Apologia
CAPÍTULO XIV - "QUE OS POETAS E FILÓSOFOS TAMBÉM ESCARNECEM E FAZEM CHACOTA DE SEUS DEUSES..."

Mas se chego a examinar os livros com que se instruem os homens nobres sobre a prudência e sobre o exercício dos ofícios e cargos ingênuos, quantas fraquezas e desprezo encontro neles em relação aos vossos deuses. Que coisas ridículas nos escreve Homero sobre estas divindades! Este diz como com a graça dos deuses os gregos e troianos guerrearam entre si como se fosse um bando de gladiadores. Mostram como Diomedes por roubar a Enéas que agonizava quase morto feriu a deusa Vênus com uma flecha humana, que como sendo este seu filho o amparava. Escreve sobre os treze meses da prisão de Marte, a fuga de Júpiter que para não padecer nas mãos de outros deuses e para não passar pela mesma calamidade foi salvo por um monstro e que as lágrimas que este derramou pela morte de Sarpedón, o amor que teve a Juno e a lamentação que fez pelas antigas amantes por gozar mais lentamente de sua irmã.

Com o exemplo do mestre, os discípulos também desprezaram os deuses, pois que poeta não imita o exemplo de seu mestre? Um conduz ao deus Apolo como pastor das ovelhas do rei Admeto. Outro aluga o trabalho do deus Netuno para servir ao rei Laomedonte na construção de Tróia. Píndaro, um poeta lírico canta que Júpiter matou com um raio a Esculápio, que por ganância e por dinheiro abusava perniciosamente da medicina. Oh. Júpiter, como és mal, lançastes um raio desnaturado contra seu neto, demonstrando um sentimento de inveja contra o autor da saúde! Se estas indecências de vossos deuses são verdadeiras deverias ocultá-las; se falsas não deveriam ser levadas ao povo que são verdadeiramente religiosos. Tampouco os poetas trágicos e cômicos perdoam aos deuses. Estes começam seus livros com enganos fabulosos e acabam cantando as desventuras dos deuses.

Dos filósofos não falo, basta somente citar Sócrates, considerado o homem mais sábio de todos. Este quando afirmava alguma coisa jurava “pela vida do bode, do carvalho e do cachorro”, mostrando com desprezo o que sentia por aquelas divindades de sua época. Mas o mesmo que condenava aos deuses foi condenado, pois a verdade tem sido sempre uma fonte de ódio. Contudo isso os atenienses, quando sentiram remorsos pela sentença condenaram os acusadores e puseram uma estátua de Sócrates feita de ouro no templo. A anulação da acusação foi declarada e a sua inocência comprovada. Também Diógenes zombou de Hércules com uma bela chacota e o cínico romano Varro fez proceder trezentas estátuas de Júpiter as quais chamou de sem cabeças.


CAPÍTULO XLVI – QUE A LEI CRISTÃ NÃO É A NOVA ESCOLA DE FILOSOFIA E QUE OS FILÓSOFOS NÃO ENSINAM A VERDADE INTEIRA, MAS SOMENTE A IMITAM

Constantemente aqui está presente segundo creio, os crimes que se opunham os desígnios dos que pedem o sangue dos cristãos. Aqui se mostrou todo o estado de nossa religião e os caminhos por onde se provam serem verdadeiros, que são a fé e a tradição antiga das Escrituras e a confissão dos mesmos deuses e demônios. Quem se atreverá, pois agora a redigir-me ou replicar-me (utilizando-se do retórico artifício de palavras) na mesma forma de razão com que eu eis disputado em defesa da verdade? Mas enquanto a pureza de nossa religião vai se manifestando a cada um e a incredulidade obstinada se rende a bondade conhecida, que pela experiência e com o acordo encontram, já que é proveitosa, concedem alguns que é a nossa religião é boa, mas não admitem que seja lei divina e sim, somente mais uma nova escola filosófica. A mesma inocência dizem, professam e ensinam os filósofos, a mesma justiça, a mesma paciência, temperança e honestidade.

