TESTAMENTO BIOLÓGICO PARA A UTILIZAÇÃO DE ÓVULOS E SÊMEN POST MORTEM: DIREITO SUCESSÓRIO DO FILHO CONCEBIDO POR INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL POST MORTEM 

 

 

José Orlando Soares Leite Neto

Samuel Jorge Arruda de Melo

Thales de Castro Torres

 

 

SUMÁRIO: Introdução; 1 Do direito sucessório: noções introdutórias e aspectos concernentes à sucessão; 2 Testamento biológico e reprodução assistida: uma alternativa de fertilização post mortem; 3 Do direito à sucessão quando da inseminação via testamento biológico; Considerações Finais.

 

RESUMO

São recorrentes os debates acerca da reprodução assistida e as formas como se apresenta, sobretudo no concernente à inseminação artificial post mortem. Sendo assim, é necessário demonstrar como se dá esse tipo de inseminação, além de demonstrar uma possível relação com o testamento biológico, o qual vem sendo recentemente tratado. Esse tipo de testamento trata da utilização de material genético doado pelo morto, por parte do cônjuge ou convivente ainda vivo. O que acaba se tornando um tema bem controverso. Além disso, é importante caracterizar a sucessão, demonstrando alguns aspectos relevantes desta para que se possa ter um entendimento melhor acerca de como se dá a sucessão quando ocorre o nascimento de um filho (a) advindo da inseminação artificial post mortem. Sendo assim, é importante tratar de alguns dos efeitos que possam vir a ocorrer no direito sucessório desse filho, além de abordar se há algum tratamento específico no ordenamento jurídico brasileiro sobre o tema em questão. Aqui, há um impasse acerca da legitimidade do herdeiro para a sucessão dos bens.

 

Palavras-chave: Prequestionamento. Recurso Extraordinário. Devido Processo Legal. Questão Constitucional. Embargos de Declaração.

 

INTRODUÇÃO

 

O direto tem a capacidade de se permitir moldar consoante as necessidades de cada época. É dinâmico, por assim dizer. Dessa maneira, o Direito de Família e das Sucessões tem sofrido diversas adaptações no que concerne ao procedimento sucessório. Assim, possibilidades até um tempo atrás inimagináveis se fazem presente no mundo jurídico causando efeitos diretos na vida das pessoas e sociedade. Um exemplo prático disso é a possibilidade que hoje existe de realizar a sucessão por meio um de testamento biológico. Indo ainda mais longe, trata-se da possibilidade de realizar uma fecundação post mortem conforme vontade expressa, por parte de alguém, em um testamento biológico.

Serão apresentadas noções acerca da sucessão para fins de instruir o presente artigo. Conforme demonstrado no segundo capítulo deste trabalho, a sucessão é um procedimento que não implica morte, necessariamente. Herança, todavia, requer que o sujeito esteja morto para que possa transmitir obrigações e direitos ao seu herdeiro/sucessor/legatário. Dessa maneira, dar-se-á ênfase, aqui, à possibilidade de gozo do direito sucessório quando da inseminação artificial post mortem.

A expressão post mortem tem tradução literal do latim para o português como “após à morte”. Assim, impende frisas que a inseminação feita quando da morte de um dos pais a fim de gerar filhos é um procedimento ao qual diversas famílias têm recorrido nos últimos anos. Tendo suas origens quando das constantes guerras no Oriente Médio, mais precisamente em Israel, quando soldados deixavam sêmen a fim de que seus pais gerassem netos para si caso morressem, a inseminação post mortem se expandiu pelo mundo inteiro. Todavia, cumpre salientar que o tema gera divergências.

O presente artigo traz em seu bojo elementos que atestam a maneira como essa fertilização tem dividido opiniões. Questiona-se, inclusive, a legitimidade de um filho gerado por testamento biológico para fazer parte da sucessão dos bens do pai/mãe falecido. É válido ressaltar que também se faz comum que mães guardem gametas em bancos apropriados para tanto no mesmo intuito de pais que assim o fazem.

