TESTAMENTO VITAL: PROTEÇÃO À VIDA VERSUS MORTE DIGNA[1]

Bruna Portela Teles Pessoa

Camila Maria e Silva Costa[2]

Anna Valéria Cabral Marques[3]

 

SUMÁRIO: Introdução; 1. Do testamento vital; 2. A vida como bem indisponível; 3. Do testamento vital como garantidor de uma morte digna; Anexo; Considerações Finais; Referências.

 

 

RESUMO

Aborda, primeiramente, conceitos de testamento vital, bem como sua origem histórica, requisitos, procedimento, entre outras características gerais. A seguir, segue uma comparação analítica desse instituto com o testamento civil, estabelecendo suas semelhanças e divergências. Após, a vida como um bem indisponível e a incidência desse novo tipo de testamento nesse Direito Fundamental. Por fim, destaca-se o a importância do testamento vital para os pacientes em estado terminal, garantindo a dignidade da pessoa humana e proporcionando uma morte digna.

 

PALAVRAS-CHAVE

Testamento vital. Testamento civil. Direito à vida. Bem indisponível. Dignidade da Pessoa Humana. Autonomia. Morte digna.

 

INTRODUÇÃO

A partir do tema proposto, buscou-se abordar os elementos que compõem o novo instituto nomeado testamento vital, recepcionado pela Resolução 1.995 do Conselho Federal de Medicina, atentando às mudanças nas posturas dos médicos brasileiros. Sendo conveniente entender, ainda, os requisitos extrínsecos e intrínsecos do documento, no qual os pacientes decidem quais tratamentos médicos desejam submeter- se.

Ao passo de desenvolver melhores entendimentos a respeito do tema, importante estabelecer um breve comparativo entre testamento vital e o testamento civil utilizado no Brasil, ressaltando os requisitos formais deste, salientando as similitudes e as peculiaridades em relação àquele.

Para abordagem dos elementos que envolvem o testamento vital, a legislação Uruguaia específica sobre o tema será utilizada como escopo para identificar os pontos do instituto, na medida de compreensão, relacionado ao ordenamento jurídico Brasileiro, bem como, atribuições aos princípios protegidos pela Carta Magna.

Tendo em vista que a vida constitui um bem indisponível, a análise sobre a validade do testamento vital é pautada, principalmente, na preservação do direito à vida, garantido constitucionalmente, cotejando os levantamentos dos que são contra o testamento vital, tendo em vista a proteção à vida.

Dessa forma, o presente trabalho tem como finalidade realizar um embate acerca da busca por uma morte digna em contraposição com a proteção à vida preservada obstinadamente pelos médicos. Assim, o testamento vital surgiu não como uma afronta à vida, mas como forma de resguardar o princípio da dignidade da pessoa humana, amparando aqueles cuja vida não vale mais a pena ser vivida.

  1. 1.      Do testamento vital

O testamento vital, também chamado de living will, consiste em um documento assinado, no qual o paciente juridicamente capaz estabelece quais os tipos de tratamentos médicos deseja ou não se submeter quando, em razão do estado terminal em que se encontra, não mais conseguir expressar vontade própria, a exemplo do coma. (GODINHO, 2012)

Surgiu como documento legal na Califórnia, em que deliberava sobre o direito do paciente consentir, submeter-se ou optar por não passar por terapêuticas médicas, quando não mais gozar de lucidez na tomada da decisão, encontrando-se diante de estado incurável ou terminal. (ROCHA; BUONICORE; SILVA; PITHAN; FEIJÓ, 2013)

O testamento em vida, segundo Luciana Dadalto Penalva (2009), configurando a declaração prévia da vontade do paciente, deve estar ao alcance de todos, possibilitando a qualquer pessoa o direito de escolher se a ela seja ou não utilizado determinado tratamento médico na situação de estado terminal em que se encontre.

 

Esses testamentos aplicam-se nos casos de condições terminais sob um estado permanente de inconsciência ou um dano cerebral irreversível que não possibilite a capacidade de a pessoa se recuperar e tomar decisões ou expressar seus desejos futuros. Nesse contexto, entra a aplicação do testamento vital, a fim de que sejam tomadas medidas necessárias para manter o conforto, a lucidez e aliviar a dor, inclusive com a suspensão ou interrupção de tratamento. (MAGALHÃES, 2010, apud, SILVA; GOMES, 2012, p. 207)

Imperioso destacar um equívoco terminológico no emprego do termo “testamento vital”, uma vez que não se trata de um testamento propriamente dito, pois este ato tem como finalidade produzir efeitos post mortem. Já o testamento vital em questão produzirá efeitos inter vivos, isto é, terá eficácia durante o estado terminal do paciente, o qual, atingindo o óbito, fará com o que o testamento perca a razão de ser. Além disso, o testamento vital visa a estabelecer antecipadamente a vontade do paciente acerca dos tratamentos médicos a que deseja se submeter, contrário do que ocorre no testamento civil, no qual o testador realiza uma divisão patrimonial, ou estabelece questões não patrimoniais, a exemplo do reconhecimento de paternidade. (GODINHO, 2012)

Essa determinação antecipada de vontade configura-se, portanto, como um instrumento capaz de abolir uma noção retrógrada da medicina, na qual o médico não atua tão somente pela arte de curar, mas pela tentativa de proteção a qualquer custo da vida do paciente, independente da sua vontade pré-determinada. (GODINHO, 2012)

Dentro do viés do testamento vital, que ainda não foi instaurado no Brasil, o Conselho Federal de Medicina promulgou Resolução CFM 1.995, de 9 de agosto de 2012, na qual estabelece diretivas antecipadas de vontade como conjunto de desejos manifestados pelos pacientes. O teor da resolução elucida que o paciente em estado lúcido e com pleno gozo de manifestar-se irá expor sua vontade sobre tratamentos que deseja ou não receber quando estiver incapacitado de exprimir de forma livre e autônoma seu querer, e o médico registrará no prontuário, devendo atender ao acordado, sendo as diretivas antecipadas do paciente preponderante “sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive os desejos dos familiares”, este só terá poder de decisão caso tenha sido escolhido pelo próprio doente como seu representante. (Resolução CFM Nº 1995)

A proposta do testamento vital começa chegar ao Brasil através da resolução do Conselho Federal de Medicina, que faz com que os pacientes pensem sobre os tratamentos que poderão ser executados, tocando ainda, no assunto morte, com a busca de uma reflexão e maturidade social para o Brasil (ELY, 2012). Contudo, no país, não existe regulamentação legislativa sobre o testamento vital, o que não gera empecilhos para abordagem crítica sobre sua validade e eficácia; pois, como ainda não vigora nenhuma lei específica, os particulares possuem liberdade para consagrar categorias não contempladas em lei, de acordo com o princípio da tipicidade, ressalvando que as condutas não devem afrontar a base do ordenamento jurídico. (GODINHO, 2012)

Nos países em que o testamento vital existe legislação, há a possibilidade dos pacientes escolherem antecipadamente qual o tipo de tratamento médico que deseja ser submetido, ou se aceita ser submetido a manutenção da vida através de aparelhos. Em Portugal, no ano de 2012, a Lei 25 foi publicada, atendendo a regulamentação das diretivas antecipadas de vontade, sendo documentado pelo testamento vital, além da nomeação de procurador de cuidados à saúde, criando, ainda, o Registro Nacional de Testamento Vital (ROCHA; BUONICORE; SILVA; PITHAN; FEIJÓ, 2013). Outros países como Uruguai, Argentina, Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, EUA, França, Holanda, Hungria, Inglaterra, México e Porto Rico também possuem regulamentação específica sobre o testamento vital.

1.1.Análise comparativa com testamento civil

No Brasil, o testamento que incide é o testamento civil, o qual se caracteriza como documento em que a parte manifesta sua vontade, destinada a obtenção de efeitos post mortem, em que o sujeito através de ato personalíssimo, unilateral, gratuito, solene e podendo ser revogado, dispõe do seu patrimônio no todo ou em parte, para depois da morte. (DINIZ, 2007).

