TEORIAS FILOSÓFICAS E A AMBIGUIDADE EM TORNO DA IDENTIDADE DO MESTIÇO

ALEXANDRE VALDEMAR DA ROSA – ESPECIALISTA EM HISTÓRIA (UNESC)

CLEDEMILSON DOS SANTOS – MESTRANDO EM EDUCAÇÃO (UNESC)

LUCIANE V. DE MEDEIROS – ESPECIALISTA EM EDUCAÇÃO (UCB-RJ) 

A pouco mais de um ano, Oslo, a linda capital norueguesa testemunhou uma grande tragédia, a maior vivenciada pelo país desde a Segunda Guerra Mundial, ou seja, a chacina de 77 pessoas, a maioria jovens estudantes.

Você deve estar se perguntando; qual a relação existente entre esta atrocidade e a temática em questão.

Pois bem, fascinado pelos ideais nazistas, Anders Behring Breivik, 32 anos, teria afirmado, entre os vários motivos para justificar sua monstruosidade, que a mistura de raças (miscigenação) traria consequências catastróficas à humanidade. E o mais intrigante, dias antes do ocorrido, Breivik havia publicado na internet um longo manifesto de 1500 páginas intitulado “2083 – Uma declaração de independência européia”. Mas, para nossa surpresa, o Brasil, lamentavelmente estava inserido neste contexto como uma nação atrasada em decorrência da miscigenação. Loucura, não?

Embora a ideologia de cunho racista defendida por Breivik seja interpretada como insana, historicamente ela tem embasamento teórico, basta analisarmos as teorias apresentadas sobre este assunto pelos famosos filósofos das luzes: Voltaire, Buffon, Diderot, Maupertuis, Long e Leseallier. Indubitavelmente, estes nomes, são os grandes formadores de opinião do período escravista.

Assim, desse prelúdio, a união entre duas “raças” distintas era visto por Voltaire como uma verdadeira aberração e que o mestiço nada mais é do que o fruto da união bastarda e ao mesmo tempo acidental entre um negro e um branco ou vice versa. Buffon, diferente de Voltaire, não via anormalidade no envolvimento entre pessoas de “pigmento diferente”, porque para ele nosso planeta há séculos já vinha sendo povoado por mestiços. Nesse sentido, para o francês, a mestiçagem “era o meio mais rápido de reconduzir a espécie humana a seus traços originais e reintegrar a natureza do homem: bastariam, por exemplo, quatro gerações de cruzamentos sucessivos com o branco para que o mestiço perdesse os traços degenerados do negro” (MUNANGA, 2004, p.28).

Compartilhando dos mesmos ideais de Buffon, Lacerda (apud Munanga, 2004, p.28) também acreditava que “dentro de seis ou sete séculos o processo de branqueamento extinguiria os negros, índios e mestiços da face da terra, desde que toda a miscigenação futura incluísse um parceiro extremamente claro, isto é, um branco”. Por outro lado, o naturalista Diderot afirmava que a miscigenação havia sido uma das mais importantes criações de Deus e que o indivíduo fruto do hibridismo não seria mais um ser intermediário, “pois ele está entre a matéria bruta e o vegetal, o vegetal e o animal, o animal e o homem, entre o homem e o homem” (MUNANGA, 2004, p.261).

                          Com base na concepção da teoria cultural contemporânea, o hibridismo é a comunicação entre as diferentes nacionalidades, etnias ou raças. Através do advento de estudos em torno desta questão, a ideia que se acreditava ser única sobre as identidades étnicas ou raciais acabaram perdendo o sentido. Ademais, se compartilharmos da visão hibridista a identidade do mestiço não seria unicamente voltada para africanidade ou à cultura européia, embora guarde traços delas, ela será constituída por uma identificação totalmente diferente. Assim, surgirá dessa miscigenação um indivíduo constituído de uma nova identificação que, por sua vez, será capaz de se auto-identificar, deixando de lado sua antiga ambiguidade identitária. “Os processos de hibridização analisado pela teoria cultural contemporânea surgem das relações conflituosas entre diferentes grupos nacionais, raciais e étnicos, estando estes ligados a história de ocupação, colonização e de destruição” (SILVA, 2000, p.87).

No século XVIII (1745), Maupertuis desenvolveu o princípio da epigéia, alegando que os híbridos tinham a possibilidade de existência teórica, ou seja, toda união envolvendo a participação de um macho e uma fêmea poderia ser vista como mestiçagem. Oito anos após ter idealizado tal conceito, Maupertuis voltou a chamar a atenção da Europa ao acreditar que do cruzamento de espécies diferentes resultaria o surgimento de um monstro.

Edward Long, antigo proprietário de escravos na Jamaica, e Kant indagaram opiniões diferentes, quando a mestiçagem era o assunto em questão. Long defendia o entendimento de que negros e brancos pertenciam a origens diferentes, constituindo assim espécies distintas, tendo em comum somente o mesmo gênero, isto é, o gênero humano. Em contra partida, Kant opinou em dois momentos sobre a problemática envolvendo este assunto, em 1775 e 1785. No primeiro momento ele afirmou que a união entre grupos etnicamente distintos resultaria no surgimento de filhos bastardos, contudo, dez anos após proferir tais palavras, Kant novamente chamaria a atenção do velho mundo ao dizer que a miscigenação em “determinada proporção poderia remeter ao novo tipo de humano original”.