É de curial relevância ressaltar que, acerca do presente tema, há omissões legislativas. Chega a ser compreensível devido à complexidade do tema. No entanto, a doutrina tem se incumbido de gerar entendimentos diversos no que concerne à legitimidade da sucessão quando há inseminação post mortem. Resta comprovada, dessa maneira, a imprescindibilidade da discussão do presente artigo. 

 

1 DO DIREITO SUCESSÓRIO: NOÇÕES INTRODUTÓRIAS E ASPECTOS CONCERNENTES À SUCESSÃO

 

A palavra sucessão tem por significado óbvio a substituição pró-futuro de algo ou de alguém. Sucessão, do latim sub cedere, representa no mundo jurídico a substituição do titular de um direito. Essa é apenas uma explanação superficial acerca da etimologia da palavra. Todavia, é plenamente possível afirmar que, quando o conteúdo e o objeto da relação jurídica permanecem, sendo alterados, entretanto, os sujeitos, houve uma transmissão no direito de Sucessão (VENOSA, 2008).

A sucessão pode decorrer de atos praticados por agentes vivos ou por agentes mortos. Devido à delimitação do presente artigo, dar-se-á ênfase à sucessão quando da morte de um sujeito. No caso em tela, há que se inferir acerca da sucessão que permite a transmissibilidade de obrigações e direitos para os herdeiros e legatários do de cujus. Assim, de início, é possível notar que os atos praticados em vida por um sujeito de direitos são transmissíveis para seus herdeiros – aqui, incluem-se obrigações contraídas em vida, e não apenas herança de bens. É, por assim dizer, direito hereditário.

Venosa (2008) aduz em seus ensinamentos que a sucessão pode ser realizada a título singular ou universal. Essa primeira diz respeito ao legado de um bem determinado ou vários bens de mesma maneira determinados (quem recebe é chamado de legatário). A segunda concerne à herança total de um patrimônio por parte de alguém, incluindo-se aí os direitos e obrigações deixadas pelo sujeito morto (aqui, são os chamados herdeiros). Assim, é fundamental compreender a sucessão sob essas duas perspectivas para entender a maneira como se desdobra no Direito das Sucessões.

Cumpre salientar, contudo, que herança e sucessão não sinônimos. Isto porque a herança decorre, necessariamente, da morte do sujeito que transmite direitos, ao passo que a sucessão pode ocorrer ainda quando o sujeito estiver vivo. Dessa forma, herança pode ser enquadrada no conceito de patrimônio. O patrimônio nada mais é do que o conjunto de direitos reais e obrigacionais do de cujus. É por conta disso que pode-se afirmar: herança é o patrimônio da pessoa falecida, ou seja, do autor da herança (VENOSA, 2008).

No concernente à sucessão, propriamente dita, há três espécies: legítima, testamentária e mista. A legítima, como sugere a nomenclatura, decorre da disposição legal constante do artigo 1786 do Código Civil: Art. 1.786. “A sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade.”

É de curial relevância ressaltar que a sucessão legítima pode ocorrer de maneira subsidiária à testamentária, que, por sua vez, é aquela oriunda de um testamento deixado pelo autor da herança em vida. Isto porque, não havendo testamento, há uma lacuna a ser preenchida. Neste caso, a Lei se encarrega de substituir a vontade testamentária. A terceira espécie de sucessão e, também, autoexplicativa é a mista. Ora, sucessão legítima e testamentárias podem, por assim dizer, conviver de modo a uma suprir a outra.

Como fundamentação ao que foi dito acima, afirma-se que o legado é uma modalidade de sucessão que compete tão somente ao testamento. Isso permite inferir que, não havendo testamento, não há legado (SOBRAL, 2011). Isso, todavia, não impede que haja em um testamento instituições do herdeiro e do legatário. Assim, o testador pode deixar 1/3 da sua herança a alguém e um determinado imóvel a outra pessoa, constituindo, dessa forma, um herdeiro e um legatário (VENOSA, 2008).