De imediato, identifica-se a distinção no tange à produção de efeitos e o caráter a que se destina. Enquanto o testamento civil produz efeitos para depois da morte do testador, possuindo caráter patrimonial, o testamento vital os produz para antes do falecimento, com disposições sobre relacionadas ao direito de personalidade e autonomia do indivíduo. (SILVA; GOMES, 2012)

A nomenclatura “testamento vital” veio em encontro com o que se define por declaração prévia de vontade de pacientes em estado terminal, possuindo escopo em diversas tentativas de traduzir a expressão norte americana “living will”. Porém, ainda cabem divergências sobre o termo ter originado das possíveis traduções, ou se possuía objetivo de equiparar a ideia de documento a um testamento. (ROCHA; BUONICORE; SILVA; PITHAN; FEIJÓ, 2013)  

O testamento vital, assim como outros atos jurídicos, deve obedecer a alguns requisitos. Nos países em que é admitido o seu uso, é imprescindível que o paciente seja maior e juridicamente capaz, que o documento seja devidamente assinado na presença de duas testemunhas independentes e que só produza efeitos após 14 dias contados do dia da assinatura, sendo a revogação permitida a qualquer tempo. Ainda, pressupõe que tenha caráter provisório, possuindo validade de aproximadamente cinco anos e o atestado de paciente em estado terminal seja certificado por dois médicos. (SILVA; GOMES, 2012)

O testamento civil também requer certas formalidades, algumas parecidas com o testamento vital. O agente precisa ser capaz e gozar de lucidez mental, no documento o objeto será lícito “e possuindo forma prescrita ou não defesa em lei”, compreendendo, para tornar-se válido, elementos como capacidade do “herdeiro instituído ou legatário e espontaneidade da manifestação do ato de última vontade”. (DINIZ, 2007)

É mister ressaltar, como elenca Amaral e Pona (2010, apud, SILVA; GOMES, 2012) as mesmas características do testamento vital e civil: ambos são atos jurídicos e, portanto, negócios jurídicos, pois representam manifestações de vontade de indivíduos para posterior produção de efeitos jurídicos; são unilaterais, por não necessitarem da concordância de outra pessoa, sendo assim, personalíssimos; revogáveis, uma vez que o testador pode, a qualquer momento, revê-los e revogá-los; gratuito, já que “não impõe ônus, nem obrigações a quaisquer pessoas”; e solene, visto que há exigência do registro do documento, devendo ser escrito, obedecendo as solenidades, sob pena de nulidade.

O procedimento do testamento vital distingue-se do testamento civil. O testamento convencional brasileiro ampara formas ordinárias e especiais, os quais são: testamento público, cerrado e particular. De acordo com o procedimento do público, o testamento deve ser escrito por tabelião ou por substituto legal, ser lavrado o instrumento e lido em voz alta ao testador e duas testemunhas e, por fim, assinado pelo testador, testemunhas, e pelo tabelião. Não se distingue muito do que ocorre com o cerrado, a única peculiaridade é que não se sabe o conteúdo do testamento, ao contrario do público. Enquanto isso, o testamento particular é escrito pelo próprio testador, ou de próprio punho, ou mediante processo mecânico (máquina de escrever ou computador) e deve conter três testemunhas. (TARTUCE, 2011)

     Para que o testamento vital seja dotado de eficácia, é imprescindível analisar alguns requisitos: a) o primeiro diz respeito à capacidade civil, excluindo a possibilidade imposta pelo CC de maiores de 16 anos testarem, pois o cerne do testamento vital não diz respeito ao caráter patrimonial, e sim resguardar a vida e a integridade física; b) necessidade de informações prévias de médicos com formação técnica apropriada para prestar esclarecimentos sobre o diagnóstico, prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento; c) será o efeito compulsivo na decisão médica e não indiciário, devendo o médico respeitar a disposição testamentária, mesmo que em oposição aos familiares, não sendo o médico responsabilizado civilmente, pois estaria resguardado pelo acordado no testamento, porém, se desrespeitar, sofreria as sanções impostas pelo CC, além de sanções disciplinares. (SILVA; GOMES, 2012).

Em sequência: d) a existência de um formulário-tipo, que objetivará padronizar procedimentos, para que a manifestação de vontade do paciente seja clara e de fácil compreensão; e) que o testamento vital pode ser revogado; f) que será renovado periodicamente, com o intuito de preservar a opinião do indivíduo, possuindo prazo de validade, nos países que adotam, equivalente a cinco anos, devendo ser renovado neste período; g) a certificação perante um tabelião, para que se dê mais garantia de validade, sendo realizado por escritura pública, para que com fé conferida pela lei, assegure veracidade e validade ao documento; h) por fim, a criação de um registro nacional de diretivas antecipadas (RENDAV),“para agilizar o acesso ao testamento vital por parte dos profissionais da saúde”. Na Dinamarca, o médico é obrigado a consultar o arquivo central de testamentos vitais e, caso não o faça, sobre penalização. (SILVA; GOMES, 2012).

“(...) para ser válido, o consentimento deve ser atual. Ora a criação on-line de um Registro Nacional de Diretivas Antecipadas de Vontade permitiria que só documentos recentes, com um período de validade predefinido, fossem considerados válidos. Mais ainda, a existência de este registro permite também que o consentimento seja livremente revogado até à prática do ato concreto, na medida em que, enquanto existir competência, o doente pode revogar a orientação expressa no Testamento Vital. Findo este prazo de validade, e no caso de o doente ficar incapaz de decidir, o Testamento Vital manteria o seu valor dado que representa a vontade previamente manifestada do doente, desde que não existam dados que permitam supor que o doente alteraria a sua decisão.” (PORTUGAL, 2010, apud; SILVA; GOMES, 2012,p. 209-2010)

  1. 2.      A vida como bem indisponível

Preceitua a Constituição Federal de 88, em seu art. 5º:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

 

XLVII - não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

Percebe-se, então, a preocupação do legislador em resguardar o direito à vida, colocando-o como um direito fundamental e atribuindo a ele qualidade de inviolabilidade.

Para a doutrina conservadora, a inviolabilidade do direito à vida predisposta pelo legislador constituinte constitui o pensamento de um direito absoluto, impassível de relativização no caso concreto, independentemente de suas peculiaridades. A vida, portanto, consistiria no precípuo direito inerente ao ser humano, configurando condição necessária para os demais direitos, de forma a preponderar diante de conflitos entre direitos fundamentais. Afora as discussões acerca do momento da concepção, tal direito, por sua vez, se configuraria inato e existiria a partir desse momento, desde o início da vida.  (MOREIRA; PEIXOTO, 2008)

Alfredo Orgaz (apud, ROBERTO, 2012) aduz que a vida institui um “pressuposto essencial da qualidade de pessoa”, não um direito subjetivo do ser humano, devendo ser protegida publicamente, independente da vontade deste, haja vista que o seu consentimento configura-se inteiramente inútil para dispensar essa tutela. Dessa forma, é impossível haver um “direito privado à vida”, restando-se nulos quaisquer atos jurídicos em que o indivíduo disponha de sua vida ou se coloque em situação de grave perigo.

