TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL NOS MOLDES CONTEMPORÂNEOS

RITA DE CÁSSIA DOS S. SILVA*

RESUMO:
Durante quase trezentos anos no Brasil era "lei" o homem de cor negra ser submetido integralmente ao homem de cor branca sem que este com nada viessem a lhe retribuir. Depois de muito sofrimento passado por aqueles com um grau de melanina bem acentuada em suas peles. Uma carta é assinada. É chegada a liberdade. Mas o tempo passou, e essa estrutura de trabalho continua existindo de forma análoga ao que existiu no passado. É esta forma de servidão, conhecida como trabalho escravo que pretendo analisar neste artigo. Relatando como está moldada a nova versão de trabalho escravo existente nos dias atuais no cenário brasileiro.

PALAVRAS ? CHAVE:
Análogo, contemporâneo, escravo, trabalho

Ao Logo de toda a história foram diversas as formas em que se sustentou a estrutura relacionada ao trabalho escravo. Os castigos corporais eram comuns e permitidos numa época de extrema submissão. No Brasil para garantir um acúmulo de riquezas abundantes, o latifúndio monocultor exigia uma mão- de- obra gratuita e permanente. Sendo, a princípio, estes homens de pele escura as vítimas dessa forma de exploração servil que privava- os do bem considerado vital para a dignidade humana que vem a ser a liberdade. O interesse econômico vem ser o pano de fundo deste cenário histórico marcado por sofrimento. Contudo, possuir escravo constitui- se num grande negócio que não deixou de existir apesar de uma lei ter sido sancionada. A história a partir deste episódio libertador continuou a tecer sua trama rendilhando novos traços, porém, bastante semelhantes com os aspectos vividos outrora.
O trabalho escravo não acabou de fato. Ainda encontramos em diversas partes do território brasileiro, mais exaustivamente, no Estado do Pará, onde os indivíduos são convencidos de que iram encontrar uma melhoria financeira, pessoas submetidas às formas análogas ao trabalho escravo. Trabalham de forma clandestina, em lugares inóspitos, em péssimas condições de trabalho, recebendo baixos salários, (quando recebem!) e nenhum tipo de direito trabalhista.
Para o artigo 149 do código penal brasileiro, o crime de escravidão se estabelece como "reduzir alguém a condição análoga à de escravo, que o submetendo a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto." Então, com aquilo que define no código penal o que vem a ser o trabalho escravo em nosso tempo atual, desse modo, conceitualizando, podemos observar que hoje o trabalhador não é mais vítima do tráfico ou da comercialização lucrativa como em tempos colônias, no entanto, a privação da liberdade consiste na prática principal da contemporaneidade.
Além de estar escrito no código penal 149 que o trabalho escravo é um crime, que garante ao sujeito explorador uma pena de dois a oito anos de reclusão, e multa, além da pena correspondente à violência. Está também na constituição que "ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante". Logo, implica dizer que o trabalho análogo ao de escravo não fere somente as suas vítimas, mas contribui para violar também a constituição brasileira. No entanto, todo esse parecer constituinte mesmo tendo sua existência desde o século passado, não é acatado principalmente nas áreas rurais, apesar de que na maioria das vezes são explorados por proprietários bem instruídos e com excelente assessoria contábil e jurídica para suas propriedades.
A soma do trabalho degradante com a privação da liberdade compõe o aspecto das formas de trabalho escravo no Brasil. A retenção de salários, a violência física e moral, além de fraudes, aliciamento, e o mais notável: a suposta acumulação de dívidas. As longas jornadas de trabalho, inibição da liberdade de exercer o seu direito de ir e vir, tudo isto e outros mais componentes estão associados ao trabalho escravo contemporâneo. Diante de toda essa supressão aos direitos humanos, é interessante apontar que a forma histórica de ocupação e de exploração do território brasileiro pode ser as principais causas do trabalho escravo contemporâneo. A falta de assistência política é relevante, como também a reforma agrária poderia ser um dos métodos eficazes para o combate dessa forma arcaica e injusta que compreendemos ser análoga ao regime escravo no período colonial aqui no solo brasileiro.
A região que compreende o maior índice de aliciamento é o nordeste, sendo os Estados: Maranhão, Piauí, Bahia, e Alagoas os centros que mais empregam a mão-de-obra barata e fácil de explorar de acordo com suas necessidades pertinentes. Entretanto, no cenário nacional o destino principal desses trabalhadores que irão viver uma história semelhante à de seus predecessores é para um estado localizado no norte do Brasil. Este Estado vem a ser o Pará, campeão no tocante ao aliciamento de pessoas para serem submetidos a regras que em nada atendem à legislação trabalhista. É em especial no Pará que aos poucos o trabalhador vai percebendo que a proposta de uma vida melhor e mais digna estava se tornando uma ilusão. Era o sonho de uma liberdade integral contra uma forma de exploração já sonhada.
O trabalho escravo consiste numa armadilha bem planejada. O aliciamento para algumas para algumas propriedades requer o trabalho de um "gato" este é a figura central do trabalho escravo no meio rural, mias propriamente. É ele quem promete as melhores garantias, quando na verdade tudo se transformará em dívida para quem está sujeito a aceitar o contrato. Quando chegam ao local de destino e se deparam com uma realidade ao avesso do que foi prometido, a "jaula" já está trancada e até a liberdade será uma das formas de liquidar uma dívida jamais contraída por aquele apontado como devedor.