Conforme afirmado acima, pretende-se dar ênfase, aqui, à sucessão proveniente da morte de um sujeito. Assim, para que seja feita a transmissão imediata do acervo aos herdeiros, deve ser fixado o tempo exato da morte do de cujus. Neste caso, apenas a morte dará margem à sucessão que se pretende fazer fluir. Essa morte pode ser presumida (nos casos em que a Lei permite tal presunção e decorrido o prazo necessário para tanto) ou conhecida. Uma ressalva importante sobre as duas modalidades supracitadas é que faz-se necessário delimitar o momento da morte. Há que ser fixado no assento de óbito. Somente a partir daí pode haver herança (VENOSA, 2008).

O Código Civil preceitua que ninguém será obrigado a aceitar ou renunciar uma herança: Art. 1.804 e 1085:

“Art. 1804: Aceita a herança, torna-se definitiva a sua transmissão ao herdeiro, desde a abertura da sucessão.

Parágrafo único. A transmissão tem-se por não verificada quando o herdeiro renuncia à herança.

Art. 1.805. A aceitação da herança, quando expressa, faz-se por declaração escrita; quando tácita, há de resultar tão-somente de atos próprios da qualidade de herdeiro.

§ 1o Não exprimem aceitação de herança os atos oficiosos, como o funeral do finado, os meramente conservatórios, ou os de administração e guarda provisória.

§ 2o Não importa igualmente aceitação a cessão gratuita, pura e simples, da herança, aos demais co-herdeiro”

Assim sendo, é pela aceitação, seja tácita ou expressa, o herdeiro demonstra o seu interesse em dar validade e eficácia ao processo sucessório. Venosa (p. 17, 2008) diz que é um ato não receptício, ou seja, dispensa o conhecimento de terceiros para produzir efeitos no mundo civil.  Essa aceitação deve retroagir à data da morte do autor da herança. A renúncia dessa herança, no entanto, necessita da vontade expressa e escrita. Apesar disso, a Lei não menciona a necessidade de haver homologação judicial da renúncia. Deve ser ressaltado, no entanto, que a incapacidade absoluta torna nula a possibilidade de renúncia (SOBRAL, 2011).

Como dito acima, a sucessão legítima acaba tendo maior incidência no Direito Civil do Brasil. No entanto, acerca do testamento, é fundamental tecer algumas considerações. Do Direito Romano, entende-se como testamento “o testemunho justo de nossa mente feito de forma solene para que valha depois de nossa morte” (SOBRAL, 2011). O Código Civil de 1916 diz, no artigo 1916, que o testamento é o ato revogável pelo qual alguém dispõe, no todo ou em parte, seu patrimônio para depois de sua morte (VENOSA, 2008). Assim, resta claro que o testamento é um negócio jurídico, vez que manifesta vontades visando à produção de efeitos. É, ainda, um ato personalíssimo.

Assim, entende-se que o direito sucessório compreende, mais especificamente no presente artigo, à possibilidade de transmissão de patrimônio após à morte do de cujus.  Inclui-se nesse patrimônio tudo o que, em vida, possuía valor para o sujeito morto. Podem ser incluídos bens patrimoniais, pecúnia e, conforme analisado no presente trabalho, até mesmo um testamento post mortem.

                           

2 TESTAMENTO BIOLÓGICO E REPRODUÇÃO ASSISTIDA: UMA ALTERNATIVA DE FERTILIZAÇÃO POST MORTEM

 

Diante da impossibilidade ou dificuldade de se gerar uma criança pelas vias naturais, aqueles que buscam a maternidade ou a paternidade podem se valer da reprodução assistida, a qual pode ser considerada um conjunto de técnicas que objetivam a viabilização da reprodução humana em casos de infertilidade do casal ou de um de seus membros. Tendo como principais exemplos desse tipo de técnica: a inseminação artificial homóloga ou heteróloga, a fecundação in vitro e as chamadas “mães de substituição” (SILVEIRA; NETO, 2012).

De acordo com Silveira e Neto (2012), há dois modos possíveis de fecundação, a heteróloga e a homóloga. Na primeira, o cônjuge ou convivente não tem como fazer uso de seu material genético, sendo necessária a utilização de gametas de um terceiro (doador) para que haja a reprodução. Já na segunda, o material genético inoculado na mulher é o do próprio marido ou companheiro.

