Passei os últimos cento e cinqüenta mil anos evoluindo. A observar eu comecei há pouco menos de cento e vinte mil , numa fase em que jáhavia sinais do homem sobre a terra.

Até o ano cento e vinte mil, eu dormia muito e dormitava mais que dormia. Não era o sono da fadiga, mas algo que hipnotizava de dentro do meu crânio, cuja capacidade, apesardos avanços relativos ao pitecantropo de Java,ainda não abrira espaço ao raciocínio elaborado.

Limitado por umalógica difusa, e tábua rasa em matéria ética ( o incesto sequer não fora imaginado), gastava o meu tempo na caça ao mamute, em que me especializei, para mantersaciados os mais famintos e, conseqüentemente, para escapar-lhes ao instinto devorador.

O depoimento que ora inicio calará melhor a quem soube resistir aos encantos da tese revelacionista, evitar-lhe os excessos eesquivar-se ao fanatismo que espreita a cada curva do caminho.

Calará melhor ainda aos que não desdenham da magia, que permeia entre o tempo e o espaço, e invade a eternidade, para cobrar o meu depoimento detestemunha ocular da pré-história.

Sim, creiam, "há entre o céu é a terra muito mais do que pensa a vã filosofia."

Entre um mamute e outro, eu observava.

Fazia-o por dois motivos: primeiro porque era curioso; segundo porque o pessoal me cobrava respostas, cravando em mim, silentes e espantados, o seu olhar coletivo,sempre que sobrevinham calamidades.

Creio que da cobrança e da observação surgiu o primeiro mito.

O céu estava escuro. Tonitruava a tempestade. O ventoera gelado e cortante. De luz apenas o clarão intermitente dos relâmpagos refletidos sobre as águas revoltas e ameaçadoras.

Não sabia como explicar nada daquilo, mas percebia que em pouco tempo a caverna seria alagada.

O meu grupo permanecia acocorado,olhando insistentemente na minha direção.

De repente, na pureza de impulsos primitivos, comecei a apontar para o céu. O céu estava lá fora, e lá fora estava escuro, mas eu não queria significar o céu, e simevocar a lembrança do sol. Se o sol escurecia, aquele escuro todo podia ser um sol no escuro.

Não me cobrem lógica. Eu já disse, a minha lógica era difusa.

Apontava para o céu e em seguida apontava para a terra. A terra também não estava lá. Ali só havia as pedras da caverna. Mas eu queria evocar a lembrança da terra.

A terra que eu evocava na verdade não era a terra, mas as plantas que brotam da terra, depois que chove. E para evocar as plantas, eu graduava o espaço com a mão espalmada, em movimento que subia e descia. O rés-do-chão simbolizava a morte, o alto simbolizava a vida.

Simbologia temerária, porquanto a mão ao alto podia aludir ao dilúvio iminente, e inverter o sentido dasmetáforas.

Sem embargo, era preciso dar uma explicação.

E a explicação não podia ser outra, nem mais eficaz. Afinal, com os meus sinais, paria-se algo novo, encurtava-se a distância sujeito-objeto.

A minha individualidade legitimava a intempérie e esta era, a seu turno, semelhante à minha individualidade, logo, à individualidade de cada um no grupo.

Dava-se o primeiro passo do auto-conhecimento concreto e, da comunhão,nasciao maravilhoso, que é a essência do mito.

Por isso o pânico e a míngua de socorro analítico encaminharam as minhas representações à síntese da intuição, recurso predileto da percepção coletiva, e regaço das almas que não conhecem outro consolo.

De tal maneira que, quando a torrente invadiu a caverna, começamos a mover os nossos corpos ao longo dos túneis, com água acima dos tornozelos, na primeira peregrinação xamânicapré-diluviana.

Naquele instante, além do mito, com seu simbolismo,metáforas, imagens e abstrações, revelava-se, na peregrinação, oritual sacralizante.

Concomitantemente, lançavam-se as bases da poesia, e a religiosidade descobria um caminho venturoso.

Como disse, era tábua rasa em matéria ética. Por isso uma vez mais, na qualidade de testemunha ocular da pré-história, convocado pela magia, narro a seguir o surgimento do meu primeiro impulso moral.

Quando eu arrancava às mãos de um pequerrucho a carne que ele rasgava para comer, eu o fazia impulsionado pela fome e pela conveniênciade alijar um concorrente, sendo absolutamente despiciendo que a carne fosse de mamute ou de um companheiro de caçada, parente ou não.

Certa noite, nem a propósito, jantávamos uma adolescente que morrera espetada na ponta de uma estalagmite.

De repente, a carne incha-me à boca e estrangula a ingestãogarganta abaixo. Lanço para longe, ante o olhar espantado dos demais convivas, a tíbia que eu mesmo arrancara ao corpo da rapariga.

A partir daquele momento parei de comer a carne dos semelhantes.

Passei a matar, por matar, visto que a lei de talião é uma sofisticação ulterior.

E aqui eu me retiro. Saioconvencido de que, apesar das limitações da minha época, deixei as coisas bem encaminhadas.

Imagino, cheio de fundado otimismo, alegre e confiante,que, depois de mais cento e vinte mil anos de evolução, a vida no Planeta seja um paraíso, um templo indiviso de paz e meditação.