Pois se entendeis que somos iguais aos filósofos. Por que não nos permite ensinar da mesma forma que eles? Ou por que se eles são semelhantes a nós, não os forçais as ações que se não fizermos, seremos ameaças ambulantes? Aquela justiça é iníqua, pois apesar de sermos iguais ordenais e nos tratais com diferença. Quem jamais forçou os filósofos a se sacrificarem? A jurar pelos deuses dos imperadores? A acenderem as “vãs tochas ao meio-dia?” Antes bem, em seus comentários destroem aos deuses; acusam a superstição das seitas e vós os aplaudis e os mais ladram contra os imperadores e sem castigo se toleram. Em lugar de castigá-los defendem tão favoravelmente estes desprezos que julgais que estes merecem, não feras como nós, mas estatuas e recompensas. Mas com razão que se chamam filósofos e não cristãos. Não é menos proveitoso, pois, para vós o nome cristão que o nome de filósofo, pois o nome de filósofo não faz fugir os demônios. Como seria isto? Como fugiriam os demônios dos filósofos se eles mesmos os invocam como os seus deuses? Sempre que Sócrates prometia alguma coisa colocava esta prerrogativa: SE ME DÁ PERMISSÃO MEU DEMÔNIO. Este filósofo quando conheceu a verdade negou os deuses e quando morreu fez sacrificar a Esculápio. Creio que fez esta honra a Esculápio em lisonja de seu pai Apolo, que testemunhou sobre Sócrates, dizendo ser este o homem mais sábio de todos. Oh, inconstância de filósofo! Nega os deuses e sacrifica a Esculápio! Oh, indiscrição de Apolo! Testemunha em abono da sabedoria daquele que os negava!

Quanto mais abrasadamente esteja à verdade perseguida do ódio, tanto ofende o que a disse mais clara, mas o que a viu com fingimento e a adultera com enfeitados disfarces, encontra aplausos, ganha agrados entre os inimigos da verdade, entre aqueles que também se escarnecem ou a violam. Os filósofos simulam a verdade, imitam-na comicamente; com a dissimulação a corrompem como quem busca a honra no gosto pela arte. Os cristãos a desejam com a necessidade, a ensinam com a informação, não procuram nela brilho, mas saúde. Não se parecem como pensais, os filósofos e os cristãos nem o conhecimento da verdade nem na doutrina ensinada. Tales, príncipe dos filósofos, que supôs conhecer Deus ao qual perguntando que coisa era Deus, pedindo a essa coisa espaços para decidir, então acertou mais quando não supôs dizer nada? Enquanto a questão de onde Deus está, o encontra e mostra qualquer oficial cristão e todo o que a ele perguntar de Deus este o responderá de um modo bem assinalado. Ainda que Platão tenha dito que não é fácil achar o Criador do Universo e que sua origem é difícil definir.

Na filosofia moral vereis como pouco se parecem os filósofos e os cristãos. Porque se falo da pureza acho parte de uma sentença dos atenienses contra Sócrates por violentar os rapazes: o cristão não muda o sexo feminino. Também acho a Friné, amante de Diógenes, que como porca ardia no regaço do covarde filósofo. Vejo também a certo Pseussippo, platônico, morto no flagrante de um adultério, o cristão somente nasceu homem para uma única mulher. Demócrito tirou os olhos porque não podia olhar sem concupiscência as mulheres e por ventura teve desgosto por delas não ter gozado. Com o rigor da correção confessou o excesso da continência. O cristão sem olhar vê as mulheres; para tropeçar tens cega à consideração. Defendendo a bondade, está Diógenes, que arrogantemente pisou com os pés lodosos os soberbos leitos de Platão: pisou uma soberba com outra: o cristão nem contra um pobre miserável é vaidoso e maior. Usando da modéstia, está Pitágoras, que tentou oprimir os Túrios e Zenão aos prienenses: o cristão, nem também deseja o ofício de almotacé. Querendo conferir da equanimidade, vem-me a idéia de Licurgo, que se deixou morrer de fome confiante de que o livrassem de suas leis os macedônios: o cristão, ao mesmo que o condena dar a este suas graças. Fazendo-se um cortejo de fidelidade, Anaxágoras entregou ao inimigo o depósito: e ao cristão, os mesmos gentis chamam por antonomásia o fiel. Examinando lentamente a simplicidade notável do coração, está Aristóteles, que tentou matar a Hermias seu amigo, acabando com a sua amizade: o cristão não sabe ofender a seus próprios inimigos. O mesmo Aristóteles, tão rudemente lisonjeia a Alexandre, a quem deveria dirigir, como Platão vendeu a liberdade a Dionísio pelo presente, a quem obrigatoriamente não deveria ganhar. Aristippo, sob tão grande gravidade e púrpura superfície, bebia como um beberrão e comia como um comilão. Hípias foi morto por traição tentando entregar a cidade. Tal coisa, jamais o cristão intentou em defesa dos seus, vendo-os despedaçar desumanamente a cada dia. Por estes exercícios podeis conjeturar a semelhança.
Mas dirá alguém: a filosofia não poderá ser desonrada, somente porque alguns a degeneram, pois também entre os cristãos há muitos que se desviam de sua lei. É verdade! Mas o filósofo não perde nem o nome nem a honra de sábio com esses feitos. Aristóteles, mesmo corrompendo o povo, não perdeu a honra de príncipe dos filósofos, mas o mais excelente cristão, afastando-se da virtude ou da fé, perde entre nós o nome e a honra. Que semelhança tem o filósofo e o cristão? O discípulo da Grécia e o do céu? O que busca somente a fama e o que busca a vida eterna? O que trabalha nas sentenças e o que trabalha nas ações? O que destrói a inocência da vida e o que a edificam? O amigo do erro e o inimigo da mentira? O que diminui a verdade, enfeitando-a, e o que a conserva inteira? O que a rouba para violá-la e o que a defende pura?