A vida se identifica com a simples existência biológica e o direito à vida é essencial, tem como objeto um bem muito elevado, sendo um direito essencialíssimo. É um direito inato, adquirido no nascimento, portanto, intransmissível, irrenunciável e indisponível. (DE CUPIS, 1961, apud, ROBERTO, 2012, p. 4)

 

 

Segundo Maria Helena Diniz (2001, apud, ROBERTO, 2012), vida deve ser protegida em qualquer situação, contra tudo e contra todos, tendo em vista que constitui um direito personalíssimo. O respeito imposto a ela e aos demais direitos que derivam dela é oriundo de um “dever absoluto erga omnes”, ao qual é proibido desobedecer. O direito à vida é preservado por norma constitucional em cláusula pétrea, a qual é inabalável, uma vez que não há sequer a possibilidade de emendá-la. A referida autora preconiza que o mencionado direito deve ser protegido contra o que ela chama de “insânia coletiva”, que defende a legalização do aborto, a pena de morte e a guerra; destarte, acredita-se que a sociedade esteja vivendo um grande desafio: manter o respeito à dignidade da pessoa humana.

A vida, portanto, constitui um direito, não uma liberdade, de forma que não é, ao indivíduo titular da vida, alçada a faculdade de optar por não viver. A vida necessariamente precisa ser preservada, ao passo que devem os poderes públicos proteger esse bem, ainda que seja contrário à vontade do seu titular. Dessa forma, cabe aos poderes públicos resguardar a vida dos indivíduos, ainda que um deles tenha realizado ato que siga os horizontes do suicídio. (MENDES; BRANCO, 2011, p. 292)

A autoridade pública que tem conhecimento de determinado atentado contra o direito à vida humana e se abstém do dever de proteção, falha no dever decorrente da vida como direito fundamental. Destarte, constitui uma obrigação das autoridades públicas investigarem com máxima diligência os casos de violação desse direito essencial, de forma que “toda morte não natural ou suspeita deve ser averiguada”. Do contrário, sem a devida investigação ou ausência de diligência no intuito de proteção a esse bem, ocorrerá, por conta da impressão de impunidade, descrédito em relação ao poder da legislação criminal. (MENDES; BRANCO, 2011)

 

A vida – como valor central do ordenamento jurídico e pressuposto existencial dos demais direitos fundamentais, além de base material do próprio conceito de dignidade humana – impõe medidas radicais para a sua proteção. Não havendo outro meio eficiente para protegê-la, a providência de ultima ratio da tipificação penal se torna inescapável. (...) A incriminação da conduta não apenas se presta para reprimir o comportamento contrário ao valor central da vida para o ordenamento jurídico, como, igualmente, contribui para que se torne nítida a antijuridicidade do comportamento vedado. (MENDES; BRANCO, 2011, p. 294)

 

 

Segundo Maria Helena Diniz (2006, apud, SILVA; GOMES, 2012), é necessário impor limites à medicina moderna, tendo em vista que o respeito ao ser humano, em todas as fases de evolução da vida, apenas será alcançado se estiver nos parâmetros da dignidade da pessoa humana.

Caso fosse admitido proporcionar às pessoas a liberdade de solicitar que outras a matassem pelos motivos que achassem plausíveis, acarretaria em uma banalização das relações de vida ou morte. Transcendendo ainda, às pessoas que não consentiram o dano da banalização. Tais decisões relacionadas a viver ou morrer, devem ser sérias, pensadas, efetuadas com responsabilidade. Dessa forma, entende-se justificável o poder público recusar-se a adentrar em um sistema de “contratos de morte”, e justificável que se recuse, em nome do direito geral de liberdade, a abalizar a conduta. (MARTEL, 2010)

De tal modo, aprecia-se a conduta do Estado em considerar, precipuamente, insuficiente o consentimento do indivíduo para a disposição de posições subjetivas do direito à vida, quando o cerne da questão envolver o direito geral de liberdade, haja vista que a restrição do direito de liberdade, nesse caso, é insignificante. Em outras palavras, tendo em vista a importância da vida, sendo esta um direito fundamental, é plenamente aceitável que o Estado intervenha em situações que tragam risco a integridade desse bem, ainda que tal conduta do poder público atinja outros direitos, como o direito à liberdade. (MARTEL, 2010)

  1. 3.      Do testamento vital como garantidor de uma morte digna

No que tange aos casos envolvendo a existência humana, é necessário atentar-se ao caso concreto, a fim de que, em se tratando de peculiaridades inerentes a cada ser humano, se possa decidir qual a melhor solução nas “situações limites”, sob a proteção não somente do direito, mas também da bioética. É o exemplo de pessoas em estado terminal que mantém ativa apenas algumas funções terapêuticas por meio de aparelhos, ou mesmo os fetos anencefálos. Estas pessoas usufruiriam de uma vida digna? (MOREIRA; PEIXOTO, 2008)

De tal modo, a vida, protegida constitucionalmente, possui exigências, não é possível que seja em qualquer condição. Ao seu conceito é apensado outro direito constitucional tal qual o da dignidade da pessoa humana, princípio base não apenas do nosso ordenamento jurídico, mas da existência humana em si. O legislador, portanto, no artigo 5º da Constituição Federal de 88, ao mencionar o direito à vida, o fez no intuito de garantir não somente a inviolabilidade da vida, mas especificamente uma vida digna.

“O direito à vida possui uma íntima relação com a dignidade, ou poderia dizer, ainda, a plenitude da vida. Isto significa que o direito à vida não é apenas o direito de sobreviver, mas de viver dignamente”. (ROBERTO, 2012)

 

Tomás de Aquino referia-se à dignidade da pessoa humana como qualidade que guarda intensa relação com a concepção de pessoa, nada mais que uma qualidade inerente a todo ser humano e que o distingue das demais criaturas: racionalidade. É por meio da racionalidade que o ser humano passa a ser livre e responsável por seu destino, significando o que há de mais perfeito em todo o universo e constituindo um valor absoluto, um fim em si. (MARTINS, 2008, apud, DANIELLE, 2011, p. 174-175)

 

A dignidade da pessoa humana, contrário do que ocorre com as coisas, não consiste tão somente na pessoa ser considerada e tratada como “um fim em si” e nunca como uma forma de realização de determinado resultado, é também oriunda do fato de que, por sua vontade racional, apenas o ser humano é passível de decidir, utilizando de sua autonomia, isto é, apenas a pessoa humana constitui um ser capaz de conduzir a sua existência através das leis e regras ditadas por si mesmo, de acordo com o que lhe convir. (COMPARATO, 2001, apud, DANIELLE, 2011)

Dessa forma, a dignidade humana constitui uma “autonomia vital” do ser humano, implicando na sua autodeterminação em relação ao Estado, às demais pessoas. Assim, qualquer situação que acarrete na limitação da autonomia e decisão do indivíduo, oriunda de sua racionalização, fere nitidamente o conceito da dignidade da pessoa humana. (MIRANDA, 1988, apud, DANIELLE, 2011)

Ainda, a dignidade da pessoa humana repousa no prisma da ideia de respeito amplo ao ser humano, e o profissional de saúde, ao contrariar a vontade expressa do paciente, sujeitando-o a tratamento não aceito, pode indicar cárcere privado, constrangimento ilegal e até mesmo lesão corporal. Portanto, a declaração prévia de vontade de paciente terminal, consiste na garantia ao enfermo de evitar prática terapêutica obstinada. Assim sendo, os médicos que, por qualquer razão, optarem por não consentir com o disposto no testamento devem encaminhar o paciente a outro médico ou instituição. (ROCHA; BUONICORE; SILVA; PITHAN; FEIJÓ, 2013).

Isto posto, a declaração prévia de vontade do paciente terminal apresenta como finalidade a garantia do respeito a decisão do paciente terminal, bem como, e não menos importante, fornecer respaldo legal á conduta médica frente a essas situações conflitantes. (LEPARGNER H, apud; PESSINI L, apud; ROCHA; BUONICORE; SILVA; PITHAN; FEIJÓ, 2013, p.91).

