É estranho como a memória involuntária dá importância a certos episódios desimportantes, que ficam emergindo do subconsciente para a consciência com inexplicável freqüência. Era o caso desse incidenteem particular. Certodia, no trabalho, Juliana foi ao encontro de Marcio e o tocou. A cena durou poucos segundos e se desfez sem deixar impressão nas pessoas presentes, porque nada de especial acontecera. Ou acontecera? Marcio ficou surpreso e confuso com a atitude da moça. Eles eram colegas de serviço e se conheciam há pouco tempo. Instalados com várias outras pessoas em uma sala acanhada, cada um com seu computador, distantes um do outro. Nunca haviam trocado mais que umas poucas palavras.

 (É mais difícil do que se pensa determinar as razões que levam alguém a se interessar amorosamente por outro. Os atrativos físicos explicam boa parte dos casos, mas não todos. É impossível prever se uma determinada pessoa se interessará por outra, em que momento específico e o motivo exato. Muitas vezes o alvo do desejo não é o mais dotado de atributos físicos objetivamente considerados e, no entanto, é escolhido mesmo assim. Uma palavra, um olhar, uma inflexão de voz ou outro detalhe aparentemente insignificante pode daí início a relações de grande significação.)

Marcio era um tipo introvertido e arredio, falava pouco e limitava as relações sociais ao mínimo suficiente para não ficar mal visto no grupo – sem muito êxito. Juliana, ao contrário, era desembaraçada e sociável, mas de um jeito encantadoramente discreto. Ela era mais jovem do que ele. Não tinham interesses comuns ou, tanto quanto se poderia supor, sequer motivos para se interessar em saber se tinham interesses comuns.
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Ele ajudara a colega com informações de que ela precisava para elaborar um documento, uma gentileza de rotina naquele ambiente coletivo em que todos estavam solicitando ajuda e se ajudando o tempo todo. Dessa vez, porém, o agradecimento de Juliana não fora rotineiro, ou pelo menos assim pareceu a Marcio. Ela se dirigiu ao colega, agradeceu de uma forma um tanto desproporcional ao ato e se apoiou carinhosamente em seu ombro.

(A relação que se instaura quando uma paquera é iniciada é muito tênue e, para um observador externo, quase indiscernível das condutas sociais corriqueiras. Por baixo da aparência de normalidade, uma ligação psicológica, mais ou menos densa, se desdobra em uma comunicação fugidia. Sinais de interpretação por vezes difícil são emitidos de parte a parte, as intenções ficam mais encerradas na mente do que expressadas em atitudes inequívocas.)

Como não havia razões para que a menina se interessasse por ele, Marcio procurou descartar a possibilidade de um flerte. Não fazia o tipo sedutor. Nem sequer se sentia atraente. Juliana não estava comprometida, tanto quanto Marcio sabia, mas ele era casado. Evitava conversar muito com as diversas mulheres bonitas que circulavam no local de trabalho. Evitava até olhar para elas. Mas não há como não notar que mulheres bonitas são bonitas. Juliana era muito bonita.

Juliana talvez tivesse iniciado uma paquera, talvez não. Marcio não chegou a nenhuma conclusão e não pensou mais no assunto. Ao menos não conscientemente, porque de vez em quando aquele episódio emergia não se sabe de onde para a superfície de sua consciência. De toda maneira, na dúvida se o jogo existia, ele não fez seu lance. Na verdade, nesse momento ele não teria jogado mesmo que estivesse certo do interesse da Juliana. Mas chegaria o dia em que Marcio se sentiria encantado pela presença da jovem.

(De certo modo, a paquera é também um jogo que se deve jogar com cautela, intuindo o momento exato de fazer o lance e esperar a resposta. Um movimento em falso pode pôr tudo a perder. Embora as características sejam mais ou menos constantes, o tempo é surpreendentemente variável, podendo se resolver em poucos minutos ou se arrastar por meses, às vezes anos.)

