Tolerância zero para quem não fala meu português

Em 1963 a nossa família se mudou de Vacaria, município de Várzea Alegre para Farias Brito, uma cidadezinha aprazível do interior Ceará, situada as margens do rio Cariús, encravada entre a serra do Quincuncá e uma colina conhecida como Serrinha. Nessa época, eu e meu sócio Gino montamos uma loja de tecido no centro da cidade, bem em frente à Praça do Relógio, um dos principais monumentos da cidade.

Vindo do interior não me desfiz do meu gadinho leiteiro, nem esqueci também da trazer minha mula Estrela e meu burrinho Dourado. Acontece que eu não possuía nenhum palmo terra, e nem sequer um curral para ordenhar o gado leiteiro. Mas em Farias Brito encontrei pessoas acolhedoras e amáveis, que me ofereceram pasto para os animais e até um curral, bem pertinho de minha casa. Portanto, presto aqui as minhas homenagens póstumas a Aurélio Liberalino de Meneses, ex-prefeito da cidade de Farias Brito e a Antonio Ferreira Lima, meu amigo e xará, mais conhecido pela alcunha de Antonio Loló, os quais me ajudaram a manter o meu pequeno rebanho.

Na época do inverno a vida brotava exuberante no sertão, logo após as primeiras chuvas de janeiro. Então a babugem e a rama, mudavam a cor da paisagem tórrida dos outeiros, num tapete verde de relva que servia para alimentar as reses e os animais de serviço. Nessa época nós soltávamos o gado leiteiro no tabuleiro, uma extensa área de pasto nativo e sem cercas, que se estendia da Serrinha até as Aroeiras. À tardinha o gado leiteiro era recolhido ao curral para apartação dos bezerros em fase de aleitamento.

Todas as manhãs, ainda bem cedinho, antes mesmo de se vislumbrarem os primeiros raios solares entre os cerros e várzeas, eu e meu amigo Antonio Loló, já estávamos no curral na lida diária da ordenha. Esse era o momento que nós tínhamos para conversar, e às vezes até fazermos previsões para o próximo inverno, especialmente durante os três primeiros meses que antecediam as chuvas no sertão.

Nessa época compadre Antonio Loló gostava muito de dar os seus palpites sobre o inverno. Lembro-me que durante aquele período seco de outubro para novembro soprava uma brisa norte-sul, uma situação atípica a todos aos anos anteriores.

Naquela ocasião eu disse:

- Compadre Antonio Loló, você como o melhor profeta de Farias Brito, qual é o seu eu palpite para próximo inverno?

- Compadre Antonio de Anicete, vou lhe ser sincero, nesse próximo ano haverá pouca chuva. Só vai dar mesmo pra fechar a rama e formar o pasto!

- Compadre Antonio Loló, o que você diz dessa ventania em pleno mês de novembro?

- Pelas as minhas experiências, Antonio, tudo indica que o próximo inverno será muito minguado.

Era o final do ano de 1973 e se aproximava a época do inverno. O ano começou com chuvas regulares e o legume estava bem situado, não se concretizando assim as previsões do meu amigo Antonio Loló. No entanto, a partir do mês de março o caldo engrossou, choveu torrencialmente, parece que Deus tinha ouvido a súplica do cearense de forma inclemente: "Oh Deus, perdoe este pobre coitado/ Que de joelhos rezou um bocado/ Pedindo pra chuva cair sem parar". As águas despencaram rio abaixo a partir das cabeceiras em Santana do Cariri, arrastando o paul das baixadas e levando tudo que se encontrava pela frente, porém o nível aumentou ainda mais, a partir da confluência com as águas barrentas do riacho Foveira, alagando assim as partes mais baixas da cidade de Farias Brito.

No meio das águas turvas da grande enchente de 1974, lá estava meu amigo Antonio Loló, empurrando com um rodo a água barrenta e lamacenta, que entrava pelas portas do fundo da sua mercearia e saiam bem em frente à Praça do Relógio. Diante dessa situação ele estava agoniado e preocupado em salvar a mercadoria das prateleiras mais baixas.

Vez por outra, passava um gaiato em frente à bodega e gritava:

- Olha o ventão, compadre Loló!

Nesse momento ele estremecia de fúria e lançava os seus impropérios imprecativos. No entanto, foi em matéria de português que Antonio Loló se destacou, para tanto recebeu o apoio de seu grande amigo Eliezer Moreira, filho do ilustre farmacêutico Augusto Moreira. Eliezer foi professor de matemática no ginásio Enoch Rodrigues por vários anos, onde se destacou pela sua competência, mas a sua principal atividade era o trabalho no Cartório de Registro Civil da cidade. Quase todo dia tinha um encontro marcado com seu grande amigo na sua mercearia, que também funcionava como bar. Eliezer gostava de tomar umas biritas antes do almoço ou do jantar, só pra abrir o apetite, aí os dois conversavam de tudo, mas obedecendo e concordando com o bom "português" do amigo.

Um dia eu estava no curral ordenhando as vacas e começamos a falar sobre o preparo das terras para o plantio, então me dirige ao amigo Loló e falei:

- Compadre os agricultores ainda não começaram a limpar as terras para o plantio!

Sua resposta foi curta e ríspida:

- Por acaso estas filhas de uma mãe estão sujas para precisarem de limpeza?