Mesmo o testamento vital não possuindo legislação específica que regule sobre o tema, alguns brasileiros têm ido até cartórios e lavrado documentos públicos, manifestando sua vontade sobre quais tratamentos terapêuticos desejam passar ou não, quando a lucidez não lhes ocorrer. No 26º Tabelionato de Notas de São Paulo, 406 pessoas registraram documento, além de 90 declarações de variados temas, tais como, “tipo de tratamento ou suporte por máquinas a ser rejeitado, no caso de doenças incuráveis em fase terminal, ao local da morte e opção de cremação”. Dentre os exemplos, existe o de Celina Maria Rubio, de 70 anos, que descobriu possuir o mesmo problema da mãe, de obstrução no intestino, determinando em documento público não ser submetida a cirurgia, devendo falecer de forma natural. (MARIZ, 2012)

No Brasil, diferentemente de outros países, não há lei regulamentando o testamento vital. Isso não significa, porém, que o documento é desprovido de validade. “A declaração de vontade dará segurança jurídica aos médicos que ficam temerosos de serem responsabilizados por omissão de socorro e acabam colocando o paciente nos aparelhos, mesmo sabendo que o que está ocorrendo é um prolongamento do processo de morte e não da vida”, afirma Carlos Vital, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM). A entidade trabalha atualmente para elaborar uma resolução sobre testamentos vitais. Nos Estados Unidos, primeiro país a criar o instrumento, a estimativa é que 29% da população adulta fazem uso dele. Na Espanha, esse índice chega a 16%. A advogada Luciana da Dalto, especialista no assunto, destaca que a vontade do paciente em desligar um aparelho ou não tomar uma droga está respaldada na Constituição Federal. “Temos o princípio da dignidade da pessoa humana e da liberdade”. (MARIZ, 2012)

Com relação à resolução do Conselho Federal de Medicina, que dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade do paciente, o Ministério Público Federal interpôs ação civil pública (1039-86.2013.4.01.3500) no Estado do Goiás, alegando que o conteúdo da resolução é inconstitucional e ilegal, com argumento que extravasa os limites do poder regulamentar, impondo riscos a segurança jurídica, estabelecendo instrumento inidôneo para o registro das diretivas antecipadas dos pacientes. Ainda, solicita a justiça, que o Conselho Federal de Medicina suspenda a resolução. (AÇÃO CIVIL PÚBLICA n. 0001039-86.2013.4.01.3500)

Em decisão, a Justiça Federal entendeu que não foram extrapolados poderes normativos, apenas regulamentada a conduta médica ética perante “a situação fática de o paciente externar sua vontade quanto aos cuidados e tratamentos médicos que deseja receber ou não, hipótese de encontrar em estado terminal e irremediável”, ainda, considerou a resolução constitucional relacionando-a ao princípio da dignidade da pessoa humana. Ademais, conceituou que a manifestação da vontade é livre, conforme disposição do art. 107 do Código, que “somente exige forma especial quando a lei expressamente estabelecer”. (DECISÃO LIMINAR AÇÃO CIVIL PÚBLICA 0001039-86.2013.4.01.3500)

O testamento vital assegura ao indivíduo optar por uma morte assegurada na vontade livre e consciente, disposta a partir de documento personalíssimo, visando proteger a autonomia da vontade, além da dignidade da pessoa que manifestou sua vontade no documento.

Existem casos que chamaram atenção no mundo, um deles foi o de Piergiogio Welby, italiano que sofria de distrofia muscular progressiva, que aos 60 anos, vivendo em função de um respirador artificial, pediu à Justiça italiana que lhe concedesse a oportunidade de desligar o aparelho, porém, seu pedido foi negado. Logo depois o médico anestesista desligou o respirador e foi processado criminalmente, mas a juíza Zaira Secchi o absolveu, argumentando que o médico apenas teria cumprido com a vontade do paciente. (DADALTO, 2012)

A médica geriatra brasileira Ana Claudia Arantes demonstrou sua vontade através de diretrizes antecipadas, em que, no corpo do texto, diz não querer se submeter a UTI por mais de uma semana, não ser submetida à alimentação tubular e não ser reanimada em caso de parada cardíaca. Agora, o médico Bem-Hur Ferraz Neto determina que o seu testamento vital apenas conste o nome do médico que lhe será de confiança, o qual será responsável pelas medidas terapêuticas adotadas, assegurando uma passagem da vida à morte de forma digna e mais confortável possível. (CUMINALE; LOPES, 2012)

Por fim, em meio ao disposto no testamento vital, é de primazia que seja assegurado ao indivíduo que intenciona manifestar-se através de uma diretiva antecipada de vontade, nada mais que a sua vontade, a autonomia em submeter-se a tratamentos que lhe são oportunos, e o respeito dos profissionais da saúde e familiares ao disposto no art. 5º da CF, a dignidade da pessoa humana.

ANEXO

Segue, como anexo, modelos de testamentos vitais da Alemanha (ANEXO 1) e Portugal (ANEXO 2), países que possuem regulamentação legislativa sobre as diretivas antecipadas de vontade, para conhecimento físico do documento abordado no trabalho.

O anexo 1 referente ao testamento vital alemã, é o modelo utilizado pelo banco de testamentos DVZ que armazena o testamento do paciente, podendo este ser solicitado pelos médicos e autoridades competentes.

O anexo 2 indica o documento aprovado pelo governo português, que pode ser encontrado nos postos do sistema de saúde, e após preenchido, será realizada a posterior inscrição do portador no Registro Nacional de Directivas Antecipadas de Vontade- RENDAV-.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Primeiramente, conceituou-se o testamento vital como sendo documento unilateral de manifestação de vontade, enquanto o sujeito capaz goza de todas as suas faculdades mentais, tendo o mesmo surgido na Califórnia, não possuindo legislação específica no Brasil, salvo Resolução do Conselho Federal de Medicina, com texto semelhante ao proposto pela diretiva antecipada de vontade.

Ademais, tratou-se das distinções e semelhanças entre o testamento vital e testamento civil, aceito no Brasil. Ambos constituem atos jurídicos, unilaterais, revogáveis, solenes, gratuitos; porém, apresentam objetivos diferentes, enquanto o testamento civil visa o patrimônio com efeitos post mortem, o testamento vital assegura a integridade física, com efeitos inter vivos.

Posto isso, adentrou – se na indisponibilidade da vida, atrelando à validade do testamento vital com a prerrogativa de proteção a vida. Em suma, tendo em vista a importância da vida, sendo esta um direito fundamental, considerou – se a intervenção do Estado nas situações que tragam risco a integridade física, mesmo que a conduta do poder público atinja outros direitos, como o direito à liberdade.

Por fim, tratou – se de casos de pessoas adeptas ao testamento vital, bem como, a busca pela propagação do direito à liberdade de escolher quais tratamentos médicos lhes são de favor, acordando em todos os pontos o princípio da dignidade da pessoa humana, salientando, casos estrangeiros e abordando a ação civil pública movida pela procuradoria do estado de Goiás contra a decisão do Conselho Federal de Medicina.

O presente estudo, deve como escopo principal esclarecer dúvidas sobre o que viés do testamento vital, pautados no espelho “Proteção a vida”, protegido pela Carta Magna como princípio basilar humano, e “Morte Digna”, principal ponto levantado pelos adeptos do testamento vital.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: Texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais nº 1/92 a 53/2006 e pelas Emendas Constitucionais de Revisão nº 1 a 6/94. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2007.

BRASIL. Resolução CFM Nº 1995. Conselho Federal de Medicina, 09/ 08/2012. Disponível em: < http://legisweb.com.br/legislacao/?legislacao=244750>. Acesso em: 02 de março de 2013

CUMINALE, Natalia; LOPES, Adriana Dias. O Direito de Escolher. Veja, São Paulo, Ed. 2286, pág 98 -106, Setembro, 2012.

DADALTO, Luciana. No limite do sofrimento. Testamento: Belo Horizonte, 2012. Disponível em: < http://www.testamentovital.com.br/lernoticia.php?cod=3>. Acesso em: 21 de maio de 2013. 

