De hábito, aliás, é nisso que consiste nossa abordagem – em captar o que é dito para além do que se quer dizer.  (Jacques Lacan)   

Para o inicio desse artigo que se baseará na fundamentação trazida pela psicanálise, trago palavras de Domiciano Siqueira, um dos fundadores da ABORDA, Associação Brasileira de Redução de Danos, que faz considerações em seu livro, O Maldito Cidadão, acerca dos usuários de SPAS:

 “A ilegalidade de algumas substâncias fizeram com que a saúde pública, as religiões e a Justiça, que foram historicamente as instituições encarregadas de ‘enfrentar o problema’, se afastassem dele, uma vez que colocaram como pressuposto para o atendimento dessas pessoas a necessidade de ‘desejar parar de usar drogas’ em detrimento da realidade mais comum, que sempre foi a manutenção do uso”

 Esta realidade mais comum que o autor coloca age em desacordo com o que prega o conceito bibliográfico que será traçado nas próximas linhas, já que o mesmo coloca a manutenção como realidade geral para o sujeito.

Em “O Mal-Estar da Civilização” (1929) Freud coloca as drogas como uma resposta do sujeito ao seu mal estar perante três formas de sofrimento, que poderá vir a ser, pelo próprio corpo, a partir do mundo externo, e a dor das relações com outras pessoas. A drogadição seria uma forma de suportar o mal estar imposto ao ser humano que vive em sociedade. 

            Tendo a psicanálise como referencial teórico deste estudo, percebemos que a droga é significada dentro da rede de elementos em que cada sujeito se estrutura psiquicamente. Então, de que sujeito falamos? Sem a pretensão de indicar as minúcias desse conceito, se é que o podemos tomá-lo como tal, queremos ressaltar a contribuição ímpar da psicanálise ao campo saúde.

            Em Uma dificuldade no caminho da Psicanálise (1917), Freud fala de um descentramento do eu para o registro do inconsciente, afirmando a importância do reconhecimento dos processos mentais inconscientes para a vida. 

            É preciso compreender que o sujeito é movido não somente por processos conscientes, mas por uma parte de si que é desconhecida, por desejos e motivações inconscientes, constituído nas interações com os que nos cercam, com o ambiente, com a sociedade.

            O conceito aprimorado de sujeito para a psicanálise vem apontado por Lacan, acerca de estudos advindos da ideia de Descartes, no cogito cartesiano, que coloca a frase: “cogito, ergo, sun” (penso, logo, existo). Ideia no qual coloca o sujeito em uma força de existência perante uma dúvida, onde implica a exclusão daquilo que a psicanálise entende como sendo a sua causa, que estabelece a divisão fundamental pela linguagem, que resulta em um sujeito que é onde não pensa.

“Uma regra de pensamento que deva apoiar-se no não pensamento como o que pode ser a sua causa, eis com o que nos confronta a noção de inconsciente. Só em conformidade com o fora do sentido das palavras sou como pensamento. Meu pensamento não se regula segundo minha vontade, agregue-se ou não por desgraça” (Lacan, 1968-1969, p. 13).

            Ainda nessa ideia de sujeito, podemos observar não um conceito próprio, já pensado, mas algo que não segue uma norma pré-estabelecida, para isso, traremos duas citações:

“O sujeito como tal, funcionando como sujeito, é algo diferente de um organismo que se adapta. É outra coisa, e para quem sabe ouvi-lo, a sua conduta toda fala a partir de um outro lugar que não o deste eixo que podemos apreender quando consideramos como função num indivíduo, ou seja, com um certo número de interesses concebidos na areté individual. (LACAN, 1954-1955/1985, p.16). “

“Nem naturalista nem culturalista, Freud é antes de tudo um pensador que teve a coragem de ir aos confins da relação da natureza com a cultura, para ali encontrar não o ponto de junção mas sim o de dinjunção, interseção vazia que nodula, sem continuidade, essas duas dimensões da experiência.” ( ELIA, L. – O Conceito de sujeito., p. 47).

            Trata-se, portanto, de não enviesar o conceito do sujeito e confundi-lo com uma concepção de cidadania.  Desse modo, não traz em si a noção de inclusão social, de resgate do respeito, isso o discurso social já o faz, tomando assim o sujeito na proximidade com a cidadania.  Colocamos em circulação um outro sujeito, que não é debatido frente à frente, que pode não querer estar inserido na esfera social que o discurso capitalista lhe posiciona, sujeito que quebra as regras, de repetição, ou seja, o sujeito do inconsciente.

            A sociedade costuma ditar regras, por vezes, meramente reconhecidas pelo senso comum, mas quando o sujeito desliza e vai contra tais regras, é julgado severamente. Neste pensamento, podemos observar, no que se coloca a Redução de Danos, que é uma estratégia que busca minorar os efeitos nocivos da dependência de substâncias psicoativas, onde se coloca esse sujeito perante esta dependência? O sujeito, àquele que citamos, o do inconsciente? O uso abusivo de substâncias psicoativas não se reduz apenas a compulsão e a falta de limites. Pelo contrário, a drogadição, como já citado em Freud, pode vir a ser uma forma de existir para o sujeito. O senso comum tende a achar que toda pessoa que faz uso da droga virá a ser toxicômano, não conseguirá parar de fazer uso da mesma. Porém, como já citado, cada maneira é singular, é um processo identificatório para a psicanalise.                    

            Apesar de o recurso às drogas ser universal, o modo como cada sujeito faz uso delas é singular, o que explica alguns se tornarem dependentes, outros não. Ainda no texto “O Mal-Estar da Civilização” (1930) Freud contrariando essa tendência atual de comparar o uso de drogas à dependência química, fez uma diferenciação entre “o emprego de veículos intoxicantes” e a “intoxicação crônica”. Enquanto o primeiro é considerado uma luta pela felicidade e o afastamento da desgraça, o segundo é o consolo para que “o homem, que em anos posteriores vê sua busca de felicidade resultar em nada” (p. 86). Sendo assim, podemos perceber que em estudos freudianos há uma grande diferenciação acerca do uso de drogas.

            A dinâmica do uso abusivo de drogas acontece de forma em que a substância psicoativa vai se instalando no sujeito, e formando um processo, que pode ser chamado de “dependógeno”, dando início a um estágio identificatório de que o sujeito satisfaz-se, sem, de fato, necessitar do outro para tal, a “falta” que poderá ser saciada em qualquer lugar, a qualquer hora, fazendo uso do objeto.  A psicanálise, a seu modo, nos demonstra que pelo inconsciente existe tendência à repetição do uso, da qual relaciona-se à falta, logo, ao objeto.

            Acerca do discurso psicanalítico, acreditamos, que a droga é apenas um meio para um fim para o sujeito desejante, uma forma de chegar ao ápice do desejo, que aquela falta almeja, e que vai continuar a repetir-se. Seja pelo mal estar entranhado na sociedade, seja por uma castração advinda da vida do sujeito, o fato é que há um motivo da qual se vivencia  a procura por esse objeto, e pelo qual se repete, deseja, e inflama.