Vários meses se passaram sem incidentes, exceto um episódio que somente depois adquiriu importância. Marcio costumava ouvir música no fone de ouvido para se desligar das conversas dos colegas e se concentrar no trabalho. Certa vez, Juliana perguntou-lhe algo, que ele não ouviu. Ela então foi até Marcio e o interpelou. Ele retirou o fone e a atendeu. O caso deixou-lhe forte impressão, não pela relevância do assunto, na verdade nenhuma. Mas a expressão séria, ligeiramente irritada, da moça, que ressaltava a luminosa beleza do seu olhar, isto, sim, foi importante. Essa cena ficou impressa no espírito de Marcio.
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Certo dia, uma colega foi chamada para um emprego melhor em outro estado. Era a pessoa mais próxima de Juliana, com quem fazia eficiente dupla no trabalho e de quem ficara muito amiga. O almoço de despedida da menina, com vinte pessoas, foi um daqueles eventos a que o esquivo Marcio não podia deixar de ir.

Ele foi e, por acaso, Marcio e Juliana se sentaram frente a frente na mesa do restaurante. Poderia ser a ocasião propícia para reavivar as brasas apagadas da paquera, mas não foi. Nenhum dos dois estava feliz ali. Ele estava amuado e deslocado, como ficava em situações sociais dessa espécie. Ela estava triste com a partida da amiga e apreensiva com os reflexos disso no seu trabalho. Não estava para paqueras. Ou pelo menos foi o que Marcio concluiu da expressão grave e das poucas palavras da moça.

Marcio guardou lembranças afetuosas desse dia. Foi a primeira vez que observou Juliana detidamente. Não podia ser de outro modo já que ela estava sentada bem à sua frente. Era pequena, leve e esbelta, bem feita de corpo, mas longe do tipo sarado e bombado da moda – que ele detestava. A pele branca, aqui e ali salpicada de sardas. Os cabelos loiros de um tom dourado, lisos, abaixo dos ombros, mas que nesse dia ela usava presos num coque na parte de trás da cabeça – penteado que a deixava absolutamente linda. O rosto era algo arredondado e as feições delicadas. Trajava-se com elegante simplicidade. Seus gestos eram discretamente graciosos e a voz, mais imponente do que se poderia supor em sua figura frágil, era melodiosa e agradável. De todas as impressões que dela colhia Marcio julgava entrever integridade de caráter, inteligência, sensibilidade romântica.

Mas os olhos claros, de cor misteriosamente inexata, eram o que Juliana tinha de mais belo. Muitas vezes Marcio consultou as imagens mentais que tinha da moça, tentando inutilmente definir a cor daqueles olhos – algo entre cinza, mel e âmbar. Não eram só bonitos; eram olhos expressivos como Marcio jamais vira. O olhar de Juliana emitia um misto de severidade e doçura – talvez um pouquinho mais daquela do que desta -, com cativantes traços de tristeza. Talvez esse fosse um ponto em comum entre os dois, pois Marcio tinha na alma uma parte irremediavelmente triste. Mesmo quando Juliana sorria – o que não ocorria com tanta freqüência -, a gravidade espelhada em seus olhos não desaparecia, apenas diminuía.

(O momento em que o protagonista se dá conta de que determinada pessoa tem encantos suficientes para iniciar uma paquera varia muito, podendo ser imediato – o que se chama de “amor à primeira vista” - ou bastante posterior ao primeiro contato. Neste caso, é comum que as impressões dos atrativos do outro se acumulem imperceptivelmente na memória até que o processo resulte em súbita tomada de consciência do interesse amoroso – e as memórias acumuladas ganham novo realce, em retrospecto, à luz do sentimento amadurecido.)

Marcio, porém, não percebeu naquela ocasião o quanto o olhar sério de Juliana o fascinava. Desse sentimento, a princípio difuso, ele foi tomando consciência nos dias que seguiram, na medida em que a figura da moça começou a aparecer mais e mais em sua mente. Mas isso veio depois. No restaurante, Marcio teve a delicadeza de controlar seu mau humor, perceber o desalento de Juliana e tentar animá-la conversando sobre coisas agradáveis e dizendo uma ou outra gaiatice para alegrá-la. Desse dia em diante, o ritmo da história, até então arrastado, se precipitou.

