Havia na terra dos viventes uma lenda antiga. Dizia a lenda que nem todos os mortos estavam mortos de fato. Como era uma velha lenda, ninguém no mundo arriscava acreditar naquele relato e somente os incultos não tinham vergonha de perguntar se aquilo era verdade.
Na terra dos viventes também havia um jovem chamado Zé Prudente. Ele era aluno de uma das maiores faculdades existentes, onde lecionavam os melhores doutores.
Certo dia, uma junta médica convocou todos os alunos para uma aula de anatomia num grande galpão da faculdade. Lá havia cadáveres despidos, deitados em balcões de concreto. Um deles que era recém-chegado ali, vinha de outra faculdade e não parecia estar sem vida. Os doutores, peritos em necropsia, pararam diante do morto para descrever brevemente o estilo de vida boêmio que teve e a causa mortis, sem, contudo notar nenhuma anomalia, o que não aconteceu com o jovem Prudente. Ele deixou o grupo seguir e ficou alguns segundos detido pela curiosidade diante do cadáver. Num ato de autocrítica, sussurrou consigo mesmo: "Que droga!... Como sou idiota! É evidente que o cara ta morto!" Em seguida, virou as costas em direção ao grupo de acadêmicos. Foi quando ouviu um ruído do morto: "Tisc!" No que olhou de volta, percebeu que o cadáver abrira os lábios esboçando um sorriso. Prudente aproximou-se do defunto e, com um olhar de espanto, observou enquanto este alargava os lábios lentamente até sorrir literalmente, sem, entretanto, emitir qualquer som. Mais que depressa, o corajoso rapaz dirigiu-se ao primeiro membro da junta que avistou e sem deixar os outros colegas perceberem, sussurrou-lhe no ouvido indicando com os olhos:
- Professor... Aquele cadáver sorriu!
- O que Zé?
- Ele sorriu! Eu vi!
O perito mirou o suposto cadáver e dirigiu-se a passos largos demonstrando certo constrangimento. O cadáver havia desmanchado o sorriso e estava como antes. O doutor verificou sinais vitais e não achou nenhuma evidência de vida.
- Eu tenho certeza que vi esse homem sorrir professor! Parece absurdo, mas é verdade!
- Impossível... Está morto há anos! Veja você mesmo Zé: Não fosse o formol estaria decomposto.
Meio encabulado, o jovem acompanhou seu mestre desligando-se por um pouco daquele cadáver estranho. A aula seguiu com os demais corpos no salão; os alunos concentrados e Prudente sentindo-se entre a cruz e a espada. Afinal quem quer ser vítima de chacota? Ainda mais numa aula de anatomia? Mas a curiosidade do Zé era visceral; algo o atraía àquele morto. Em quinze minutos lá estava ele: disposto a desvendar sozinho o maior mistério da ciência. Pensou, olhou pro cadáver e, enfim, exclamou trêmulo:
- Se está me ouvindo, sorria!
Ao que respondeu o homem sorrindo, desta vez, com o gesto surpreendente de abrir os olhos e mirar Zé Prudente. Este, em estado de choque e ao fazer menção de ir à busca do perito novamente, ouve do pseudo-morto:
- Não tenha medo! Não sou mal! Mas não acho bom que procure os peritos. Eles não vão acreditar em você. Para eles eu morri mesmo. Só alguns percebem que não morri. Você é um deles!
Zé Prudente, ainda incrédulo, resolveu aceitar o diálogo e prosseguiu:
- Mas vão te colocar numa geladeira, te dissecar e...
- Não vão não! Eles sempre me preservam inteiro pra me zombar.
Enquanto o ouvia, Prudente não percebeu a aproximação de um de seus colegas que mesmo a certa distância ouvia o homem falar. Surpreso, exclamou meio sussurrando:
- Caramba Zé! Já ouvi a tal lenda e agora tô acreditando... O cara ta vivo mesmo!! Porque ele não levanta e anda? Assim iria deixar de ser lenda e calar a boca de muita gente!
Prudente, sem saber o que dizer ao colega, permanece calado diante da cena. Então o homem responde:
- Não posso levantar! Mas sei que um dia será o momento de surpreender a todos. Por enquanto preciso manter em dúvida o que dizem por aí. Mas saber a verdade sobre mim os coloca num grupo privilegiado. Parabéns!