A fecundação in vitro é uma técnica sob a qual o material genético do casal é obtido e manuseado em laboratório, ocorrendo a fecundação antes de o embrião ser implantado no útero. Uma das principais características desse tipo de reprodução assistida é que apenas alguns embriões são implantados, sendo os demais mantidos em criopreservação, ou seja, resfriados e congelados, para que possa vim a ser utilizado no futuro. Portanto, em decorrência dos avanços científicos, é plenamente possível que o material sujeito a tal técnica, possa ser utilizado após o falecimento do homem, o que é chamado de reprodução post mortem (SILVEIRA; NETO, 2012).  

Nesse caso, por se tratar de material genético doado em vida pelo falecido marido, a ser utilizado pela viúva, seria a inseminação post mortem com a qualificação de homóloga. Existem também casos em que a receptora faz uso do sêmen de um doador fértil, que já faleceu, e com quem não teve qualquer relação afetiva, tratando-se da inseminação artificial post mortem heteróloga (VIEIRA, 2011).

Para Vieira (2011), tendo em vista a possibilidade de tornar realidade o desejo de ser mãe, mesmo nos casos em que o falecido deixara seu sêmen congelado, surge uma controvérsia acerca de um direito de ter filhos e seus limites, baseados, principalmente, em princípios constitucionais. Um exemplo importante que representa essa discussão diz respeito ao fato de que abrir a possibilidade de um casal recorrer à procriação artificial, e vedar o uso desta técnica a uma pessoa solteira, ou viúva, pode representar uma afronta ao princípio da igualdade.

Vieira (2011) ressalta ainda que, em contraponto, podem vir a ocorrer situações em que o interesse na utilização dos gametas do falecido para a concepção de uma criança pode demonstrar um interesse patrimonial, vez que, dependendo do caso, a criança também possuiria eventuais direitos sucessórios. Diante dos fatos expostos acima é que se vê a relevância dos princípios éticos que norteiam a utilização das técnicas de reprodução assistida.

No Brasil, já foram criados quatro projetos de lei tentando legislar as técnicas de reprodução assistida, entre eles estão: o Projeto de Lei nº 3.638/93; o Projeto de Lei nº 2.855/97; o Projeto de Lei nº 90/99; o Projeto de Lei nº 54/02; todos sem aprovação até o presente momento. A Resolução nº 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina (CFM), revogada pela nº 1.957/2010, disciplina a conduta dos médicos nas Normas Éticas para Utilização das Técnicas de Reprodução Assistida, embora não possua força de lei. Esta resolução trata de forma “rasa” acerca da inseminação post mortem, vez que se trata apenas de um conjunto de normas de caráter essencialmente ético, permitindo não só às mulheres solteiras a inseminação através de sêmen de doador como o uso de sêmen de esposo falecido (LEAL, 2011).

É importante ressaltar que a resolução supracitada acaba não solucionando o problema concernente a reprodução assistida post mortem, pois apenas demonstra, em sua redação, que, esse tipo de reprodução pode ocorrer nos casos em que há a prévia autorização do marido (VIEIRA, 2011).

Desse modo, como há a necessidade de prévia autorização do falecido para que possa ocorrer a inseminação artificial post mortem, pode-se afirmar que um dos exemplos em que essa autorização pode ser demonstrada é o testamento biológico ou testamento genético. Trata-se, nesse tipo de testamento da vontade expressa, em testamento, quanto ao destino de sêmens e óvulos congelados (material genético), os quais serão doados para uma futura inseminação artificial. Esta técnica tem sido definida como um novo instrumento jurídico para o surgimento dos “filhos de herança”, programados “post mortem” para pessoas determinadas (ALVES, 2014).

Ou seja, o testamento biológico trata da concepção de bebês a partir de óvulos ou de sêmen deixados como “herança”, em um testamento, por um dos pais já mortos. A escolha feita pelo próprio testador ou pessoa por ele indicada. Em suma: o material genético passa a se constituir um bem de inventário, destinando-se servir à procriação do (a) falecido(a). Ainda sobre esse tipo de testamento, importante abordar sobre o fato de que inexiste previsão na legislação brasileira (ALVES, 2014).