 

CAPÍTULO XLVII – QUE TODOS OS FILÓSOFOS BEBERAM ALGO DA FONTE DA SAGRADA ESCRITURA

 

A isto replicareis: o filósofo pode roubar a verdade dos cristãos? Por ventura o cristão é mais antigo que todos os filósofos? Se não me engano, a verdade que o cristão ensina precede a todas. Para isto aproveita agora a maior antiguidade da Sagrada Escritura que deixou averiguada, para que facilmente se creia que a mais antiga sabedoria é o tesouro da prosperidade. E se não fora já amornar a mensagem deste livro, também largará a pluma em prova deste assunto.

Quem dos poetas, quem dos sofistas deixou de beber algo da fonte pura dos profetas? Daqui regaram, pois, os filósofos o sedento campo dos ingênuos. Dessa forma, porque nós devemos nos comparar a eles? Como se não tivessem sido eles que nos imitaram! Que por isso creio que a cidade de Tebas, de Esparta e Argos desenterrou a filosofia que professava um só Deus, porque presumiram que daquela doutrina se originava nossos livros. Mas como os filósofos são como dizemos homens amigos da vã glória ou da vã sabedoria, se na Escritura achavam verdades claras as desfiguravam com a curiosidade da eloqüência para ser tidos como autores do que não era seu, e como não criam que eram Escritos Divinos, lançavam-se sem temor a reduzi-la e como não entendiam a profundidade de seus ministérios (que então estavam ainda a sombra de figuras tão obscuras, que nem mesmo os judeus entendiam), as desvirtuavam. Por isto se viam alguma verdade humana, simplesmente dita escrupulosamente que depreciava a autoridade divina, com mais agilidade a trocava em seu bel prazer ou conhecimento tido como racional e por este caminho mesclaram o certo com o duvidoso.

Os filósofos encontraram em nossa Escritura “que Deus era um”, mas como, da maneira que o haviam encontrado não se contentaram com ele, começaram a altercar sobre sua natureza, sobre seus atributos e sobre as suas leis. Os platônicos dizem que é espiritual; os estóicos, que é corpóreo; Epicuro, que é composto de átomos; Pitágoras, de números; Heráclito, de fogo. Os platônicos o põem ocupado com o cuidado com as criaturas. Os epicuristas, tão ocioso, tão sem ocupação, como se disséssemos que não existe. Os estóicos o põem fora do mundo revolvendo a máquina deste globo desde os céus da mesma forma que o oleiro faz com a roda. Os platônicos, dentro do céu, colocando-o presente da mesma forma como está presente o governador que reina dentro de seu reino. Assim variam também na disputa do mundo. Uns dizem que é criado, outros que nunca nasceu; uns dizem que é corruptível e outros sentem que tem eterna duração. Assim mesmo na disputa do estado da alam há encontro de opiniões. Uns dizem que é divina e eterna: outros que mortal e dissolúvel.