A legislação brasileira estabelece que o empresário seja o responsável legal por todas as relações trabalhistas se seu negócio. A constituição federal de 1988 exige destes o cumprimento de sua função social de fato e de direito. Mas a realidade recebe esta atuação de forma bastante insuficiente. É o que podemos sentir no pequeno fragmento extraído da carta final do III Congresso Nacional da CPT
Ouvimos a denúncia veemente de um Estado que, com uma mão dá a sua ajuda para mitigar a fome e a miséria imediatas, ou até para libertar modernos escravos, e que com a outra estimula, promove e financia este modelo perverso de crescimento que prejudica a sustentabilidade da sociedade e da própria vida.
[...]
Veemente, também, foram as denúncias contra um legislativo inoperante e submetido aos interesses da bancada ruralista que quer mudar o código florestal para favorecer a expansão dos monocultivos, e que engaveta a proposta de emenda constitucional (PEC) que propõe o confisco de áreas com trabalho escravo, e a PEC que reconhece o cerrado e a caatinga como patrimônio nacional.
Este comentário escrito por um dos participantes do III Congresso Nacional da CPT revela a falta de atuação dos órgãos competentes para ir de encontro com as diversas formas de violação a integridade humana, numa crítica direta ao Estado satirizando uma estrutura política, afirmando as duas faces da instituição que camufla a realidade dos "miseráveis" para beneficiar de fato aqueles que podem lhes garantir algum retorno político ou econômico.
No entanto, apesar de todo o descaso para com o combate eficaz do trabalho escravo contemporâneo no Brasil do século XXI, existem vários movimentos que paralelo a hierarquia política lutam para atender os "gritos dos excluídos". Como exemplo tem a Comissão Pastoral da terra (CPT), articulador do III Congresso Nacional que discutia as relações trabalho, território, política. Existe uma campanha promovida pela Secretária de Direitos Humanos da Presidência da República, pela Comissão Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Esta campanha que foi realizada em Brasília entre os dias 25 e 27 de maio de 2010 objetiva a aprovação imediata do PEC 438 que prevê o confisco das terras que forem flagradas com mão de obra escrava.
É bonito ver que pelo menos teoricamente existe uma árdua preocupação em combater esta grave violação dos direitos humanos. Resta a incógnita da aprovação. Ou melhor, resta muito mais que isso. Precisa que os mesmos que comungam dos objetivos deste PEC 438 caminham para descobrir e erradicar os mais variados focos onde se podem encontrar formas análogas ao trabalho escravo. Segundo o presidente da CUT, Arthur Henrique "O Brasil precisa abrir concursos públicos para contratar mais auditores fiscais. Precisamos também deixar claro que o latifúndio é o responsável por essa vergonha, esse crime, e apoiar medidas como a aprovação da PEC do trabalho". Louvável seria tal aprovação. Porém Arthur poderia voltar sua reflexão não somente para a abertura de concursos públicos, pois, um índice acentuado de auditores fiscais não indica sinônimo de eficácia no combate as formas degradantes de trabalho escravo, para acabar com essa "vergonha", não queremos apenas números, mas no pouco que já existe, o máximo de qualidade.
A partir de tudo que aqui tem escrito, nos faz pensar que quando falamos em trabalho escravo no Brasil estamos com essas características presentes apenas no meio rural. Mas, infelizmente não está apenas lá. As molduras renovadas de trabalho degradante também podem ser visualizadas nos grandes centros urbanos. Os atrativos que a mídia expõe para apresentar o cenário urbano é bastante exagerado. Mas, o seu objetivo é alcançado. Fomentado um percentual elevado de migrantes para estes centros. Então o individuo que geralmente não dispõe da instrução necessária para pleitear um trabalho mais digno, torna-se assim "presa fácil" para adentrar num ambiente perverso, que tentará lhe mostrar que este é o seu lugar. A miséria e a falta de oportunidades de emprego é uma dos motivos que contribuem para este estado de submissão. Podemos afirmar que não é só nas grandes empresas de minas de carvão, usinas de cana-de-açúcar que acontecem o trabalho escravo, nos centros urbanos também milhares de pessoas são vítimas de abuso. O trabalho de doméstica, por exemplo, muitas vezes extrapolando a carga-horária recomendada, sem nenhum direito trabalhista, às vezes vítimas de humilhação. Mas, só porque está dentro de uma casa de família não é considerado trabalho escravo. Como não pode ser considerado trabalho escravo se o próprio código penal 149 deixa claro que é crime submeter alguém a jornada, ou forçá-lo a fazer o trabalho que lhe convém. A forte imigração estrangeira também ocupa as vagas que lhes oferece péssimas condições de trabalho.
A nova escravidão é mais vantajosa para os empresários que a da época do Brasil colonial, observando os pontos de vista operacionais e financeiros.
Em "Gente Descartável. A Nova Escravatura na Economia Mundial" de Kevin Bales, considerado um dos maiores especialistas no tema, traça em seu livro a diferença entre as trágicas imagens que nos foram legadas pelo passado e a talvez ainda mais trágica realidade atual:
Na nova escravidão, a raça tem pouco significado. No passado, as diferenças étnicas e raciais eram usadas para explicar e desculpar a escravatura aceitável, ou até uma boa coisa para os escravos. A diferença dos escravos tornava mais fácil usar a violência e a crueldade necessárias para o controlo total. Essa diferença podia ser definida quase de um modo qualquer ? diferente religião, tribo, cor de pele, língua, costumes ou classe econômica (...). Hoje, a moralidade do dinheiro supera todas as outras considerações. A maioria dos escravocratas não sente a necessidade de explicar ou defender o método de recrutamento ou de gestão do trabalho que escolheram. A escravatura é um negócio muito lucrativo, e um bom lucro é justificação bastante.