Essa nova resolução não restringe a possibilidade de inseminação artificial a solução de problemas de infertilidade, abrindo possibilidade, caso se considere que a morte do marido constitui um problema para a reprodução pretendida pela mulher, de que esta faça uso do auxílio médico para engravidar de um filho de seu falecido marido, através da eventual utilização do sêmen congelado antes da morte, lembrando que é necessário prévio consentimento do falecido (VIEIRA, 2011).

Fica claro, assim, por meio dos argumentos expostos acima que não há, no ordenamento jurídico brasileiro, norma expressa que trate exclusivamente desse tipo de inseminação, seja para permitir ou proibir o uso da referida técnica, o que acaba por “alimentar” as inúmeras discussões acerca deste tema (VIEIRA, 2011).

Com relação aos princípios constitucionais, Leal (2011) ressalta que estes estão muito atrelados à questão da reprodução assistida, em razão disso, tem-se que o princípio da dignidade da pessoa humana serve para discutir esse assunto, quando da evolução histórica da família brasileira. Tendo por base esse princípio, é razoável indagar, no que remete aos casos de inseminação post mortem, se é digno o filho ser concebido após a morte do pai, por exemplo, vez que esta questão acaba envolvendo inúmeros questionamentos éticos e jurídicos.

Segundo Leal (p.4, 2011), “sob a ótica emocional, o enfoque polêmico estaria mais voltado aos prejuízos da ausência de um pai. Ou seja, teríamos de um lado o direito à procriação de uma mulher com parceiro falecido e de outro a vida da criança sem a presença de um pai”.

Essas questões devem ser enfrentadas pela ordem jurídica, em conjunto com os demais campos da ciência, já que não há como desvencilhar direito e ciência ao tratar deste assunto. Além disso, é necessário sempre se pautar no aspecto constitucional, orientado pelos princípios da dignidade, da igualdade, da segurança e da justiça, relacionando-os ao direito ao planejamento familiar. No que concerne ao princípio à igualdade, inserido na Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso I, o qual determina que todos deverão ser tratados igualmente, não fazendo distinção entre as pessoas; este acaba por dar fundamento ao fato de que, por exemplo, a viúva poderia igualmente desejar filhos, embora com esposo falecido, desde que esse tivesse seu sêmen previamente congelado (LEAL, 2011).

Da mesma maneira que serve para fundamentar essa vontade da viúva, segundo o princípio da igualdade pode servir também de argumento que inviabilize esse “desejo”, tendo em vista que, a companheira ou cônjuge do falecido, que quer engravidar, “(...) poderia estar agredindo a dignidade alheia ao tentar conceber um filho do de cujus sem seu prévio consentimento, o que poderia gerar desigualdade entre ele e os demais filhos concebidos ainda em vida do falecido” (LEAL, p.5, 2011).  Importante ressaltar que havendo consentimento prévio, seus direitos estariam assegurados.

Leal (2011) demonstra que quanto ao princípio da liberdade, pode-se afirmar que este se manifesta na possibilidade de autodeterminar-se, decidindo o que fazer, como fazer e quando fazer. Entretanto, para se valer desse princípio, é necessário que essa autonomia dada ao ser humano seja agregada à “reserva de lei”, ou seja, para se valer dessa liberdade, é necessário que sejam observadas as leis presentes no ordenamento jurídico brasileiro (tendo como exemplo: a proteção da futura criança e outros interesses públicos). Nesse caso, ao utilizar o material genético após a morte do marido, a viúva estaria exercendo a sua plena liberdade de escolha ao optar por conceber uma criança com pai ausente e sem o suporte afetivo paternal.

O direito à vida fundamenta-se na proteção da vida como bem inestimável e inviolável, englobando o corpo e as suas partes, tanto o corpo físico como psíquico e também o uso do cadáver, inserindo-se aqui a inseminação artificial. Já o planejamento familiar assegura a liberdade de decisão do casal, desde que obedecidos os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, além de respeitar o melhor interesse da criança. Sendo assim, o direito ao planejamento familiar prevê a liberdade quanto à escolha entre ter ou não filhos, quantos filhos ter, entre outros (LEAL, 2011).