DANIELLE, Maria Rita Monroe. Garantia Ao Direito À Vida Fundamentada Na Dignidade Humana – Óptica Constitucional Brasileira. UNISAL: São Paulo, 2011. Disponível em: < http://www.salesianocampinas.com.br/unisal/downloads/10UNI173a192.pdf>. Acesso em: 06 de maio de 2013

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[1] Paper desenvolvido com o objetivo de garantir aprofundamento acadêmico da disciplina Direito de Família e Sucessões, do curso de Direito (vespertino), da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.

[2] Graduandas do 6º período vespertino do curso de Direito da UNDB.

[3]Professora Orientadora.

TESTAMENTO VITAL: PROTEÇÃO À VIDA VERSUS MORTE DIGNA[1]

Bruna Portela Teles Pessoa

Camila Maria e Silva Costa[2]

Anna Valéria Cabral Marques[3]

 

SUMÁRIO: Introdução; 1. Do testamento vital; 2. A vida como bem indisponível; 3. Do testamento vital como garantidor de uma morte digna; Anexo; Considerações Finais; Referências.

 

 

RESUMO

Aborda, primeiramente, conceitos de testamento vital, bem como sua origem histórica, requisitos, procedimento, entre outras características gerais. A seguir, segue uma comparação analítica desse instituto com o testamento civil, estabelecendo suas semelhanças e divergências. Após, a vida como um bem indisponível e a incidência desse novo tipo de testamento nesse Direito Fundamental. Por fim, destaca-se o a importância do testamento vital para os pacientes em estado terminal, garantindo a dignidade da pessoa humana e proporcionando uma morte digna.

 

PALAVRAS-CHAVE

Testamento vital. Testamento civil. Direito à vida. Bem indisponível. Dignidade da Pessoa Humana. Autonomia. Morte digna.

 

INTRODUÇÃO

A partir do tema proposto, buscou-se abordar os elementos que compõem o novo instituto nomeado testamento vital, recepcionado pela Resolução 1.995 do Conselho Federal de Medicina, atentando às mudanças nas posturas dos médicos brasileiros. Sendo conveniente entender, ainda, os requisitos extrínsecos e intrínsecos do documento, no qual os pacientes decidem quais tratamentos médicos desejam submeter- se.

Ao passo de desenvolver melhores entendimentos a respeito do tema, importante estabelecer um breve comparativo entre testamento vital e o testamento civil utilizado no Brasil, ressaltando os requisitos formais deste, salientando as similitudes e as peculiaridades em relação àquele.

Para abordagem dos elementos que envolvem o testamento vital, a legislação Uruguaia específica sobre o tema será utilizada como escopo para identificar os pontos do instituto, na medida de compreensão, relacionado ao ordenamento jurídico Brasileiro, bem como, atribuições aos princípios protegidos pela Carta Magna.

Tendo em vista que a vida constitui um bem indisponível, a análise sobre a validade do testamento vital é pautada, principalmente, na preservação do direito à vida, garantido constitucionalmente, cotejando os levantamentos dos que são contra o testamento vital, tendo em vista a proteção à vida.

Dessa forma, o presente trabalho tem como finalidade realizar um embate acerca da busca por uma morte digna em contraposição com a proteção à vida preservada obstinadamente pelos médicos. Assim, o testamento vital surgiu não como uma afronta à vida, mas como forma de resguardar o princípio da dignidade da pessoa humana, amparando aqueles cuja vida não vale mais a pena ser vivida.

  1. 1.      Do testamento vital

O testamento vital, também chamado de living will, consiste em um documento assinado, no qual o paciente juridicamente capaz estabelece quais os tipos de tratamentos médicos deseja ou não se submeter quando, em razão do estado terminal em que se encontra, não mais conseguir expressar vontade própria, a exemplo do coma. (GODINHO, 2012)

Surgiu como documento legal na Califórnia, em que deliberava sobre o direito do paciente consentir, submeter-se ou optar por não passar por terapêuticas médicas, quando não mais gozar de lucidez na tomada da decisão, encontrando-se diante de estado incurável ou terminal. (ROCHA; BUONICORE; SILVA; PITHAN; FEIJÓ, 2013)

O testamento em vida, segundo Luciana Dadalto Penalva (2009), configurando a declaração prévia da vontade do paciente, deve estar ao alcance de todos, possibilitando a qualquer pessoa o direito de escolher se a ela seja ou não utilizado determinado tratamento médico na situação de estado terminal em que se encontre.

 

Esses testamentos aplicam-se nos casos de condições terminais sob um estado permanente de inconsciência ou um dano cerebral irreversível que não possibilite a capacidade de a pessoa se recuperar e tomar decisões ou expressar seus desejos futuros. Nesse contexto, entra a aplicação do testamento vital, a fim de que sejam tomadas medidas necessárias para manter o conforto, a lucidez e aliviar a dor, inclusive com a suspensão ou interrupção de tratamento. (MAGALHÃES, 2010, apud, SILVA; GOMES, 2012, p. 207)

Imperioso destacar um equívoco terminológico no emprego do termo “testamento vital”, uma vez que não se trata de um testamento propriamente dito, pois este ato tem como finalidade produzir efeitos post mortem. Já o testamento vital em questão produzirá efeitos inter vivos, isto é, terá eficácia durante o estado terminal do paciente, o qual, atingindo o óbito, fará com o que o testamento perca a razão de ser. Além disso, o testamento vital visa a estabelecer antecipadamente a vontade do paciente acerca dos tratamentos médicos a que deseja se submeter, contrário do que ocorre no testamento civil, no qual o testador realiza uma divisão patrimonial, ou estabelece questões não patrimoniais, a exemplo do reconhecimento de paternidade. (GODINHO, 2012)

Essa determinação antecipada de vontade configura-se, portanto, como um instrumento capaz de abolir uma noção retrógrada da medicina, na qual o médico não atua tão somente pela arte de curar, mas pela tentativa de proteção a qualquer custo da vida do paciente, independente da sua vontade pré-determinada. (GODINHO, 2012)

Dentro do viés do testamento vital, que ainda não foi instaurado no Brasil, o Conselho Federal de Medicina promulgou Resolução CFM 1.995, de 9 de agosto de 2012, na qual estabelece diretivas antecipadas de vontade como conjunto de desejos manifestados pelos pacientes. O teor da resolução elucida que o paciente em estado lúcido e com pleno gozo de manifestar-se irá expor sua vontade sobre tratamentos que deseja ou não receber quando estiver incapacitado de exprimir de forma livre e autônoma seu querer, e o médico registrará no prontuário, devendo atender ao acordado, sendo as diretivas antecipadas do paciente preponderante “sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive os desejos dos familiares”, este só terá poder de decisão caso tenha sido escolhido pelo próprio doente como seu representante. (Resolução CFM Nº 1995)

A proposta do testamento vital começa chegar ao Brasil através da resolução do Conselho Federal de Medicina, que faz com que os pacientes pensem sobre os tratamentos que poderão ser executados, tocando ainda, no assunto morte, com a busca de uma reflexão e maturidade social para o Brasil (ELY, 2012). Contudo, no país, não existe regulamentação legislativa sobre o testamento vital, o que não gera empecilhos para abordagem crítica sobre sua validade e eficácia; pois, como ainda não vigora nenhuma lei específica, os particulares possuem liberdade para consagrar categorias não contempladas em lei, de acordo com o princípio da tipicidade, ressalvando que as condutas não devem afrontar a base do ordenamento jurídico. (GODINHO, 2012)

Nos países em que o testamento vital existe legislação, há a possibilidade dos pacientes escolherem antecipadamente qual o tipo de tratamento médico que deseja ser submetido, ou se aceita ser submetido a manutenção da vida através de aparelhos. Em Portugal, no ano de 2012, a Lei 25 foi publicada, atendendo a regulamentação das diretivas antecipadas de vontade, sendo documentado pelo testamento vital, além da nomeação de procurador de cuidados à saúde, criando, ainda, o Registro Nacional de Testamento Vital (ROCHA; BUONICORE; SILVA; PITHAN; FEIJÓ, 2013). Outros países como Uruguai, Argentina, Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, EUA, França, Holanda, Hungria, Inglaterra, México e Porto Rico também possuem regulamentação específica sobre o testamento vital.

