Terá o paciente o direito de decidir pela própria vida?

                                                                       Carlos Henrique de Paula Ferreira

A vida é o bem fundamental do ser humano, junto com a liberdade. Vários autores e filósofos defendem que são os direitos mais importantes de um ser humano, pois sem a vida não há o que se falar em direitos, nem tão pouco os de personalidade. Todo homem tem o direito de viver e, não apenas isso, mas de ter uma vida digna e plena, onde seus valores e necessidades sejam respeitados. Esse direito é inviolável, ninguém poderá ser privado arbitrariamente, caso haja violação, haverá pena de responsabilização criminal. Isto está assegurado pela Constituição Federal no seu artigo 5º e ainda pelo Código Penal do artigo 121 aos 128, que prevê sanções para o indivíduo que violar esse direito.

A opinião sobre a prática da eutanásia é instigante, polêmica, dividindo o entendimento de doutrinadores respeitáveis, que se situam em pólos opostos, com fundamentações prós e contras. Enquanto morrer é uma certeza, viver não é um risco, mas sim um ônus da própria vida.

A vida se identifica com a simples existência biológica e o direito a ela é essencial, sendo personalíssimo, um bem que se tem muito elevado. O direito de viver deve estar associado à conservação da vida, onde o indivíduo possa gerir e defendê-la, não podendo dela dispor, apenas justificando ação lesiva contra a vida em casos de legítima defesa e estado de necessidade. Lembrando ainda que, o suicídio não constitui ato de exercício de um direito, não sendo sua tentativa punida apenas pelas próprias circunstâncias, ou seja, se o sujeito já tentou tirar a própria vida, precisa de ajuda e não de punição.

 O indivíduo tem direitos perante o Estado e este tem a obrigação de se abster de atentar contra a vida do cidadão, sendo um dos direitos de primeira dimensão, direitos negativos, ou seja, aqueles que exigem do Estado a não intervenção na vida do indivíduo. O direito à vida possui íntima ligação com a dignidade, não é apenas o direito de sobreviver, mas de viver com dignidade. Aliás, nossa Constituição Federal de 1988 elege o princípio da dignidade como um dos fundamentos do Estado democrático de direito, senão vejamos:

 

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento:

I – a soberania;

II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V – o pluralismo jurídico.

Parágrafo único. Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição. (Grifo nosso).

           

Observe que a preocupação do legislador constituinte com a dignidade do ser humano era tamanha que a elegeu como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.

Não são os homens que criam a vida e, como não são capazes de criá-la, ninguém deve ter o direito de matar outro ser humano. A vida não é dada pelos homens, pela sociedade ou pelo governo e quem não é capaz de dá-la não deve ter o direito de tirá-la. É preciso lembrar que, é um bem de todas as pessoas de qualquer idade e, de todas as partes desse universo. Nenhum valor humano é superior a ela.

Quando um indivíduo mata o outro por ódio ou vingança ou para obter algum proveito, está cometendo um ato imoral, ofendendo o bem maior, que a nenhum outro se iguala.

É importante destacar que o respeito à vida de uma pessoa não significa apenas não matar ainda com violência, mas também dar a ela a garantia de que todas as suas necessidades fundamentais sejam atendidas. Todos têm o direito de que suas vidas sejam respeitadas. E só existe respeito quando a vida, além de ser mantida, pode ser vivida com dignidade e plenitude.

 

Apanhado sobre a Eutanásia

 

A palavra Eutanásia derivada do grego EU (bom) e THANATOS (morte), significando a boa morte, morte calma, doce e tranqüila. Consiste na prática da morte, visando atenuar o sofrimento do enfermo e de seus familiares, haja vista a sua inevitável morte, sua situação incurável do ponto de vista médico. No Brasil, o atual Código Penal não especifica o crime de eutanásia. O médico que tira a vida de seu paciente por compaixão comete homicídio simples, tipificado no artigo 121 do Código Penal, sujeito à pena de seis a vinte anos de reclusão, ferindo ainda o princípio da inviolabilidade do direito à vida assegurada pela Constituição Federal no artigo 5º.