Os lucros que se pode obter garantindo um trabalhador manipulado são incalculáveis. Os "escravos" constituem uma vasta força de trabalho que suporta a economia de que nós brasileiros dependemos.
É uma realidade muitas vezes escondida, e parece estar longe de acabar. Como salienta Bales: "A nova escravatura é como uma nova doença para qual não existe vacina. E esta doença está a espalhar-se." É um círculo vicioso. Por mais que agências governamentais estejam espalhadas pelo território brasileiro na tentativa de reprimir esta prática criminosa, libertam alguns grupos que acreditam numa melhor perspectiva de vida que lhes oferecem fazendo com que este círculo sempre volte ao fato inicial.
Mas, como se identifica aqueles que a vida lhe negou um berço de ouro, e talvez por isso tenham que arriscar suas vidas em percursos migratórios capazes de lhes causar a vergonha que pensávamos que pessoa alguma pudesse ser submetida em pleno século XXI? O perfil dos trabalhadores na maioria dos casos, como homens jovens, solteiros, de baixa qualificação profissional e analfabeta. Segundo AUDI:
Estes humildes brasileiros, recrutados em municípios muito carentes, de baixíssimo IDH, são oriundos principalmente dos estados do Maranhão, Piauí, Tocantins e Pará. Caracterizam-se por serem pessoas iletradas, analfabetas ou com pouquíssimos anos de estudos.
Sakamoto descreve que:
A soma da pobreza generalizada ? proporcionando mão-de-obra farta ? coma impunidade do crime criam condições para que perdurem práticas de escravização, transformando o trabalhador em mero objeto descartável.