Diante dessa reposta eu me calei, sabia que tinha cometido um grave erro de português, mas continuei:

- Compadre Antonio Loló, então por que será que as pessoas ainda não trataram as terras para o próximo plantio?

Nesse momento notei que ele falou ainda mais afobado:

- Essas éguas por acaso estão doentes para precisaram de tratamento!

Diante disso eu me calei e mudamos de assunto. Passei uma semana inteirinha só pensando numa palavra certa, sobre o referido assunto, que de fato agradasse o meu grande amigo. Então no mesmo lugar, como de sempre, tratei de fazer a mesma pergunta:

- Compadre Antonio Loló, por que será que os agricultores ainda não capinaram as terras?

Ai ele respondeu alegre e gentilmente:

- É verdade compadre Antonio de Anicete, concordo com você, os agricultores já deveriam estar capinando as terras para o plantio.

Nesse momento suspirei aliviado, pois sabia que tinha acertado na mosca.

O amigo Antonio Loló não entendia de figuras de linguagens, tais como pleonasmos, metáforas ou metonímias, mas as detestava quando mal empregadas, tamanho era o seu aborrecimento que era capaz até de desfazer um negócio, ou até perder um freguês.

Conta-se que certa vez ele foi comprar umas bananas do Sr. Antonio Pereira, então lhe perguntou:

- Compadre Antonio Pereira, que horas posso lhe encontrar em sua casa?
- Senhor Antonio Loló, pode chegar lá em casa na boquinha da noite, que eu estarei lhe esperando.

Nesse momento Antonio Loló se conteve na sua fúria, mas quando Antonio Pereira saiu, ele olhou para o seu amigo Eliezer e disse:

- Compadre eu não agüento mais conversar com tanta gente ignorante! Onde já se viu noite ter boca! Sabe compadre eu ainda vou embora do Ceará e vou morar em Nova Linda, terra da minha mulher.

Eliezer aproveitou a ocasião para reforçar o português de seu amigo:

- De fato, você tem toda razão, eu nunca vi durante toda minha, Dr. Valmir Ribeiro tirar dente de defunto ou de boca de noite!

No dia seguinte, Sr. Antonio Loló foi à casa de Antonio Pereira buscar as bananas como haviam combinado, aí quase teve um ataque de nervos, pois o dono da casa foi logo dizendo gentilmente na sua linguagem simples:

- Entre pra dentro Sr. Antonio Loló, faça de conta que você está em casa!

- Não! De maneira nenhuma! Prefiro ficar de fora, a ter de entrar pra dentro!

Assim ele preferiu ficar lá fora no terreiro, bufando de raiva, pois literalmente não concordava com as palavras ou expressões chulas: entrar pra dentro, descer para baixo, subir para cima, ver com os próprio olhos, sonhar um sonho, etc.

Às vezes algumas pessoas apareciam no lá curral querendo beber leite mungido, e traziam o seu copo de alumínio, chega brilhava e diziam:

- Sr. Antonio Loló eu gostaria de beber um copo de leite mungido. Será possível?

Ai já ficava meio arrepiado e dizia:

- Sim e Não! Não, se você quiser beber também o copo. Sim, se você tomar só o leite e não engolir o copo. Pois quem já se viu alguém tomar um copo de leite e não morrer! Aprenda a falar certo, se não nunca mais você beberá leite mungido.

Certa vez ele recebeu um convite para ir uma festa de debutante da filha de um abastado comerciante da cidade, mas infelizmente não compareceu porque estava escrito:

- A adolescente completará nesse dia, quinze primaveras.

- Aí ele atacou na raiz do problema, quem faz primavera são as flores e não as pessoas! Não posso ir a essa festa de jeito nenhum, vá você mulher! Eu não vou passar raiva no meio de tantos analfabetos e ignorantes.

Quando houve a mudança do cruzeiro para o cruzado, a moeda anterior estava muito inflacionada, portanto foi necessário cortar três dígitos, por exemplo, 1.000,0 cruzeiros, passou a valer 1,00 cruzado. O Sr. Antonio Loló estava atento a essas mudanças, mas ainda havia, aqui acolá, algum cabra besta que chegava com a moeda antiga, dizendo bobagem:

- Sr. Antonio Loló, me venda mil cruzados de banana?

Aí ele se enfezava na hora, e se recusava a vender, dizendo:

- Seu filho de uma mãe, você trouxe uma camionete para levar as bananas?

Assim, Sr. Antonio Loló se consagrou com professor de português na cidade, e sempre quando alguém queria irritá-lo, era só dizer uma besteira que não se enquadrasse no seu vocabulário.

Por isso ele sempre dizia:

- Aqui em Farias Brito só há duas pessoas que sabem falar português, eu e meu compadre Eliezer.

O Sr. Antonio Loló dizia sempre: escreveu e não leu, comigo, é analfabeto. Também, valia a outra assertiva: escreveu e não leu, comigo, o pau comeu. Nisso ele era intolerante, não tinha acordo. Mas se falasse o seu "português", a pessoa era elogiada e até poderia ganhar um desconto na hora da compra.


Meu Sertão, Minha Gente e Minha Vida (Trechos)
Antonio Anicete de Lima e Antonio Ferreira Lima (narrativas)