Por fim, o artigo 15 do Código Civil vigente prescreve que “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”. O constrangimento, segundo De Plácido e Silva é o “ato pelo qual uma pessoa obriga outra a fazer o que não pretende ou não quer fazer, ou a obriga a não fazer o que era de seu desejo ou interesse”. Falar do constrangimento é de fundamental importância para que se possa analisar, com maior clareza, a posição do médico, levando em conta que, há situações onde cabe a ele constranger, ao passo que, há circunstâncias que sua permissão não lhe é aceita e, também conjunturas que concedem ao médico o direito de não ser ele próprio constrangido pelo paciente.

Já no que diz respeito ao risco de vida, a morte em si não é uma possibilidade, mas um evento inexorável e considerando que, risco é a possibilidade de ocorrer algum evento danoso, chega-se à lógica de que o risco não se refere ao resultado, morte, que é uma certeza, mas a um provável momento e a uma provável forma de que tal resultado haverá. Diante de tal expressão, entende-se que o legislador não está se referindo a possibilidade de o paciente perder a vida, ou seja, de morrer.

O ato de disposição do próprio corpo, ainda trata da questão do transplante. O que também está inserido no princípio geral de que ninguém pode ser constrangido à invasão de seu corpo contra sua vontade, senão vejamos o disposto no artigo 13 do Código Civil:

 

“Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes”.

Parágrafo único: O ato revisto neste artigo será admitido para fim de transplantes, na forma estabelecida em lei especial.

           

A lei nº. 9.434 de 4 de fevereiro de 1997, fala da remoção de órgãos, tecidos e parte do corpo humano para fim de transplante e tratamento. Haja vista que, não estão compreendidos entre os tecidos, o sangue, espermatozóide e o óvulo, uma vez que são renováveis no corpo humano, senão vejamos:

 

            Art. 1º A disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes o corpo humano, em vida ou post mortem, para fins de transplantes e tratamento, é permitida na forma desta Lei.

            Parágrafo único. Para efeitos desta Lei, não estão compreendidos entre os tecidos a que se refere esse artigo o sangue, o esperma e o óvulo.

O artigo 4º da lei n° 9.434 de 4 de fevereiro de 1997 dispõe que, a retirada de órgãos  tecidos de pessoas falecidas, dependerá de autorização de seus parentes maiores na linha colateral ou reta, até o segundo grau, ou do cônjuge, firmada por dois documentos subscritos por duas testemunhas presentes a verificação. Um texto anterior a esse artigo trouxe enorme resistência da sociedade tanto que foi substituída pela atual redação, pela lei nº. 10.211 de 2001. O texto original dizia que toda pessoa era doadora, salvo manifestação em contrário e a expressão “Não doadora de órgãos e tecidos”, deveria ser gravada na carteira de identidade ou na Carteira Nacional de Habilitação de quem fizesse essa opção.

Será idônea qualquer manifestação de vontade escrita do doador a respeito da disposição de seus órgãos e tecidos após sua morte, cabendo ao parente ou ao cônjuge autorizar só em caso de omissão de pessoa falecida. Quanto à disposição de tecidos, órgãos ou parte do corpo humano vivo para fim de transplante e tratamento o doador deverá autorizar, de preferência, por escrito e diante de testemunhas. O § 3° da lei nº. 10.211 de 2001 ressalva que, essa doação só pode ter por objetivos órgãos duplos ou parte do órgão, tecido ou parte do corpo, ou seja, se retirado, não impeça o organismo do doador de continuar sua existência sem risco e nem represente comprometimento para sua aptidão. A lei não admite que a doação cause mutilação ou deformação inaceitável.

As intervenções e tratamentos que, segundo os estados de conhecimento e de experiência da medicina, se mostrar indicados e forem levados em conta, de acordo com a “legis artis”, por um médico ou outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debilitar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física.