(A paquera pode ser tão sutil a ponto de beirar o imaginário, ou seja, pode ser unilateral e, portanto, nem existir como relação. Não é raro supor-se reciprocidade em amores que se revelam dolorosamente não correspondidos. Da impossibilidade de se ler a mente da pessoa desejada decorre o risco inevitável do erro de avaliação e da desilusão amorosa)

O acaso, como se conduzido por um guia oculto, continuou a conspirar contra a tranqüilidade sentimental de Marcio. Ele chegava bem cedo no serviço, assim como Juliana, mas outros colegas também seguiam o mesmo horário, de modo que nossos protagonistas nunca estavam sozinhos. Naquela semana, contudo, o turno matinal sofreu baixas. Uma funcionária tirou férias, outro adoeceu e uma terceira teve problemas com os filhos. Pela primeira vez, Marcio e Juliana se viram sós naquela sala. Nunca por mais de quinze ou vinte minutos, é verdade, pois logo chegava gente. Mas era tempo suficiente. Suficiente para quê? Marcio não sabia. Ele não tinha objetivos ou planos. As coisas foram acontecendo ao sabor do momento.

(Na paquera o papel do fortuito pode ser tão importante e decisivo quando o da vontade consciente dos participantes. Nos estágios iniciais da relação, até mais importante, o que reduz substancialmente o poder preditivo de uma teoria geral do fenômeno. O livre jogo dos acontecimentos põe em contato os potenciais candidatos ao flerte e detalhes imprevisíveis podem decidir se ele ocorrerá ou não e, uma vez iniciado, se prosseguirá ou não.)

Foram três dias seguidos. Ele chegava primeiro e torcia com ansiedade adolescente para que ela aparecesse antes de outro colega. A angústia cedia lugar a uma felicidade aflita quando Juliana decorava o lugar com sua presença suave. Marcio desfrutava daqueles poucos minutos e, depois que a sala ficava cheia, sentia-se alegre só por escutá-la e vê-la com o canto do olho. Desencavou, sem querer, lembranças da terceira ou quarta série da escola, quando se apaixonara pela primeira vez, por uma loirinha de cabelos compridos e olhos de um azul translúcido. Parecida com Juliana.

Marcio e Juliana se conheceram melhor nesses curtos lapsos de tempo. Nada de impróprio foi dito de parte a parte. A forma desses diálogos teve mais importância para Márcio do que o conteúdo. Ele se deixou cativar pelo modo simultaneamente vulnerável e firme da jovem, por sua voz e sobretudo pelo seu olhar. O sentimento pela moça se apoderou de Marcio como uma febre e ele já não sabia se discernira efetivamente interesse dela por ele ou se tudo não passava de um delírio.

(A insegurança quanto às intenções do outro é um aspecto incontornável da paquera e constante fonte de angústia para os protagonistas, que têm pleno acesso aos próprios sentimentos, porém nenhum aos do outro. A mente do alvo do desejo é impenetrável, restando a precária adivinhação de intenções em gestos e sinais como solução insatisfatória de um problema intratável.)

No quarto dia, Marcio estava em seu lugar quando Juliana chegou. Ela se sentou e o cumprimentou com um cintilante sorriso acompanhado daquele olhar que já ocupara seu espírito sem a menor cerimônia. Foi um daqueles momentos inesquecíveis que os poetas de todas as épocas cantam em seus versos. Marcio sentiu-se iluminado pelos olhos claros de Juliana e extasiado ao ouvi-la pronunciar seu nome. Não tentou impedir que as palavras que brotaram espontaneamente do seu coração escapassem de seus lábios: “Como você está bonita, Juliana!” Disse a frase com o arrebatamento inconfundível de uma declaração de amor.