Logo, fica claro que a infertilidade humana não pode privar o direito a procriação, entretanto deve pautar-se em limites jurídicos para assegurar essas técnicas de reprodução humana (SILVEIRA; NETO, 2012). Pode-se concluir, então, que, dentro dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade, do direito ao planejamento familiar, do princípio da liberdade, do direito à vida e do direito ao próprio corpo, a concepção post mortem faz parte dos direitos do cidadão (LEAL, 2011).

3 DO DIREITO DE SUCESSÃO QUANDO DA INSEMINAÇÃO VIA TESTAMENTO BIOLÓGICO

Sabe-se, pelo exposto e em vista de todo avanço científico na área da medicina reprodutiva, que é plenamente possível a existência da reprodução após o falecimento do homem. Com os embriões mantidos congelados, mostra-se viável a reprodução post mortem.

O ponto central da questão paira exatamente sobre o direito sucessório dos filhos concebidos sob a égide da supracitada reprodução. Mas é importante salientar que há um visível conflito de normas acerca do tema quanto à reprodução homóloga. Enquanto o art. 1.597, III, dispõe que “presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos havidos por fecundação artificial homóloga, ainda que falecido o cônjuge ou companheiro.” Já o art. 1.798 aduz que “legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”.

Desta forma, encontra-se uma incongruência na redação dos dois dispositivos, o que abre margem para interpretações tanto para o lado que beneficia os filhos, quanto para o lado que não os privilegia, vez que não haviam nem sido concebidos no momento da abertura da sucessão.

Tendo uma visão mais conservadora, Maria Helena Diniz advoga a ideia de que se o casamento extingue-se com a morte, não pode se falar em presunção de paternidade após a morte do cônjuge. Seguindo a linha positivista, a autora aduz que não se poderia os filhos gerados terem direito sucessório se sequer haviam sido concebidos até o momento da morte do pai (p.550, 2009), “filho póstumo não possui legitimação para suceder, visto que foi concebido após o óbito de seu “pai” genético e por isso é afastado da sucessão legítima ou ab intestato”. (DINIZ, Maria Helena. 2009. fls. 550)

É de se ressaltar, porém, que o artigo 227, parágrafo 6º, assegura a igualdade entre filhos, ao trazer que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.” Ou seja, não há qualquer limitação aos direitos dos filhos gerados por fecundação post mortem.

Maria Berenice, por outro lado, cita a resolução nº 1358/92 do Conselho Federal de Medicina, item V: “no momento da criopreservação, os cônjuges ou companheiros devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de algum deles ou de ambos, e quando desejam doá-los.” E continua a autora:

“Na concepção homóloga, não se pode simplesmente reconhecer que a morte opere a revogação do consentimento e impõe a destruição do material genético que se encontra armazenado. O projeto parental iniciou-se com a vida, o que legaliza e legitima a inseminação post mortem. A norma constitucional que consagra a igualdade de filiação não traz qualquer exceção. Assim, presume-se a paternidade do filho concebido depois do falecimento de um dos genitores. Ao nascer, ocupa a primeira classe dos herdeiros necessários.” (p.123, 2011)

Não há duvidas quanto ao fato de o Código Civil ter reconhecido direito de filiação aos filhos concebidos pela fecundação post mortem. Mas houve omissão legislativa quanto aos direitos sucessórios dos filhos. Conforme assevera Venosa:

“Advirta-se, de plano, que o Código de 2002 não autoriza nem regulamenta a reprodução assistida, mas apenas constata lacunosamente a existência da problemática e procura dar solução ao aspecto da paternidade. Toda essa matéria, que é cada vez mais ampla e complexa, deve ser regulada por lei específica, por um estatuto ou microssistema.” (Direito de Família. p. 235, 2011)

Mas o que fazer com o disposto no artigo 1798 e 1799? Os artigos afirmam ser legítimos a herdar apenas “os já nascidos ou concebidos no momento da abertura da sucessão. Ou até os não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abri-se a sucessão.” Destarte, ou segue-se uma linha positivista ou advoga-se pelo princípio da isonomia e igualdade de filiação.