Os médicos, vez por outra, vêem-se diante de dramática situação gerada pelos fiéis da fé religiosa denominada “Testemunha Jeová”. Esse caso específico de religiosos que não aceitam tratamento médico que envolva infusão de sangue integral em virtude de sua crença traz à tona temas fundamentais com o direito do paciente à escolha terapêutica e principalmente o direito à vida, constitucionalmente defendido.

O direito do paciente que não aceita sangue por convicção religiosa não é diferente de qualquer pessoa de escolher o tipo de tratamento médico que deseja para si, o que se baseia nos princípios constitucionais do direito à vida e livre disponibilidade, dignidade, liberdade de consciência e crença, liberdade de culto, não privação de direitos por motivo de crença religiosa e privacidade.

À luz da Constituição Federal, o paciente tem pleno direito de recusar um determinado tratamento médico, com fundamento no artigo 5°, II, que reza que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo (autonomia da vontade), salvo em virtude de lei (legalidade). No caso de transfusão sangüínea, como não há lei que obrigue a optar por ela como tratamento para certo caso, a recusa será legítima e deverá ser respeitada. E se não há lei que determine, não será o Judiciário e, muito menos, a classe médica que determinará tal procedimento, salvo por consentimento do paciente.

A recusa a certo tratamento que se baseie estritamente em crenças religiosas ou filosóficas deve ser respeitada da mesma forma, por imposição dos incisos VI, VIII do artigo 5º da Constituição Federal que garantem a liberdade de crença e consciência. Ainda que, não seja a opção terapêutica preferida pelo médico, prevalece a vontade do paciente acima da decisão puramente técnica e profissional, por força do preceito constitucional.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias;

VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta a recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.

A Constituição Federal ao assegurar a inviolabilidade do direito à vida não quis proteger somente seu aspecto material, integridade física, mas também os aspectos espirituais que envolvam a vida de uma pessoa. O direito à vida, constitucionalmente defendido, envolve não apenas os elementos materiais biológicos da pessoa, mas também os morais, emocionais e espirituais que, altamente lhes serão atingidos caso seja procedido o tratamento como o uso de sangue, sem o seu consentimento. Isto porque, para os religiosos da fé Testemunha Jeová, que acatam tais entendimentos, esta questão envolve os princípios mais fundamentais nos quais se baseia sua vida, sendo que a recusa às transfusões em uma regra e conduta a ser observada ainda que a sociedade a ignore ou menospreze. Ao recusar o tratamento com hemotransfusão o paciente não está fazendo nada de invocar o próprio direito constitucional à vida, uma vez que esta também engloba os conceitos pessoais que decorrem dos valores e cultura de cada um. Os aspectos materiais ou espirituais são atribuídos sem os quais a pessoa fica reduzida a uma condição de pequena significação sem diferenciação dos demais animais. Sendo assim, os direitos fundamentais não devem jamais sobrepor, mas sim, serem aplicados em conjunto, visando o preceito maior garantido pela Constituição Federal, que é a dignidade da pessoa. Em termos práticos, o resultado final da prestação jurisdicional e da terapia médica a ser aplicada deve ser a dignidade e bem estar do paciente ativada à cena.

É digno notar que, considerável parcela da classe médica, em respeito ao direito falado, aqui defendido e, ao princípio bioético da autonomia, do consentimento infamado e beneficência em desenvolvimento técnico é capaz de conciliar cinco métodos terapêuticos com a vontade do paciente.

Portanto, as conseqüências jurídicas só surgirão no caso de atuação médica sem consentimento e, o efeito danoso se dará por agir sem autorização, pelo qual responderá por perdas e danos. Diante disso, a comunidade jurídica deve estar atenta a tais mudanças na sociedade, fazendo valer os direitos dos cidadãos na sua plenitude, e acima de tudo, respeitando seu direito constitucional fundamental, que é viver dignamente como ser humano.

 

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