples e claros. Contudo, falha ao não registar construções frequentes e aceites pela maioria dos dicionários em que um verbo pode ocorrer: necessitar + de + oração infinitiva, perdoar x [+humano] por y [-humano]; esquecer + oração, esquecer-se + de + SN, etc.

Tratando-se de diferentes construções, que comportam, como vimos, diferentes regências, a descrição exaustiva dos diferentes contextos sintácticos em que os verbos ocorrem não é de todo redundante, mas sim fundamental para compreender o seu comportamento.

5.2.   Dicionários de Regência Verbal

O Dicionário Sintáctico de Verbos Portugueses é aquele que apresenta mais informação sobre o comportamento dos verbos em PE. Lista exaustivamente as várias construções em que um verbo pode ocorrer, combinando informação relativa aos elementos que com ele coocorrem (informações categoriais ─ nome, preposição, etc., informação relativa aos subtipos de complementos seleccionados ─; de natureza semântica, por exemplo, quando o traço mais ou menos humano do complemento nominal é relevante; de natureza sintáctica, quando interessa saber, por exemplo, se o complemento oracional é mais ou menos finito) com exemplos de linguagem contemporânea ilustrativos das estruturas verbais em causa.

Uma das suas grandes limitações é o facto de não conter verbos pouco frequentes, visto ser um dicionário feito com base no Português Fundamental. Tem também a desvantagem de as acepções serem apresentadas em alemão, o que implica que se tenha de partir dos exemplos para inferir o sentido do verbo numa dada acepção.

Apesar da sua estrutura inovadora, podem ser detectadas pequenas falhas. Na sua introdução, é dito que se uma preposição for facultativa, será apresentada entre parênteses. Ora, é esse o caso representado pelos exemplos «Necessito de fazer compras» e «Necessito fazer compras» e, no entanto, estes aparecem em diferentes acepções seguidos das classificações N – V – de I e N – V – I, respectivamente, quando podia, ao invés, ter sido usada a classificação N – V – (de) I.

Este tipo de problemas pode levar um aprendente de português ou um falante da língua a julgar que se trata de diferentes acepções de um mesmo verbo, quando na verdade o verbo está a ser usado com o mesmo sentido.

O Dicionário de Verbos Portugueses: Conjugação e Regências é sem dúvida muito limitado: os cerca de 1700 verbos tratados não são classificados, as acepções não são fornecidas e os casos apresentados não dão conta, na maioria dos casos, de todos os contextos em que uma dada acepção de um verbo pode ocorrer. O verbo necessitar, por exemplo, rege ou não preposição diante de um complemento oracional finito? E o verbo esquecer, tem ou não um comportamento diferente do seu equivalente pronominal? Estas questões não encontram resposta neste dicionário.

Note-se, ainda, que os autores colocam ao mesmo nível preposições e conjunções, como se pode ver, por exemplo, na entrada do verbo necessitar: necessitar de (Agora necessitas de repouso); necessitar que (Necessitava que o levasse ao hospital). Tal decisão parece-me inadequada porque não estamos perante um elemento que torna o verbo intransitivo; o que está aqui em causa é o tipo de complemento que é oracional e não nominal.

Chegámos, finalmente, à análise do Dicionário Prático de Regência Verbal, um dicionário de português do Brasil, que, como foi referido, é considerado um dos melhores dicionários de regência verbal de português.

É, de facto, um dicionário muito completo, que procura dar conta do comportamento sintáctico de mais de 5000 verbos. As acepções são cuidadosamente classificadas e os exemplos apresentados são simples e claros.

A opcionalidade no uso das preposições é assinalada, como se pode ver no caso do verbo necessitar, que é classificado como transitivo directo ou transitivo indirecto, sendo os exemplos apresentados em paralelo («Necessito dinheiro» / «Necessito de dinheiro») ou no caso do verbo esquecer-se diante de oração finita em que a preposição aparece entre parênteses («Esqueceu-se (de) que não havia reunião»).

De realçar, ainda, as observações introduzidas pelo autor sempre que um determinado uso verbal não é aceite pela variedade-padrão, mas é frequente no discurso dos falantes. Não só são apresentadas essas construções, como se faz uma distinção entre as que são justificáveis e aceitáveis e as que não são.

 

  1. 6.     Conclusão

Da análise efectuada neste trabalho, é possível concluir que os instrumentos disponíveis para o PE com informação relativa ao comportamento dos verbos são escassos. Os dicionários analisados não oferecem um tratamento uniforme dos verbos nem não dão conta de forma adequada das várias estruturas em que um verbo pode ocorrer. Para complexificar ainda mais a situação, constatamos, ao analisar mais do que um dicionário, que as informações neles presentes não coincidem.

Neste trabalho, interessou-me analisar estruturas que levantam normalmente dúvidas sobre o comportamento sintáctico dos verbos que integram, nomeadamente estruturas com os verbos namorar, necessitar, perdoar e esquecer(-se).