Se for defendida a segunda posição, qual seja a de o filho ter direitos sucessórios, possíveis complicações ocorreriam. Vez que o artigo 1798, CC, trata da hipótese de legitimação a receber aquela herança. Silvio de Salvo Venosa tratou do tema:

“No caso de herdeiros não concebidos, os bens da herança serão confiados, após a partilha ao curador nomeado pelo juiz. Se, após dois anos contados da abertura da sucessão, não nascer o filho esperado, os bens caberão aos herdeiros legítimos, salvo disposição feita em sentido diverso pelo testador. Essa questão prende-se diretamente às inseminações artificiais e fertilização assistida em geral, quando seres humanos podem ser gerados após a morte dos pais.(...) Se não houver previsão testamentária para esses filhos, pelo princípio atual não serão herdeiros.” (Direito de sucessão. p. 54, 2011)

Entretanto, se houve testamento, não há dúvidas que o descendente tem direito ao que foi deixado para ele no ato de última vontade do seu pai. Conforme o artigo 1799, I, poderão ser chamados a suceder “os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão.” Devendo, como requisito final, o herdeiro testamentário estar vivo no momento da abertura da sucessão. E, se não vivo, pelo menos mais dois anos seria acrescido para que ele tivesse direito sucessório, desde que concebido neste último prazo. Conforme dicção legal do artigo 1800, §4º, CC:

“Art. 1800. No caso do inciso I do artigo antecedente, os bens da herança serão confiados, após liquidação ou partilha, a curador nomeado pelo juiz.

§4º Se, decorridos dois anos após a abertura da sucessão, não for concebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrário do testador, caberão aos herdeiros legítimos.”

Percebe-se, assim, que o dilema, na reprodução post mortem homóloga, gira em torno da sucessão ab intestato. Pois se verifica uma omissão legislativa no que diz respeito aos direitos sucessórios da inseminação artificial post mortem. E para que seja suprida é necessária que seja feita uma ponderação de princípios.

Pelo exposto, certamente a balança pesa a favor do filho concebido pelo método mencionado devido à dignidade da pessoa humana, igualdade entre filhos e livre planejamento familiar, principalmente.

Por outro lado, alega-se a insegurança jurídica. Contudo, com a devida vênia, talvez não seja o melhor dos argumentos. Vez que os herdeiros tem o prazo de dez anos (já que não há prazo específico, aplica-se o geral do art. 205, CC), contados a partir da data que completar 16 anos, estabelecido em Lei para a interposição da ação de petição de herança. Dessa forma, acredita-se que deva prevalecer os direitos constitucionalmente garantidos, relacionados à igualdade de filiação.

Conforme conclui Carlos Roberto Gonçalves:

Se na sucessão legítima, são iguais os direitos sucessórios dos filhos, e se o Código Civil de 2002 trata os filhos resultantes de fecundação artificial homóloga, posterior ao falecimento do pai, como tendo sido “concebido na constância do casamento”, não se justifica a exclusão de seus direitos sucessórios. Entendimento contrário conduziria à aceitação da existência, em nosso direito, de filho que não tem direitos sucessórios, em situação incompatível com o proclamado no art. 227, § 6º, da Constituição Federal. (p.76, 2011.)

Há, contudo, de tratar-se do tema mais omisso e sem qualquer resposta na sociedade hodierna. Foi falado do tema de maneira geral e citando, por vezes, a reprodução homóloga, há se de mencionar o dilema do testamento biológico deixado na reprodução post mortem heteróloga.

Não há dúvida que, frente ao anonimato existente na reprodução heteróloga brasileira, os doadores genéticos, em sua enorme maioria, não tem preocupação alguma com seus descendentes. Até porque não há possibilidade do descendente conhecer sua origem genética, vez que o doador apenas deixou seu material genético e autorizou a realização da inseminação artificial.