1.1.Análise comparativa com testamento civil

No Brasil, o testamento que incide é o testamento civil, o qual se caracteriza como documento em que a parte manifesta sua vontade, destinada a obtenção de efeitos post mortem, em que o sujeito através de ato personalíssimo, unilateral, gratuito, solene e podendo ser revogado, dispõe do seu patrimônio no todo ou em parte, para depois da morte. (DINIZ, 2007).

De imediato, identifica-se a distinção no tange à produção de efeitos e o caráter a que se destina. Enquanto o testamento civil produz efeitos para depois da morte do testador, possuindo caráter patrimonial, o testamento vital os produz para antes do falecimento, com disposições sobre relacionadas ao direito de personalidade e autonomia do indivíduo. (SILVA; GOMES, 2012)

A nomenclatura “testamento vital” veio em encontro com o que se define por declaração prévia de vontade de pacientes em estado terminal, possuindo escopo em diversas tentativas de traduzir a expressão norte americana “living will”. Porém, ainda cabem divergências sobre o termo ter originado das possíveis traduções, ou se possuía objetivo de equiparar a ideia de documento a um testamento. (ROCHA; BUONICORE; SILVA; PITHAN; FEIJÓ, 2013)  

O testamento vital, assim como outros atos jurídicos, deve obedecer a alguns requisitos. Nos países em que é admitido o seu uso, é imprescindível que o paciente seja maior e juridicamente capaz, que o documento seja devidamente assinado na presença de duas testemunhas independentes e que só produza efeitos após 14 dias contados do dia da assinatura, sendo a revogação permitida a qualquer tempo. Ainda, pressupõe que tenha caráter provisório, possuindo validade de aproximadamente cinco anos e o atestado de paciente em estado terminal seja certificado por dois médicos. (SILVA; GOMES, 2012)

O testamento civil também requer certas formalidades, algumas parecidas com o testamento vital. O agente precisa ser capaz e gozar de lucidez mental, no documento o objeto será lícito “e possuindo forma prescrita ou não defesa em lei”, compreendendo, para tornar-se válido, elementos como capacidade do “herdeiro instituído ou legatário e espontaneidade da manifestação do ato de última vontade”. (DINIZ, 2007)

É mister ressaltar, como elenca Amaral e Pona (2010, apud, SILVA; GOMES, 2012) as mesmas características do testamento vital e civil: ambos são atos jurídicos e, portanto, negócios jurídicos, pois representam manifestações de vontade de indivíduos para posterior produção de efeitos jurídicos; são unilaterais, por não necessitarem da concordância de outra pessoa, sendo assim, personalíssimos; revogáveis, uma vez que o testador pode, a qualquer momento, revê-los e revogá-los; gratuito, já que “não impõe ônus, nem obrigações a quaisquer pessoas”; e solene, visto que há exigência do registro do documento, devendo ser escrito, obedecendo as solenidades, sob pena de nulidade.

O procedimento do testamento vital distingue-se do testamento civil. O testamento convencional brasileiro ampara formas ordinárias e especiais, os quais são: testamento público, cerrado e particular. De acordo com o procedimento do público, o testamento deve ser escrito por tabelião ou por substituto legal, ser lavrado o instrumento e lido em voz alta ao testador e duas testemunhas e, por fim, assinado pelo testador, testemunhas, e pelo tabelião. Não se distingue muito do que ocorre com o cerrado, a única peculiaridade é que não se sabe o conteúdo do testamento, ao contrario do público. Enquanto isso, o testamento particular é escrito pelo próprio testador, ou de próprio punho, ou mediante processo mecânico (máquina de escrever ou computador) e deve conter três testemunhas. (TARTUCE, 2011)

     Para que o testamento vital seja dotado de eficácia, é imprescindível analisar alguns requisitos: a) o primeiro diz respeito à capacidade civil, excluindo a possibilidade imposta pelo CC de maiores de 16 anos testarem, pois o cerne do testamento vital não diz respeito ao caráter patrimonial, e sim resguardar a vida e a integridade física; b) necessidade de informações prévias de médicos com formação técnica apropriada para prestar esclarecimentos sobre o diagnóstico, prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento; c) será o efeito compulsivo na decisão médica e não indiciário, devendo o médico respeitar a disposição testamentária, mesmo que em oposição aos familiares, não sendo o médico responsabilizado civilmente, pois estaria resguardado pelo acordado no testamento, porém, se desrespeitar, sofreria as sanções impostas pelo CC, além de sanções disciplinares. (SILVA; GOMES, 2012).

Em sequência: d) a existência de um formulário-tipo, que objetivará padronizar procedimentos, para que a manifestação de vontade do paciente seja clara e de fácil compreensão; e) que o testamento vital pode ser revogado; f) que será renovado periodicamente, com o intuito de preservar a opinião do indivíduo, possuindo prazo de validade, nos países que adotam, equivalente a cinco anos, devendo ser renovado neste período; g) a certificação perante um tabelião, para que se dê mais garantia de validade, sendo realizado por escritura pública, para que com fé conferida pela lei, assegure veracidade e validade ao documento; h) por fim, a criação de um registro nacional de diretivas antecipadas (RENDAV),“para agilizar o acesso ao testamento vital por parte dos profissionais da saúde”. Na Dinamarca, o médico é obrigado a consultar o arquivo central de testamentos vitais e, caso não o faça, sobre penalização. (SILVA; GOMES, 2012).

“(...) para ser válido, o consentimento deve ser atual. Ora a criação on-line de um Registro Nacional de Diretivas Antecipadas de Vontade permitiria que só documentos recentes, com um período de validade predefinido, fossem considerados válidos. Mais ainda, a existência de este registro permite também que o consentimento seja livremente revogado até à prática do ato concreto, na medida em que, enquanto existir competência, o doente pode revogar a orientação expressa no Testamento Vital. Findo este prazo de validade, e no caso de o doente ficar incapaz de decidir, o Testamento Vital manteria o seu valor dado que representa a vontade previamente manifestada do doente, desde que não existam dados que permitam supor que o doente alteraria a sua decisão.” (PORTUGAL, 2010, apud; SILVA; GOMES, 2012,p. 209-2010)

  1. 2.      A vida como bem indisponível

Preceitua a Constituição Federal de 88, em seu art. 5º:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

 

XLVII - não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

Percebe-se, então, a preocupação do legislador em resguardar o direito à vida, colocando-o como um direito fundamental e atribuindo a ele qualidade de inviolabilidade.

Para a doutrina conservadora, a inviolabilidade do direito à vida predisposta pelo legislador constituinte constitui o pensamento de um direito absoluto, impassível de relativização no caso concreto, independentemente de suas peculiaridades. A vida, portanto, consistiria no precípuo direito inerente ao ser humano, configurando condição necessária para os demais direitos, de forma a preponderar diante de conflitos entre direitos fundamentais. Afora as discussões acerca do momento da concepção, tal direito, por sua vez, se configuraria inato e existiria a partir desse momento, desde o início da vida.  (MOREIRA; PEIXOTO, 2008)

Alfredo Orgaz (apud, ROBERTO, 2012) aduz que a vida institui um “pressuposto essencial da qualidade de pessoa”, não um direito subjetivo do ser humano, devendo ser protegida publicamente, independente da vontade deste, haja vista que o seu consentimento configura-se inteiramente inútil para dispensar essa tutela. Dessa forma, é impossível haver um “direito privado à vida”, restando-se nulos quaisquer atos jurídicos em que o indivíduo disponha de sua vida ou se coloque em situação de grave perigo.