O sistema político neoliberal, juntamente com a economia globalizada são carros-chefe na empregabilidade de mão-de-obra não especializada, acometida ao trabalho compulsório, num total desrespeito no que tange a lei brasileira voltada para o zelo da integridade do trabalhador. Empregar mão-de-obra escrava é sinônimo de diminuição de custos de produção, e aumento de lucros, lembra Sakamoto.
O número de pessoas hoje que são vítimas do trabalho escravo contemporâneo é no mínimo cerca de 25.000 segundo a CPT. Mesmo com toda a fiscalização atuante definir números precisos é quase impossível. Ainda se tem muito que investigar. Nessa direção, VIEIRA e ESTERCI afirmam:
(...) As divergências que, às vezes, aparecem entre as cifras, refletem as dificuldades de aferição e aqueles que as produzem explicam: Como se trata de uma prática clandestina e ilegal, é difícil contabilizar todos os casos e, neste sentido, argumentam, é sempre possível supor que o número de casos seja maior que o computado. Além disso, de um ano para outro, os números podem crescer dramaticamente, num país ou numa região, devido a uma nova atividade que passa a ser explorada ou, simplesmente, devido à vigilância maior das organizações da sociedade civil e dos órgãos governamentais, que produz a visibilidade daquilo que já existia e que a omissão da sociedade ou dos governos havia antes deixado na penumbra. Mas, os números podem variar também em função de critérios de quem contabiliza.
Os personagens envolvidos nesta trama designada trabalho escravo é bastante diversificada quanto ao gênero à identidade, as formas de atuar e os principais objetivos utilizados neste cenário degradante. A Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada em 10 de dezembro de 1948 é o combustível principal na movimentação para erradicar os abusos trabalhistas espalhadas pelo Brasil. Está no artigo 1° desta declaração que:
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direito. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

Muito embora, esteja esboçado na declaração dos direitos humanos que os homens são iguais em dignidade e direito, além de que precisam ser tratados com espírito de fraternidade. A realidade observada é contrastante com o que se reza nesta declaração. Os homens, senhores de fazendas e empresas em nome do lucro conseguem ludibriar a fiscalização, pois esses estão bem assessorados juridicamente. E assim estando, o plano de erradicação do trabalho escravo no Brasil fica longe de ser efetivado.
Enfim, no Brasil superar a existência do trabalho escravo, assim como sua erradicação é um dos grandes desafios para aqueles que estão engajados nesta luta.
O trabalho escravo fere aquilo que o ser humano tem de mais precioso: a sua dignidade de ser um humano. Portanto, no momento em que é tratada de forma degradante, no momento em que lhe é seqüestrada sua dignidade, a pessoa regride para o estado de coisa, de um mero objeto descartável que assim que não mais for útil pode ser dispensado sem nenhuma retribuição justa a seu favor. A exploração da força de trabalho de muitos brasileiros que se aventuram por essas "celas" nas quais são iludidos a entrar, consiste numa historiografia triste de ser escrita. É angustiante vê pessoas vivendo uma história análoga à uma realidade remota, onde era legal subjugar o outro a condição de coisa e não de gente.
A questão do trabalho escravo no Brasil contemporâneo é abrangente pelo território nacional. A escravidão atual é um resquício do Brasil colonial. Um legado que apenas se metamorfoseou. E o sistema capitalista de hoje pode ser o fator principal para as mudanças e permanências desta cena vergonhosa. Na antiga escravidão os lucros eram relativamente baixos, pois muito se gastava para manter a saúde dos escravos. Já na atualidade com mão-de-obra farta, não existe custos como antes, resultando num aumento de lucro que estimula mais e mais a utilização deste tipo de trabalhador vulnerável a entrar neste modelo criminoso de trabalho.
Embora milhares de trabalhadores tenham sido libertados, o número de denúncias ter aumentado, os desafios para os órgãos competentes ainda é muito grande. Mudar a herança cultural presente na mentalidade daqueles que fazem uso do trabalho escravo é um processo que requer um trabalho conjunto entre Estado, ONGs e o empenho da sociedade civil. Enquanto isso não acontece, nesta era denominada de pós-modernidade, o trabalho escravo vai dignificando o conceito de que o Brasil é o país dos contrastes, das mudanças e das permanências.


REFERÊNCIAS

AUDI, Patrícia. A Escravidão não Abolida. IN: VELLOSO, Gabriel; Fava, Marcos Neves (orgs.). Trabalho Escravo Contemporâneo: O Desafio de Superar a Negação. São Paulo: LTR, 2006.
SAKAMOTO, Leonardo. Lucro fácil, mão-de-obra descartável a escravidão contemporânea e economia internacional. IN: COGGIOLA, Osvaldo. (org.). América Latina e a Globalização. 1° Ed. São Paulo: FFLCH/PROLAM/Universidade de São Paulo, 2004.
VIEIRA, Maria Antonieta da Costa & ESTERCI, Neide. Trabalho Escravo no Brasil: Os Números, as Lutas e as Perspectivas em 2003. IN: Comissão Pastoral da Terra, Conflitos no Campo, Brasil ? 2003. Goiânia, CPT, 2004.