Essa narração contém uma tipologia da modernidade. Esta é consolidada por uma série de concepções humanistas e paradigmas filosóficos que negam uma única verdade. Os doutores representam todo conhecimento moderno adquirido desde as postulações de Galileu passando pelos grandes pensadores Hegel, Kant, Nietzsche, Marx e os gênios da Escola de Frankfurt até chegar a Einstein. Os estudantes, além de representarem eles próprios, também são uma referência ao público leigo que, pela falta de conhecimento, tem senso crítico limitado aceitando o que lhes fazem parecer certo. Já os cadáveres aludem às verdades míticas do mundo, seus credos e filosofias gnósticas que por terem sido dissecadas e estudadas até se esgotarem os tecidos, se mostram bem mais interessantes e aceitas.
Resta descrever a representação do pseudo-cadáver. Ele se refere a toda carga de valores e princípios desde o judaísmo antigo aos evangelhos cristãos: O falso morto é o cristianismo. Durante sua infância (primeiro século d.C) foi maltratado, na adolescência (religião oficial IV d.C) foi aceito e na maturidade (inquisição) corrompido de tal forma que hoje tudo o que se quer é ignorá-lo enquanto modelo civilizatório, pois o conhecimento e a revolução científica foram perseguidos, brutalmente castigados e exterminados durante a época em que "reinou absoluto".
Hoje não há muito interesse da ciência em estudá-lo. Talvez os Zé Prudente e alguns poucos estudiosos sejam os únicos que procuram conhecê-lo. Revelar sua verdade, até que é comum, mas o que se acredita é que os que correm atrás disso não passam de ingênuos interessados em uma lenda. Só eles conseguem dizer que o verdadeiro cristianismo, não foi aquele da adolescência que se tornou aceito, muito menos o da maturidade que foi embriagado pela consciência corrupta dos opressores aos quais se referiam os pais da filosofia moderna. Por incrível que pareça, o cristianismo de verdade não é a Igreja do Vaticano, nem do legalismo político norte-americano e dos evangélicos da prosperidade e suas neo-indulgências como querem líderes da moda que aderem a essa teologia infundada. O pseudo-cadáver é uma criança em forma de homem (... a não ser que se tornem como crianças, jamais entrarão no Reino dos céus - Mateus 18.3) e os que perceberam que estava vivo ? Prudente e o amigo ? também eram como crianças curiosas que insistem em dizer "ele está vivo!" mesmo que os outros não acreditem e os ridicularizem na academia, nas ruas e em todos os recintos da modernidade. O cristianismo e tudo o que se refere a Jesus tem explicação lógica e plenamente fundamentada para os estudiosos modernos. Já foi visto e revisto; é página virada na história e devidamente colocada em exposição para que todos saibam do seu vergonhoso fracasso; por isso, não há necessidade de ser dissecado como os outros: acreditam saber tudo daquele corpo. Desconhecem que Cristo ainda na terra predisse seu ressurgimento deixando um hiato na história por se cumprir: "Então se verá o Filho do homem (...) Os céus e a terra passarão, mas as minhas palavras jamais passarão" ? Lucas 21. 27a, 33.
A lenda persiste sem que se leve a sério a profecia. Só leigos e uns poucos sábios têm esperado, pois são pequeninos, crianças a quem Ele se revela: "Eu te louvo Senhor do céu e da terra, pois escondeste estas coisas dos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos. Pois assim foi do teu agrado" ? Lucas 10.21.
Estes são os cristãos da pós-modernidade e podemos conhecê-los muito mais por suas atitudes do que por seus rótulos. Prudente e o amigo ilustram a surpresa de alguém quando tem um encontro pessoal com Deus e passa a crer e viver nEle em meio ao ambiente hostil da ciência. Assim há em um só personagem duas leituras: A do Zé que vira as costas ao falso morto e segue a junta de estudiosos, ou a do Prudente, que tem uma sensibilidade e uma pureza capazes de entender a verdade mais contestável e contundente, embora seja tão imperfeito quanto qualquer outro mortal. Verdade é que podemos olhar para o mesmo objeto e tirar conclusões distintas. Qual a sua?