CUNHA, Paiva André Moreira; NAGEL, Carlos Águedo. Noções de economia: Teoria econômica. Fundação Alexandre de Gusmão, Brasília, 2008.

Teoria econômica

Joabson Cruz Soares[1]

O objeto da Economia é apresentado da seguinte forma: A Economia estuda o comportamento de agentes racionais na alocação de recursos escassos entre fins alternativos. Ou, de forma mais clara e detalhada: A Economia estuda a alocação de recursos escassos (dinheiro, capacidade de trabalho, energia, etc.) entre fins alternativos (lazer, segurança, sucesso, etc.) por parte dos proprietários de recursos que buscam obter o máximo benefício por unidade de dispêndio.

O termo-chave desta definição do objeto da Economia é agente racional: é racional o agente que busca obter o máximo benefício por unidade de dispêndio de seus recursos escassos. Vale dizer: racionalização e maximização de benefício por unidade de dispêndio são sinônimos. O comportamento do homem racional maximizador é, em síntese, o objeto econômico.

Na medida em que é uma Ciência Humana e Social, a Economia não é apenas uma Ciência com um objeto particularmente complexo, multifacetado e dinâmico. É, também, uma Ciência à qual estão fechadas as possibilidades de experimentos laboratoriais.A replicagem de políticas econômicas se faz em tempos distintos – sob outras condições políticas, tecnológicas, competitivas, de integração internacional, etc. – e/ou em mercados e/ou territórios e/ou nações distintos – com histórias, valores, padrões organizacionais, etc. distintos. De forma que resultados heterogêneos para políticas homogêneas sempre podem ser explicados pelas circunstâncias distintas dentro das quais aquelas políticas foram aplicadas.

Escapar desta limitação estrutural envolve a construção de um referencial analítico estável, que independa de determinações facilmente mutáveis e alheias ao campo da Economia. Uma referência que é conquistada pela construção ideal de modelos baseados na hipótese restritiva de que os agentes econômicos são estritamente racionais-maximizadores, vale dizer, são “homens econômico-racionais”.

Estas construções dedutivo-ficcionais, estes “modelos”, não devem ser, porém, o produto último da Ciência Econômica. Eles apenas nos informam como o mundo seria se os homens se comportassem de forma inteiramente racional. Mas, já sabemos, os homens reais não são integralmente racionais. O que nos impede de tomar os modelos como instrumentos de predição e projeção de tendências.

 As distorções sistemáticas entre os resultados preditos e os resultados empiricamente observados nos fornecem as pistas para impor ajustamentos e desenvolvimentos ao modelo original em direção a sistemas teóricos mais realistas e de capacidade preditiva superior.

Assim, o Método da Economia pode ser apresentado a partir de seus quatro momentos fundamentais: 1) Observação e sistematização da estrutura fundamental de um dado sistema econômico; 2) Construção dedutiva de um modelo de reprodução econômica com agentes estritamente racionais; 3) Confronto das predições do modelo original com a dinâmica concreta do sistema econômico sob observação; 4) Crítica e desenvolvimento indutivo do modelo original.

Partindo da observação e sistematização do padrão de distribuição de recursos e da hierarquia de fins estratégicos por parte dos agentes econômicos que operam em um dado sistema econômico, os economistas deduzem como aqueles agiriam se fossem ‘homens econômicos racionais’. O resultado é um modelo que referencia e qualifica as observações empíricas das dinâmicas econômicas concretas. O confronto entre os resultados preditos no modelo e os resultados efetivamente realizados permite a correção e desenvolvimento do modelo original em direção a sistemas cada vez mais realistas e de consistência teórico-empírica superior.

Tal responsabilidade só pode ser exercida de forma consistente se se leva em conta as conseqüências – de curto, médio e longo prazo – das decisões tomadas para o bem estar material da comunidade. O que não pressupõe apenas algum conhecimento da Teoria Econômica já consolidada: pressupõe que se conheçam os limites do consenso entre os economistas e a confiabilidade que se pode atribuir a qualquer concepção (circunstancialmente) hegemônica. Vale dizer: pressupõe que se conheçam os fundamentos das leituras e interpretações alternativas acerca da estrutura e da dinâmica econômica do sistema mercantil-capitalista.

Os três paradigmas (ou vertentes, ou escolas, ou tradições) fundamentais nos quais se divide a Ciência Econômica. Cada um destes três paradigmas se estrutura sobre uma referência filosófico metodológica específica: o cartesianismo, o kantismo e o hegelianismo. É a partir destas referências filosófico-metodológicas distintas – e seguindo a ordem cronológica de emergências das mesmas, iniciando por Descartes (1596-1650), passando a Kant (1724-1804), e finalizando com Hegel (1770-1831) – que vamos apresentar as três alternativas de resposta às questões expostas no parágrafo anterior.