A vida se identifica com a simples existência biológica e o direito à vida é essencial, tem como objeto um bem muito elevado, sendo um direito essencialíssimo. É um direito inato, adquirido no nascimento, portanto, intransmissível, irrenunciável e indisponível. (DE CUPIS, 1961, apud, ROBERTO, 2012, p. 4)

 

 

Segundo Maria Helena Diniz (2001, apud, ROBERTO, 2012), vida deve ser protegida em qualquer situação, contra tudo e contra todos, tendo em vista que constitui um direito personalíssimo. O respeito imposto a ela e aos demais direitos que derivam dela é oriundo de um “dever absoluto erga omnes”, ao qual é proibido desobedecer. O direito à vida é preservado por norma constitucional em cláusula pétrea, a qual é inabalável, uma vez que não há sequer a possibilidade de emendá-la. A referida autora preconiza que o mencionado direito deve ser protegido contra o que ela chama de “insânia coletiva”, que defende a legalização do aborto, a pena de morte e a guerra; destarte, acredita-se que a sociedade esteja vivendo um grande desafio: manter o respeito à dignidade da pessoa humana.

A vida, portanto, constitui um direito, não uma liberdade, de forma que não é, ao indivíduo titular da vida, alçada a faculdade de optar por não viver. A vida necessariamente precisa ser preservada, ao passo que devem os poderes públicos proteger esse bem, ainda que seja contrário à vontade do seu titular. Dessa forma, cabe aos poderes públicos resguardar a vida dos indivíduos, ainda que um deles tenha realizado ato que siga os horizontes do suicídio. (MENDES; BRANCO, 2011, p. 292)

A autoridade pública que tem conhecimento de determinado atentado contra o direito à vida humana e se abstém do dever de proteção, falha no dever decorrente da vida como direito fundamental. Destarte, constitui uma obrigação das autoridades públicas investigarem com máxima diligência os casos de violação desse direito essencial, de forma que “toda morte não natural ou suspeita deve ser averiguada”. Do contrário, sem a devida investigação ou ausência de diligência no intuito de proteção a esse bem, ocorrerá, por conta da impressão de impunidade, descrédito em relação ao poder da legislação criminal. (MENDES; BRANCO, 2011)

 

A vida – como valor central do ordenamento jurídico e pressuposto existencial dos demais direitos fundamentais, além de base material do próprio conceito de dignidade humana – impõe medidas radicais para a sua proteção. Não havendo outro meio eficiente para protegê-la, a providência de ultima ratio da tipificação penal se torna inescapável. (...) A incriminação da conduta não apenas se presta para reprimir o comportamento contrário ao valor central da vida para o ordenamento jurídico, como, igualmente, contribui para que se torne nítida a antijuridicidade do comportamento vedado. (MENDES; BRANCO, 2011, p. 294)

 

 

Segundo Maria Helena Diniz (2006, apud, SILVA; GOMES, 2012), é necessário impor limites à medicina moderna, tendo em vista que o respeito ao ser humano, em todas as fases de evolução da vida, apenas será alcançado se estiver nos parâmetros da dignidade da pessoa humana.

Caso fosse admitido proporcionar às pessoas a liberdade de solicitar que outras a matassem pelos motivos que achassem plausíveis, acarretaria em uma banalização das relações de vida ou morte. Transcendendo ainda, às pessoas que não consentiram o dano da banalização. Tais decisões relacionadas a viver ou morrer, devem ser sérias, pensadas, efetuadas com responsabilidade. Dessa forma, entende-se justificável o poder público recusar-se a adentrar em um sistema de “contratos de morte”, e justificável que se recuse, em nome do direito geral de liberdade, a abalizar a conduta. (MARTEL, 2010)

De tal modo, aprecia-se a conduta do Estado em considerar, precipuamente, insuficiente o consentimento do indivíduo para a disposição de posições subjetivas do direito à vida, quando o cerne da questão envolver o direito geral de liberdade, haja vista que a restrição do direito de liberdade, nesse caso, é insignificante. Em outras palavras, tendo em vista a importância da vida, sendo esta um direito fundamental, é plenamente aceitável que o Estado intervenha em situações que tragam risco a integridade desse bem, ainda que tal conduta do poder público atinja outros direitos, como o direito à liberdade. (MARTEL, 2010)

  1. 3.      Do testamento vital como garantidor de uma morte digna

No que tange aos casos envolvendo a existência humana, é necessário atentar-se ao caso concreto, a fim de que, em se tratando de peculiaridades inerentes a cada ser humano, se possa decidir qual a melhor solução nas “situações limites”, sob a proteção não somente do direito, mas também da bioética. É o exemplo de pessoas em estado terminal que mantém ativa apenas algumas funções terapêuticas por meio de aparelhos, ou mesmo os fetos anencefálos. Estas pessoas usufruiriam de uma vida digna? (MOREIRA; PEIXOTO, 2008)

De tal modo, a vida, protegida constitucionalmente, possui exigências, não é possível que seja em qualquer condição. Ao seu conceito é apensado outro direito constitucional tal qual o da dignidade da pessoa humana, princípio base não apenas do nosso ordenamento jurídico, mas da existência humana em si. O legislador, portanto, no artigo 5º da Constituição Federal de 88, ao mencionar o direito à vida, o fez no intuito de garantir não somente a inviolabilidade da vida, mas especificamente uma vida digna.

“O direito à vida possui uma íntima relação com a dignidade, ou poderia dizer, ainda, a plenitude da vida. Isto significa que o direito à vida não é apenas o direito de sobreviver, mas de viver dignamente”. (ROBERTO, 2012)

 

Tomás de Aquino referia-se à dignidade da pessoa humana como qualidade que guarda intensa relação com a concepção de pessoa, nada mais que uma qualidade inerente a todo ser humano e que o distingue das demais criaturas: racionalidade. É por meio da racionalidade que o ser humano passa a ser livre e responsável por seu destino, significando o que há de mais perfeito em todo o universo e constituindo um valor absoluto, um fim em si. (MARTINS, 2008, apud, DANIELLE, 2011, p. 174-175)

 

A dignidade da pessoa humana, contrário do que ocorre com as coisas, não consiste tão somente na pessoa ser considerada e tratada como “um fim em si” e nunca como uma forma de realização de determinado resultado, é também oriunda do fato de que, por sua vontade racional, apenas o ser humano é passível de decidir, utilizando de sua autonomia, isto é, apenas a pessoa humana constitui um ser capaz de conduzir a sua existência através das leis e regras ditadas por si mesmo, de acordo com o que lhe convir. (COMPARATO, 2001, apud, DANIELLE, 2011)

Dessa forma, a dignidade humana constitui uma “autonomia vital” do ser humano, implicando na sua autodeterminação em relação ao Estado, às demais pessoas. Assim, qualquer situação que acarrete na limitação da autonomia e decisão do indivíduo, oriunda de sua racionalização, fere nitidamente o conceito da dignidade da pessoa humana. (MIRANDA, 1988, apud, DANIELLE, 2011)

Ainda, a dignidade da pessoa humana repousa no prisma da ideia de respeito amplo ao ser humano, e o profissional de saúde, ao contrariar a vontade expressa do paciente, sujeitando-o a tratamento não aceito, pode indicar cárcere privado, constrangimento ilegal e até mesmo lesão corporal. Portanto, a declaração prévia de vontade de paciente terminal, consiste na garantia ao enfermo de evitar prática terapêutica obstinada. Assim sendo, os médicos que, por qualquer razão, optarem por não consentir com o disposto no testamento devem encaminhar o paciente a outro médico ou instituição. (ROCHA; BUONICORE; SILVA; PITHAN; FEIJÓ, 2013).