 Esse posicionamento por parte desses filósofos, em relação à mestiçagem, trouxeram conseqüências nada animadora para o indivíduo mestiço. Problemas estes sentidos até o presente momento. No Brasil, por exemplo, algumas destas teorias foram adotadas por políticos e estudiosos que indicariam o branqueamento como a solução racial para o país desenvolver-se. Nesse sentido, ao findar a guerra do Paraguai e com a proximidade da abolição, o governo brasileiro iniciava de forma gradual a política do branqueamento ao incentivar a importação de mão-de-obra europeia.

Não demorou muito tempo para que os imigrantes europeus representassem uma grande parcela do trabalho braçal no país, desenvolvendo novas técnicas para a aplicação do serviço, tanto na cidade, quanto do campo. Segundo Chiavenato (1993, p.28), “para ser admitido nas modernas empresas que estavam sendo criadas no Brasil com o dinheiro desviado do tráfico, o negro precisava ficar mestiço”. Entretanto, mesmo se tornando mestiço, os europeus influenciados pelas teorias dos filósofos das luzes alegavam que os negros não tinham condições psicológicas e muito menos responsabilidade para integrar-se aos modelos de produção tão modernos. Isso fez com que os mestiços se tornassem, no século XIX, uma espécie de suplentes da mão-de-obra imigrante. Logo, “as luzes” que iluminavam a Europa durante os séculos XVIII, na América Latina, do século seguinte, trouxeram muita escuridão ao sujeito mestiço. A este respeito Munanga (2004, p.124) presta-nos o seguinte esclarecimento: “na segunda metade do século XVIII a política do branqueamento ganhou ares de ideologia colorista, voltada para os sujeitos não brancos”. Como conseqüência, as referidas ideias promoveram entre o negro e o mestiço um tipo de hierarquização, ou seja, quanto mais clara for a sua pele/pigmento, mais valorizado será esse camarada perante a sociedade em que ele estiver inserido.

Esta concepção colorista é materializada no processo de independência da antiga colônia francesa no caribe, o Haiti. Durante décadas, este pequeno país carregou o título que hoje pertence ao Brasil, de nação com o maior contingente de negros fora da África.

No século XVIII, o Haiti tornou-se a única colônia a produzir ao mesmo tempo açúcar, café, anil e algodão em larga escala, riqueza tão grande que a França, quando derrotada pela Inglaterra, preferiu ceder em 1763 a colônia do Canadá do que perder a do Haiti. De acordo com Grondin (1985, p.88), “após os indígenas caribenhos serem exterminados, cerca de 240 mil negros foram trazidos da África nos 200 anos anterior a independência haitiana”. A população negra desenvolveu na ilha um idioma, o creóle, falado por 98% dos habitantes considerados pobres, no entanto, a burguesia que detinha o poder falava o francês. O historiador ainda explica que a distinção de classe social no Haiti foi descaradamente expressa na fala de um ditador haitiano pronunciante que “negro rico é mestiço e mestiço pobre é negro”. O poder econômico e o controle da supremacia política foram sempre o estopim dos conflitos locais, razão pela qual, milhares de haitianos tiveram suas vidas ceifadas.

As constantes mudanças de governo proporcionaram a hierarquização entre sujeitos do mesmo sangue, ou seja, negros e mestiços. Um dos motivos preponderantes para o surgimento do conflito teria sido a crise de identidade, isso porque enquanto os mestiços identificavam-se com o ideal colonizador, isto é, os franceses, os negros associavam-se aos marginalizados. O vodu e o creóle (a religião e o idioma) representavam simbolicamente a identidade da população negra da ilha.

No Brasil, se analisarmos o problema histórico envolvendo a questão da formação da identidade do mestiço, perceberemos que esta situação não decorre de uma simples questão de “cor de pele”. A ambiguidade que perpassa o mestiço brasileiro, ao não conseguir identificar-se nem como indivíduo afrodescendente e tampouco como uma pessoa branca, é um transtorno que se arrasta em nossa cultura por gerações. Identidade no entender de Ciampa (1984, p.58) “não se definem por características de indivíduos, mas por relações entre indivíduos, sempre em movimento, daí se pode dizer que identidade é metamorfózica”.

Ademais, para determinados pesquisadores, o mestiço sente na pele o peso da discriminação e do preconceito muito mais do que o afrodescendente, isto graças ao dualismo presente em seu cotidiano. Por este motivo são freqüentes os apelidos de conotação pejorativa do tipo negro do Paraguai, meio termo, café com leite, raça indefinida, sarará, lua minguante entre outros.

Como podemos perceber vários fatores contribuíram para o surgimento do enigmático problema no qual o mestiço está inserido: a busca por sua real identidade. Será, então, que existe uma definição, ou não, em torno deste assunto?

Sim.

A resposta é oportunizada através de Munanga e Gomes (2006, p.197). Ambos afirmam que “os mestiços preferem adotar a identidade dos negros por uma questão de solidariedade política, tendo em vista a exclusão social sofrida por ambos no transcorrer da história”.

Dessa forma, conforme vislumbrado trata-se de uma história marcada pela incessante luta por uma sociedade mais justa e igualitária. Afinal, a grande aspiração do afrodescendente é acabar com o racismo, pois, amplamente consabido, melhor esclarecido por Nelson Mandela, “ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, podem também ser ensinadas a amar” (Munanga e Gomes, 2006. P.197).

PARA SABER MAIS 

CHIAVENATO, Julio José. O negro no Brasil: da senzala a guerra do Paraguai. São Paulo: Brasiliense, 1993. 

CIAMPA, Antônio da Costa. Identidade. São Paulo: Brasiliense, 1984. 

GRONDIN, Marcelo. Haiti: cultura, poder e desenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1985. 

MUNANGA, Kabengele; GOMES, Nina Lino. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global, 2006. 

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2004. 

SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.