Surpresa e visivelmente abalada, Juliana balbuciou um “obrigada” e se calou. Não sabia como reagir diante de atitude tão inesperada e imprópria. Era natural que não soubesse, porque naquele instante todas as convenções sociais entre colegas de trabalho – e até mesmo as normas das paqueras “normais” - tinham sido rudemente postas de lado pela conduta abrupta de Marcio. Eles estavam sozinhos e ela não sabia o que esperar. Um silêncio constrangedor se seguiu, que Marcio teve o bom senso de quebrar puxando conversa sobre um assunto qualquer. Juliana respondeu como se nada tivesse acontecido, mas seu olhar agora era distante e o sorriso desaparecera. Na aparência, ao menos, a ordem normal das coisas voltara a envolvê-los, o que representava um alívio para ambos. Outras pessoas chegaram e o episódio terminou.

(A constatação de que o interesse amoroso do outro era apenas imaginado é, em geral, uma experiência muito desagradável, que pode deixar marcas na personalidade. A paquera na qual se fizera um alto investimento psicológico era apenas um sonho bom do qual se desperta mais ou menos drasticamente com a triste consciência do desinteresse da pessoa desejada. Esse vexame sentimental é tão comum que pode ser considerado um rito de passagem na vida amorosa.)

Marcio e Juliana não voltaram a conversar naquele dia, nem trocaram mais olhares. Ele sabia que agira de modo inadequado e embaraçoso, mas não estava arrependido. Seu afeto pela moça crescera tanto naqueles dias que tinha que extravasar. Teria sido melhor de outro jeito, talvez um convite para almoçar. Porém, com o espírito perturbado pelos dilemas que a situação provocava, ele não conseguia pensar de modo claro e conceber um plano coerente de ação, fosse para prosseguir a paquera ou para interrompê-la. Marcio deixou-se conduzir pelos acontecimentos mais uma vez.

(A paquera é um processo que começa com sinais e insinuações, porém, sob pena de definhar e morrer, em algum momento precisa entrar no terreno da ação concreta e aberta. O tempo que levará até que essa transição do semi-imaginário para o real se complete depende de variáveis como o grau de interesse dos protagonistas – a relação pode não ser forte o bastante para passar de um estágio a outro - e o desembaraço deles – a timidez excessiva, por exemplo, pode atrasar muito ou mesmo impedir que essa transição ocorra.)

O pessoal do trabalho combinara um chope para a noite posterior, o que ocorria com certa regularidade. Como Marcio nunca ia a esses eventos, nem era mais convidado. Juliana era convidada, mas não ia sempre, porque morava longe do centro da cidade e não gostava de voltar sozinha à noite para casa. Naquela manhã, Juliana se atrasou muito e alguns colegas estranharam, manifestando preocupação.

O mais preocupado – secretamente - era Marcio. A ação do dia anterior, embora inábil, tivera o mérito de mostrar a Juliana o inequívoco interesse do rapaz por ela. A seu modo desajeitado, ele aceitara participar do jogo – real ou imaginário - e fizera seu lance. A moça tivera tempo para refletir sobre o ocorrido e, por assim dizer, era sua vez de jogar. Marcio procurou antecipar como ela reagiria.

Os pensamentos desordenados de Marcio naquela manhã poderiam ser organizados ao modo de uma questão de prova escolar. As opções de Juliana seriam:

Opção A – O flerte não existia senão na imaginação de Marcio, tanto que Juliana, ignorando solenemente o caso, nem tomaria conhecimento do interesse do rapaz.

Opção B - O flerte não existia, mas Juliana, percebendo a iniciativa de Marcio, lhe daria um discreto gelo, deixando claro seu desinteresse e encerrando o caso da forma mais delicada e menos desgastante possível.

Opção C - O flerte não existira, Juliana apenas tratara Marcio com a mesma simpatia que dirigia aos outros colegas e tudo não passara de um mal-entendido, de modo que ela o chamaria para uma conversa reservada para pôr tudo em pratos limpos.

Opção D – O flerte existira, porém o interesse de Juliana tinha sido superficial e passageiro, de modo que a resposta exagerada de Marcio e o fato de ele ser casado levariam a moça a decidir romper a paquera para evitar complicações em sua vida.