Isto posto, a declaração prévia de vontade do paciente terminal apresenta como finalidade a garantia do respeito a decisão do paciente terminal, bem como, e não menos importante, fornecer respaldo legal á conduta médica frente a essas situações conflitantes. (LEPARGNER H, apud; PESSINI L, apud; ROCHA; BUONICORE; SILVA; PITHAN; FEIJÓ, 2013, p.91).

Mesmo o testamento vital não possuindo legislação específica que regule sobre o tema, alguns brasileiros têm ido até cartórios e lavrado documentos públicos, manifestando sua vontade sobre quais tratamentos terapêuticos desejam passar ou não, quando a lucidez não lhes ocorrer. No 26º Tabelionato de Notas de São Paulo, 406 pessoas registraram documento, além de 90 declarações de variados temas, tais como, “tipo de tratamento ou suporte por máquinas a ser rejeitado, no caso de doenças incuráveis em fase terminal, ao local da morte e opção de cremação”. Dentre os exemplos, existe o de Celina Maria Rubio, de 70 anos, que descobriu possuir o mesmo problema da mãe, de obstrução no intestino, determinando em documento público não ser submetida a cirurgia, devendo falecer de forma natural. (MARIZ, 2012)

No Brasil, diferentemente de outros países, não há lei regulamentando o testamento vital. Isso não significa, porém, que o documento é desprovido de validade. “A declaração de vontade dará segurança jurídica aos médicos que ficam temerosos de serem responsabilizados por omissão de socorro e acabam colocando o paciente nos aparelhos, mesmo sabendo que o que está ocorrendo é um prolongamento do processo de morte e não da vida”, afirma Carlos Vital, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM). A entidade trabalha atualmente para elaborar uma resolução sobre testamentos vitais. Nos Estados Unidos, primeiro país a criar o instrumento, a estimativa é que 29% da população adulta fazem uso dele. Na Espanha, esse índice chega a 16%. A advogada Luciana da Dalto, especialista no assunto, destaca que a vontade do paciente em desligar um aparelho ou não tomar uma droga está respaldada na Constituição Federal. “Temos o princípio da dignidade da pessoa humana e da liberdade”. (MARIZ, 2012)

Com relação à resolução do Conselho Federal de Medicina, que dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade do paciente, o Ministério Público Federal interpôs ação civil pública (1039-86.2013.4.01.3500) no Estado do Goiás, alegando que o conteúdo da resolução é inconstitucional e ilegal, com argumento que extravasa os limites do poder regulamentar, impondo riscos a segurança jurídica, estabelecendo instrumento inidôneo para o registro das diretivas antecipadas dos pacientes. Ainda, solicita a justiça, que o Conselho Federal de Medicina suspenda a resolução. (AÇÃO CIVIL PÚBLICA n. 0001039-86.2013.4.01.3500)

Em decisão, a Justiça Federal entendeu que não foram extrapolados poderes normativos, apenas regulamentada a conduta médica ética perante “a situação fática de o paciente externar sua vontade quanto aos cuidados e tratamentos médicos que deseja receber ou não, hipótese de encontrar em estado terminal e irremediável”, ainda, considerou a resolução constitucional relacionando-a ao princípio da dignidade da pessoa humana. Ademais, conceituou que a manifestação da vontade é livre, conforme disposição do art. 107 do Código, que “somente exige forma especial quando a lei expressamente estabelecer”. (DECISÃO LIMINAR AÇÃO CIVIL PÚBLICA 0001039-86.2013.4.01.3500)

O testamento vital assegura ao indivíduo optar por uma morte assegurada na vontade livre e consciente, disposta a partir de documento personalíssimo, visando proteger a autonomia da vontade, além da dignidade da pessoa que manifestou sua vontade no documento.

Existem casos que chamaram atenção no mundo, um deles foi o de Piergiogio Welby, italiano que sofria de distrofia muscular progressiva, que aos 60 anos, vivendo em função de um respirador artificial, pediu à Justiça italiana que lhe concedesse a oportunidade de desligar o aparelho, porém, seu pedido foi negado. Logo depois o médico anestesista desligou o respirador e foi processado criminalmente, mas a juíza Zaira Secchi o absolveu, argumentando que o médico apenas teria cumprido com a vontade do paciente. (DADALTO, 2012)

A médica geriatra brasileira Ana Claudia Arantes demonstrou sua vontade através de diretrizes antecipadas, em que, no corpo do texto, diz não querer se submeter a UTI por mais de uma semana, não ser submetida à alimentação tubular e não ser reanimada em caso de parada cardíaca. Agora, o médico Bem-Hur Ferraz Neto determina que o seu testamento vital apenas conste o nome do médico que lhe será de confiança, o qual será responsável pelas medidas terapêuticas adotadas, assegurando uma passagem da vida à morte de forma digna e mais confortável possível. (CUMINALE; LOPES, 2012)

Por fim, em meio ao disposto no testamento vital, é de primazia que seja assegurado ao indivíduo que intenciona manifestar-se através de uma diretiva antecipada de vontade, nada mais que a sua vontade, a autonomia em submeter-se a tratamentos que lhe são oportunos, e o respeito dos profissionais da saúde e familiares ao disposto no art. 5º da CF, a dignidade da pessoa humana.

ANEXO

Segue, como anexo, modelos de testamentos vitais da Alemanha (ANEXO 1) e Portugal (ANEXO 2), países que possuem regulamentação legislativa sobre as diretivas antecipadas de vontade, para conhecimento físico do documento abordado no trabalho.

O anexo 1 referente ao testamento vital alemã, é o modelo utilizado pelo banco de testamentos DVZ que armazena o testamento do paciente, podendo este ser solicitado pelos médicos e autoridades competentes.

O anexo 2 indica o documento aprovado pelo governo português, que pode ser encontrado nos postos do sistema de saúde, e após preenchido, será realizada a posterior inscrição do portador no Registro Nacional de Directivas Antecipadas de Vontade- RENDAV-.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Primeiramente, conceituou-se o testamento vital como sendo documento unilateral de manifestação de vontade, enquanto o sujeito capaz goza de todas as suas faculdades mentais, tendo o mesmo surgido na Califórnia, não possuindo legislação específica no Brasil, salvo Resolução do Conselho Federal de Medicina, com texto semelhante ao proposto pela diretiva antecipada de vontade.

Ademais, tratou-se das distinções e semelhanças entre o testamento vital e testamento civil, aceito no Brasil. Ambos constituem atos jurídicos, unilaterais, revogáveis, solenes, gratuitos; porém, apresentam objetivos diferentes, enquanto o testamento civil visa o patrimônio com efeitos post mortem, o testamento vital assegura a integridade física, com efeitos inter vivos.

Posto isso, adentrou – se na indisponibilidade da vida, atrelando à validade do testamento vital com a prerrogativa de proteção a vida. Em suma, tendo em vista a importância da vida, sendo esta um direito fundamental, considerou – se a intervenção do Estado nas situações que tragam risco a integridade física, mesmo que a conduta do poder público atinja outros direitos, como o direito à liberdade.

Por fim, tratou – se de casos de pessoas adeptas ao testamento vital, bem como, a busca pela propagação do direito à liberdade de escolher quais tratamentos médicos lhes são de favor, acordando em todos os pontos o princípio da dignidade da pessoa humana, salientando, casos estrangeiros e abordando a ação civil pública movida pela procuradoria do estado de Goiás contra a decisão do Conselho Federal de Medicina.

O presente estudo, deve como escopo principal esclarecer dúvidas sobre o que viés do testamento vital, pautados no espelho “Proteção a vida”, protegido pela Carta Magna como princípio basilar humano, e “Morte Digna”, principal ponto levantado pelos adeptos do testamento vital.

REFERÊNCIAS

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[1] Paper desenvolvido com o objetivo de garantir aprofundamento acadêmico da disciplina Direito de Família e Sucessões, do curso de Direito (vespertino), da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.

[2] Graduandas do 6º período vespertino do curso de Direito da UNDB.

[3] Professora Orientadora.