Dos dicionários de língua analisados, vimos que o GDLP não fornece nenhuma informação relevante em relação ao comportamento sintáctico dos verbos do português.

Dos outros dois dicionários, o Dicionário Verbo é o que mais informação reúne relativamente ao comportamento dos verbos, apresentando: informação categorial, construções-tipo e exemplos simples e claros que ilustram estas construções. No entanto, como vimos, muitas construções verbais bem formadas em PE não são referidas.

Dos dicionários de regência portugueses, importa referir o trabalho de Busse no seu Dicionário Sintáctico de Verbos Portugueses. Ainda que apenas dê conta dos verbos mais frequentes do português, fá-lo de forma bastante completa, combinando informações várias essenciais para dar conta do modo como os verbos se comportam em português. É um trabalho notável, ainda que, como vimos, apresente falhas, nomeadamente ao não tratar de forma sempre adequada a opcionalidade no uso de preposições em determinadas construções verbais do português.

Conclui-se, assim, que falta para o PE uma obra que descreva exaustivamente o comportamento sintáctico dos verbos, dando conta de forma tanto quanto possível não ambígua das várias construções em que um verbo pode ocorrer, fornecendo informações relativas aos elementos que coocorrem obrigatória ou opcionalmente com o verbo, ou seja, admitindo que nem sempre existem construções categóricas associadas à acepção de um verbo, à semelhança do que procura fazer Luft no seu dicionário.

Um dicionário desta natureza será sempre questionável, por não existir para o português, à excepção da ortografia, um documento legal que regulamente que construções fazem ou não parte do português-padrão. É ainda preciso estar ciente de que é impossível que um dicionário registe todo o léxico de uma língua e dê resposta a todas as questões linguísticas existentes, ao que acresce o facto de a língua portuguesa, tal como qualquer língua natural, estar sempre sujeita a variação e a mudanças. Ainda assim, uma obra que se propusesse atingir os objectivos acima indicados seria de extrema importância e utilidade para compreender de forma mais adequada o comportamento dos verbos em português europeu.

 


  1. 7.     Referências Bibliográficas
  2. I.  Dicionários de Língua

Busse, Winfried (coord.) (1994) Dicionário Sintáctico de Verbos Portugueses. Coimbra: Almedina.

Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (2001). Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa e Editorial Verbo.

Dicionário Verbo da Língua Portuguesa (2006). Editora: Verbo.

Grande Dicionário da Língua Portuguesa (2004). Porto: Porto Editora.

Luft, Celso Pedro (1987) Dicionário Prático de Regência Verbal. São Paulo: Editora Ática.

Peres, João Andrade e Telmo Móia (1995) Áreas Críticas da Língua Portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho.

Silva, Emídio e António Tavares (1988) Dicionário dos Verbos Portugueses: Conjugação e Regências. Porto: Porto Editora.

 



[1] Inicialmente, pensei analisar também o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (versão adaptada à norma portuguesa). No entanto, não sei até que ponto a adaptação à variedade portuguesa foi rigorosamente levada a cabo. Este dicionário regista, por exemplo, uma construção como «veja se vai necessitar mais alguma coisa da capelista», estrutura que não é aceitável em PE. Por esse motivo, não analisei este dicionário.

[2] Existem outros dicionários ou guias de verbos de português europeu. No entanto, ou não falam do comportamento sintáctico dos verbos, mas sobretudo da sua conjugação (1), ou são bastante incompletos (2):

(1)   – Dicionário de Verbos Portugueses Conjugados, da Clássica Editora.

Dicionário dos Verbos Portugueses, da Plátano Editora.

Dicionário de Verbos, de Lello & Irmão Editores.

(2)   – Guia Prático de Verbos com Preposições, da Editora Lidel.

Guia Prático dos Verbos Portugueses, da Editora Lidel.

O Dicionário de Verbos Portugueses, da Porto Editora, apesar de ter informação sobre regência verbal, não foi analisado por apresentar uma estrutura muito semelhante à do Dicionário dos Verbos Portugueses: Conjugação e Regências, já analisado.

[3] Optei por seguir a classificação tradicional dos verbos como transitivos, intransitivos e pronominais, ainda que alguns autores não optem por esta classificação (cf. Luft, 1987)

[4] O termo reflexo é usado como sinónimo de pronominal, visto que nesta classe cabem não só os verbos reflexos mas também os recíprocos.

[5] Os exemplos com pronomes oblíquos de primeira e segunda pessoa (me, te, nos, vos) não foram tidos em conta, uma vez que estas formas não permitem que se distinga a função de objecto directo da função de objecto indirecto.

[6] Verbo transitivo directo pronominal e indirecto.

[7] O autor aponta que esta construção é rejeitada pelos gramáticos, mas muito frequente no discurso diário dos falantes.