Eu não admiro que as Sagradas Escrituras depois de tantos séculos tenham pervertido os filósofos a ponto de adulterarem com tanta brevidade o Evangelho. Desta semente nasceram os que a este principiante edifício o profanaram, reduzindo a verdade às opiniões filosóficas e partindo o caminho real em muitas trilhas inexplicáveis e tortas. Assinalado esta advertência para que o que conhece a variedade que há dentro de nossa mesma religião não nos iguale, ainda nisto, na variedade das seitas dos filósofos, e para que nos julgue suspeitosamente pela variedade das defesas da certeza da verdade. Já nosso ensino, desfazendo-se do que foi prescrito contra os hereges que “aquela é a lei e regra da verdade, que veio de Cristo”, que chegou a nós pelas mãos dos seus apóstolos, com os quais andam encontrados estes últimos comentadores como provarei em tratados especiais. Da verdade saiu todo o aparato e munição que guerreia com a verdade, traçando nesta emulação os espíritos malignos, pais do erro e da mentira. Deste espírito saiu o veneno que corrompeu o ensino saudável: deste procederam as fábulas que se mesclaram com a pureza da nossa doutrina, para que com a semelhança que têm com as coisas da nossa fé possam enfraquecê-la ou a extinguirem. Porque se se presume que os cristãos não sejam levados a sério, porque os filósofos ensinam doutrinas semelhantes não são acreditados, este pretexto enfraquece nosso crédito e se pensa que os filósofos são acreditados, porque os cristãos não são acreditados, esta presunção os aniquila.

Isto, pois, tem persuadido o demônio aos pagãos que não acreditassem no que fosse dito pelos cristãos. Por isso se dizemos "que Deus julgará todos os seres humanos", riem de nós, e se os poetas e filósofos levantam no inferno um tribunal o crêem, porque os que não são cristãos o dizem. Se ameaçarmos com o inferno, que é um fogo subterrâneo, fruto de castigo e de dor, dão gargalhadas estrondosas; e se os poetas põem um lugar qualquer para castigar os maus, o crêem como algo sagrado e verdadeiro. Se nomearmos o paraíso (lugar de divina amenidade, destinado para a habitação eterna das almas santas, que a distingue do anúncio deste corpo celestial a uma resplendente zona protegida pela espada do anjo) não o crêem porque todo o crédito tem ocupado a fé dos campos Elíseos que descrevem os poetas. De onde tiraram (eu os rogo) os filósofos e poetas coisas semelhantes às nossas? E porque sendo tão semelhantes hão de ser as vossas tidas como verdadeiras? Por ventura, por ter sido as primeiras? Já constam pela antiguidade que nossos sacramentos foram os primeiros a serem copiados pelos filósofos. Logo, se os nossos são os primeiros, são mais verdadeiros; pois o original é mais fiel do que a cópia. E também são mais acreditáveis, pois mais confiança merece a verdade do que aquilo que esta simboliza. Se disserdes que vossa inteligência inventou estas doutrinas do nada e que nós a imitamos, isto será dizer que nossos mistérios são modelos defasados das instâncias que não sofrem a ordem das coisas, que nunca precede a sombra ao corpo, nem a imagem ao original.

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CAPÍTULO XLIX: QUE OS PAGÃOS CHAMAM PRESUNÇÕES NOS CRISTÃOS O QUE NOS FILÓSOFOS E POETAS CHAMAM SUMA SABEDORIA

 

Estas doutrinas que nos cristãos chamais de presunções e nos filósofos e poetas de célebres pensadores como uma suma sabedoria. Aqueles são tidos por prudentes, nós por loucos; aqueles merecem honra, nós falsas promessas e ainda castigos. Por ventura é falso o que dizemos? É presunção? É desnecessário? É loucura? É proveitoso, pois obrigam a melhorar os que o crêem, utilizando-se do temor do castigo e da esperança do eterno alívio. Dizer que estas doutrinas são falsas, ter-las por loucuras para nada é proveitoso; presumir que são verdadeiras pode importar para muitos; logo não pode com bons olhos condenar ao que em nada danifica e é absolutamente saudável. O mesmo juízo que condena esta utilidade é presunção: sendo assim não se pode perceber, nem mesmo em loucura que uma coisa que provoque um benefício seja condenada pela presunção. Se essas doutrinas fossem falsas e ridículas, mesmo assim, a ninguém seriam danosas, pois com as vãs, fabulosas e doutrinas que vós dizeis serem semelhantes as nossas, vós mesmos tolerais com todas as suas impunidades e sem acusações ou castigos. Mas haja nesta doutrina simplicidade, haja erro ou como dizeis uma proveitosa bobagem, com uma zombaria se condenam, não com espadas, não com fogo, não com cruzes e feras.
Deste sangrento extermínio não somente o povo que salta de prazer e impetuosamente nos invade buliçosos, mas também alguns de vós que querem com a maldade granjear o aplauso de vulgo cego. Não os desvanecem, pois, as forças que tendes contra nós e que vosso poder se origina de nosso livre arbítrio. Certamente que se eu quiser me condenarás e caso eu não queira não podeis o fazer. Se disser sou cristão, morro; se disser não sou, escapo e não há ninguém que possa me condenar. Logo, tu nada podes se eu não quiser, e tudo poderás caso eu queira. Pelo qual também, insignificantemente, o povo se gloria e se alegra com nossos vexames porque padecemos as penas da morte que a nós nos deleitam e nós o que mais desejamos e queremos é cair na ira de sua condenação do que na ira de Deus, pois o que almejamos é a graça eterna. Antes aqueles que nos aborrecem deveriam não gloriassem de si e do que estão fazendo, mas sim entristecerem-se muito, vendo que nos tormentos prosperamente alcançamos o que escolhemos e o que queremos.