Opção E – O flerte existia e o interesse de Juliana por Marcio era tão intenso quanto o dele por ela, ou pelo menos forte o bastante para fazer a relação prosseguir, de forma que, segura dos sentimentos do rapaz, ela o incentivaria a prosseguir na paquera de algum jeito sutil e discreto, como era de seu feitio.

Quando Juliana apareceu já passava das onze. Ela entrou na sala de um jeito um tanto diferente do costumeiro – uma entrada quase triunfal. Anunciou a todos os presentes que iria ao chope daquela noite, daí ter chegado tarde. Apregoou – Marcio achou esse o verbo adequado – também que ficaria na sala particular do chefe, que saíra de férias. Convidou os presentes a visitá-la na tal sala – onde estaria sozinha.

Juliana parecia mais feliz do que de costume, até efusiva. Não se dirigiu a Márcio em particular e nem sequer o olhou. Mais uma vez ele se sentiu confuso. O comportamento da moça poderia se enquadrar na opção A da “questão de prova” que angustiava Marcio, ou seja, nem tomara conhecimento do turbilhão sentimental do rapaz, nem de sua desastrada iniciativa amorosa.

Mas também poderia ser a alternativa “E”. Juliana poderia estar insinuando que o convite genérico para visitas na sala particular, na verdade, dirigia-se muito especialmente a Marcio, que ele seria bem-vindo lá e também, quem sabe, no evento daquela noite. O instinto do rapaz indicava que esse era o caso, que Juliana estava respondendo positivamente ao seu movimento do dia anterior, que ela se interessara efetivamente por ele.

Até aquele instante, hipnotizado pelo olhar de Juliana, Marcio se deixara arrastar pelos fato. Daí por diante, porém, não podia mais ser assim. Ele teria que fazer escolhas, tomar decisões e enfrentar as conseqüências. Fosse solteiro, não hesitaria em aproveitar a oportunidade, arriscar tudo e se declarar para a moça do modo menos desajeitado possível, naquele dia mesmo. Mas Marcio não podia ajustar a cronologia de sua vida à de Juliana. O processo iniciado meses antes aproximou-se, então, de um impasse. Ele não visitou Juliana naquela tarde e não foi ao chope.

O fim de semana de Marcio foi tenso. Ele não deixou de pensar na moça um só instante. Sonhou que a via sozinha em uma sala e depois em outra e em outra, pensava em entrar, queria beijá-la, mas sempre algo impedia que ficassem sós. Via Juliana em qualquer moça de cabelos loiros. Estava apaixonado e a febre ardia agora no ponto máximo. Queria tomar as rédeas da situação, decidir o que fazer de cabeça fria, mas não conseguia.

(O momento de passar da intenção à ação no processo da paquera é fonte de stress psicológico mais ou menos intenso, de acordo com o grau de introversão ou extroversão do protagonista. Nos indivíduos naturalmente desembaraçados – que não são necessariamente os mais bonitos -, a conduta flui naturalmente, os passos corretos são dados nos momentos oportunos e o sucesso – a sedução e conquista da pessoa paquerada – ocorre com freqüência. Quando um ou ambos os sujeitos são introvertidos e socialmente inábeis, entretanto, a paquera pode se tornar um processo bastante errático, com movimento desproporcionais e inoportunos, frequentemente sem bons resultados.)

Na segunda-feira, Juliana trabalhava na mesma sala individual. Marcio passou em frente à porta e no calor da hora decidiu entrar. Não tinha idéia do que diria. Não notou o quanto estava agitado, que carregava uma papelada em uma das mãos e um copo de café na outra. Não podia dar certo. Quando ele se deu conta de que fizera besteira, já era tarde. Juliana o fitava com seus olhos claros e um sorriso acolhedor nos lábios.

(Não existe roteiro para uma boa paquera. Em linhas gerais, deve-se ter um plano de ação de contornos gerais e reservar espaço para lances de improviso, estando atento às oportunidades que se apresentarem. A espontaneidade é valorizada porque sinaliza que a vida em comum nas fases posteriores da relação não será facilmente corroída pela rotina. A capacidade de surpreender agrada sobretudo às mulheres.)