O direito à identidade genética, desta forma, fica em difícil gozo por parte do descendente. O que há, para dizer que não houve total anonimato, é a Resolução 1957 do CFM que garante, por questões relacionadas à saúde, é o conhecimento pelos médicos dos nomes dos respectivos doadores. Contudo, o descendente fica impossibilitado de descobrir quem é seu pai por ser proibida a violação do sigilo sobre a identidade do fornecedor de gametas.

Tem acontecido, principalmente com casos diversos em Israel, os casos de testamento biológico. A vontade expressa em testamento quanto ao destino de gametas surge com a possibilidade de aqueles filhos terem direitos sucessórios sobre a herança do doador do material genético.

É de fundamental relevância, destarte, a expressa escolha pessoal de quem o doador quer que utilize os sêmens ou óvulos. Caso contrário, ocorre como a grande maioria das doações de gametas, os centros de armazenamento ficam sem saber como proceder, vez que os doadores não deixaram qualquer disposição de como devem agir em caso, por exemplo, de morte do fornecedor.

Mas o que ocorre em casos de inseminação artificial heteróloga com mulheres casadas? Segundo José Roberto Moreira Filho, apud Andrea Aldrovandi e Danielle Galvão de França: “se a mulher casada se submeter a uma fertilização com sêmen do doador (heteróloga) sem o consentimento do marido, a paternidade não poderá lhe ser imputada e constituirá até mesmo causa de dissolução do vinculo matrimonial e de ação negatória de paternidade cumulada com a anulação do registro de nascimento, se houver sido feita enganadamente”.

Destarte, é de suma relevância a anuência de ambos os cônjuges, se forem casados ou estiverem em uma união estável. Se morto for, precisará o cônjuge, por analogia, deixar algum ato de disposição de última vontade autorizando a reprodução assistida de sua esposa.

Esta anuência serve, principalmente, para questões sucessórias. Não poderá o aquele filho ser herdeiro necessário se não houve expresso consentimento por parte do de cujus. Em contrapartida, se o cônjuge deixou disposição concordando com uma eventual reprodução artificial do cônjuge supérstite, seria o filho herdeiro necessário, em homenagem ao princípio da igualdade de filiação.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Com o presente paper foi analisada mais uma problemática causada pela insuficiência legislativa. É cediço que o Direito não acompanha as efêmeras mudanças ocorridas na sociedade, principalmente no que diz respeito às evoluções no ramo da família e sucessões.

Desta forma, é imperioso fazer um estudo sistemático da legislação atual acerca do dilema trazido à baila: os direitos sucessórios de filhos provenientes de inseminação artificial post mortem. Para que, destarte, seja suprida essa deficiência legislativa, ainda que apenas com embates doutrinários e pesquisas acadêmicas, como o paper em tela.

Aprofundando-se ao tema, ficou verificado que é necessário que seja feita uma ponderação principiológica para solucionar os casos concretos. De um lado, tem-se, principalmente, a igualdade de filiação. E o outro é capitaneado pela segurança jurídica, primordialmente.

Como foi citado, essa eventual insegurança jurídica fica mitigada. Porque apesar de não haver expresso prazo para interposição da ação de petição de herança, o Código Civil resolve com a regra geral - de dez anos. E como o prazo não é contado quando em caso de incapacidade plena, só irá se contar a partir dos 16 anos do filho.

Em contrapartida, não há dúvidas que os direitos sucessórios do filho concebido por inseminação artificial após a morte do seu herdeiro devem ser respeitados. Caso contrário, haveria uma evidente ofensa aos princípios garantidos constitucionalmente difundidos na igualdade de filiação. Não podendo, de forma alguma, o filho não ter direito à herança, apenas por uma mera omissão legislativa, vez que, pelo princípio da igualdade de filiação, ele deve ser herdeiro legítimo do de cujus.

REFERÊNCIAS

ALVES, Jônes Figueirêdo. Testamento genético celebra a dignidade da vida. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-mar-15/jones-figueiredo-testamento-genetico-celebra-dignidade-vida>. Acesso em: 11 nov. 2014.

BRASIL. Código Civil. Vade Mecum Saraiva. Ed. Saraiva, 2012.

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