4. De praescriptione haereticorum


A condenação da Filosofia

Eis as doutrinas de homens e demônios, nascidas do engenho da sabedoria mundana para encantar os ouvidos. Esta é a sabedoria que o Senhor chama de estultície, aquele mesmo Senhor, que para confundir também a mesma filosofia, escolheu o que passa por estulto aos olhos do mundo. Esta é a sabedoria profana que temerariamente pretende sondar a natureza e os decretos de Deus. E as próprias heresias vão pedir seus petrechos à filosofia.

Dela se originam os tais éons e nãos ei que inúmeras outras formas, tal como a divisão tripartida do homem em Valentim que, por sinal, foi um discípulo de Platão. Dela provém o “deus melhor” de Marcião, melhor, entenda-se, graças à sua traquilidade; pois Marcião viera dos estóicos. E se há os que afirmam que a alma é mortal, é porque o aprenderam dos epicureus; se há os que negam a ressurreição do corpo, é porque o tomaram de todas as escolas filosóficas reunidas; se a matéria é equiparada a Deus, é porque tal é a doutrina de Zenão; e, quando se fala de um, Deus de fogo, isto de deve a Heráclito. Hereges e filósofos soem tratar dos mesmos assuntos: nuns e noutros deparamos os mesmos temas enredados: Qual a origem e o porquê do mal? Qual a origem e a natureza do homem? E, para citar uma questão recentemente proposta por Valentim: Qual a origem de Deus? E a resposta? Da “entímese” e do “éctroma” (isto é, do desejo e do aprto prematuro)!

Ó infortunado Aristóteles, tu lhes ensianste a dialética. Esta arte de construir e destruir, taõ ardilosa em suas sentenças, tão afetada em suas supostas conclusões, tão teimosa em seus argumentos, tão atarefada com logomaquias, a ponto de, enfadada consigo própria, tudo revogar, para terminar se, haver tratado de nada!
Eis aqui a origem daquelas fábulas e genealogias intermináveis, daquelas questões estéreis, daqueles discursos que se propagam como um cancro; é contra eles que nos alerta o Apóstolo, designando expressamente a filosofia como algo de que é preciso acautelar-se, ao escrever aos Colossenses: “Estai alerta, para que ninguém vos colha no laço da filosofia e de vãos sofismas, baseados em tradições humanas” e contrários à providência do Espírito Santo. É que ele estivera em Atenas, e nos congressos ali realizados viera a conhecer a sabedoria humana, esta arremedadora e adulteradora da verdade; aliás, ela mesma se encontra fracionada em numerosas heresias, em virtude da grande multiplicidade de escolas que mutuamente se digladiam.

Que tem a ver Atenas com Jerusalém? Os a Academia com a Igreja? Os os hereges com os cristãos? A nossa doutrina vem do pórtico de Salomão, que nos ensina a buscar o Senhor na simplicidade do coração. Que inventem, pois, se o quiserem, um cristianismo de tipo estóico, platônico e dialético! Quanto a nós, não temos necessidade de indagações depois da vinda de Cristo Jesus, nem de pesquisas depois do Evangelho. Nós possuímos a fé e nada mais desejamos crer. Pois começamos por crer que para além da fé nada existe que devamos crer.


BIBLIOGRAFIA
BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã: Desde as origens até Nicolau de Cusa. Tradução de Raimundo Vier. Rio de Janeiro: Vozes, 1985. 3ª ed.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Montanismo Acesso em 08/11/2006

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Antiguidade e Idade Média. São Paulo: Paulus, 1990. Vol 1. 6ª ed.

ROJAS, Oscar. Minidicionário: espanhol/português – português/espanhol. São Paulo: DCL, 2004.

TERTULIANO. Apologia.

http://www.tertullian.org/articles/manero/manero2_apologeticum.htm