Marcio sabia se portar com serenidade e agir objetivamente em situações tensas – mas não em situações de paquera. Era assim desde garoto. Ficava nervoso e fazia tudo errado. Dessa vez não foi diferente. De cara, derramou café no chão. Não se deu conta de que a moça o convidara para se sentar e ficou andando e falando erraticamente pela sala. Sentia-se trêmulo e não conseguia entabular um diálogo coerente e fluido, cortando Juliana e trocando de assunto à esmo. Marcio parecia um personagem de comédia de Woody Allen. A jovem, ao contrário, mostrando completo autodomínio, estava serena e fazia o que podia para deixá-lo à vontade. Lembrando a cena, logo depois, ele a admirou ainda mais por sua generosidade. Nas suas palavras e gestos se via claramente o que ela queria dizer ao exaltado colega: “Calma. Senta, vamos conversar. Estou feliz por você ter vindo”.

Marcio não se sentou, nem se acalmou. Sentindo-se perdido, saiu da sala tão abruptamente quanto entrara, deixando Juliana atônita. Comportou-se como um adolescente atrapalhado. Pelo menos já tinha maturidade para superar burradas desse tipo sem grandes traumas. Voltando para seu lugar, reviu mentalmente o que fizera e riu de si próprio. O desempenho do inepto paquerador fora tão catastrófico que o riso era a reação mais natural.

(Embora o papel da mulher na sociedade tenha mudado muito, sobretudo após a revolução sexual e o feminismo nos anos 60, no que se refere às regras geralmente aceitas da paquera as coisas continuam as mesmas. Espera-se, como antes, que o homem seja o agente ativo, tomando a iniciativa e correndo riscos. A mulher que assume essa função, considerada masculina, fica malvista. A ela, contudo, cabe a crucial parte de sinalizar o interesse inicial e controlar o ritmo da paquera, encorajando ou desestimulando os passos que o homem deve dar, e em que tempo.)

No dia seguinte, Marcio renovou a visita, mais uma vez de improviso, dessa vez sem café e documentos nas mãos. Teve o cuidado de ficar na porta e falar pouco, porém, entre banalidades e brincadeiras, disse a frase que denunciava seu estado de espírito: “sinto a sua falta”.

Mais tarde, Marcio cruzou com Juliana no corredor e seus olhos se procuraram. Da coleção de olhares da moça que ele acumulou ao longo daquelas semanas, este foi o mais precioso, porque foi especial para ele, pessoal e intransferível, cheio de ternura, adornado por um sorriso tímido. Ela sustentou o olhar por um segundo e baixou a vista, envergonhada. Marcio teve certeza de que a moça gostava dele e se sentiu pleno de felicidade. Quanta gente passou pela vida sem ser alvo de um olhar enamorado como aquele! Congelaria aquele instante se pudesse, para usufruir daquele sentimento para sempre.

O mais belo olhar de Juliana foi um presente de despedida para Marcio, porque não houve outros. Foi o ponto culminante da paquera que, daí em diante, travou, retrocedeu e morreu. O impasse esboçado na sexta-feira tomou o espírito do rapaz e bloqueou qualquer outra iniciativa. Juliana também mudou seu comportamento nos dias que se seguiram, certamente o resultado de uma avaliação objetiva das coisas. O custo de aprofundar a relação era alto demais, para ele, sobretudo, mas também para ela.

(Por ser, na maioria dos casos, um processo de seleção de candidatos para uma relação mais estável – o namoro (que por sua vez é também etapa no caminho da mais estável das relações – o casamento), a paquera é uma relação frágil que pode desandar por mil razões e falhar. Esse é o destino da maioria delas.)

Estavam decididos a terminar a história. Acabaram os olhares e os sorrisos. A voz musical de Juliana agora entristecia Marcio porque não era mais para ser ouvida por ele. Enquanto os dias se agrupavam em semanas e as semanas em meses, o sentimento, pelo desuso, minguava até desaparecer. A vida seguiu e tudo foi esquecido, exceto o olhar de Juliana. Isso Marcio nunca esqueceu.