  1.                     O NEOCLASSICISMO (OU: O CARTESIANISMO EM ECONOMIA)

O cartesianismo é um racionalismo extremado. Para Descartes, não se pode tomar como verdade nada que não seja, rigorosa e indubitavelmente, racional. Mais do que isto: a existência efetiva (por oposição à aparência de existência, ilusória e falsa) é função da racionalidade. Só o que é racional é real. A máxima que empresta merecida fama ao grande filósofo francês – Penso (raciocino, duvido, critico, analiso), logo (por conseqüência, então, só assim) existo (sou efetivo, sou real) – já afirma esta prevalência do racional sobre o real. Mas ela ganha uma dimensão rigorosamente geral na filosofia de Descartes, que se estrutura sobre a fé metafísica no caráter ordenado do mundo. Para Descartes, a desordem, o desequilíbrio, o caos, só podem ser aparenciais. Eles não são atributos das coisas mesmas: são impressões que atribuímos às coisas em função das limitações de nossos sentidos e de nosso intelecto.

Em particular, Descartes se propõe a seguir (e defende a validade universal) de quatro preceitos: “O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida. O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las. O terceiro, o de conduzir por ordem os meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos e supondo mesmo uma ordem entre os que não se procedem naturalmente uns aos outros. E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir. 

Não é gratuito, assim, que a definição da Economia apresentada na abertura deste capítulo tenha sido proposta por economistas neoclássicos e só seja plenamente aceita – vale dizer, sem adendos e relativizações - no interior desta corrente de pensamento. É que a aquela definição restringe o objeto da Economia à ação racional. Se entendemos que parcela expressiva das decisões e ações humanas não são definidas racionalmente, então aquela restrição significaria dizer que a Ciência Econômica ignora todo um conjunto de ações que, presumivelmente, impactam sobre temas indissociáveis da Economia, como nível de emprego, preços dos diversos bens, renda nacional, inflação, taxa de câmbio, taxa de juros, etc. De outro lado, se adotamos a perspectiva cartesiana de que a única realidade é a definida pela razão e a aplicamos de forma conseqüente ao comportamento humano, somos obrigados a admitir que este comportamento é essencialmente racional e apenas aparencialmente (e/ou circunstancialmente) irracional.

2.                      O ESTRUTURALISMO (OU O KANTISMO EM ECONOMIA)

Tal como o cartesianismo e o hegelianismo, o kantismo é uma forma de racionalismo. O que contrapõe o racionalismo kantiano aos demais é que ele diferencia radicalmente a realidade mesma (a coisa em si) das nossas representações da realidade (os fenômenos). Para Kant, as coisas que intuímos não são em sim mesmas tal qual as intuímos, nem ... as suas relações são em si mesmas constituídas do modo como nos aparecem ... . Todas essas coisas enquanto fenômenos não podem existir em si mesmas, mas somente em nós. O que há com os objetos em si e separados de toda esta receptividade da nossa sensibilidade, permanece-nos inteiramente desconhecido. Não conhecemos senão o nosso modo de percebê-los, o qual nos é peculiar e não tem que concernir necessariamente a todo ente, mas sim a todo homem. 

Vale dizer, para Kant que há uma ilusão na associação cartesiana de racionalidade e realidade: a ilusão de que a racionalidade humana é universal (e, em última instância, partícipe da razão divina). Na esteira de Hume – o mais radical de todos os empiristas anglo-saxões –, Kant vai pretender que não há outro fundamento nesta assertiva cartesiana do que insuficiência crítica e excesso de autoestima.

Felizmente, porém, a influência britânica sobre Kant não se restringe ao ceticismo de Hume. De Newton vem a convicção de que a ciência é possível, e não se restringe à Matemática, mas se realiza em áreas (como a Física) em que a lógica e o raciocínio dedutivo mostram-se necessários, mas insuficientes. O que vai redundar num projeto original de síntese entre o empirismo e o racionalismo. De um lado, Kant vai concordar com Descartes que o ponto de partida do fazer científico é a construção de modelos consistentes, de modelos racionais. Mas vai abrir mão da prevalência do racional sobre o real. O fazer científico para Kant vai ter por base a observação e a sistematização das observações no interior de um modelo lógico, de um modelo racionalmente consistente. E o resultado desta sistematização são meros modelos, sempre imperfeitos, sempre insuficientes, independentemente de sua consistência interna. Pior: é bastante possível que a máxima consistência interna não seja outra coisa do que a expressão da máxima racionalização perversora da verdadeira e legítima complexidade de um real incompreensível e inapropriável por nós.

Como escapar deste imbróglio em que a ordem e a racionalização são, ao mesmo tempo, a condição da ciência e a possibilidade de ilusão? O caminho proposto por Kant será o da “Crítica da Razão”, através da qual este autor vai buscar determinar, tanto os limites estruturais e intransponíveis, quanto as potencialidades dinâmicas e criadoras deste instrumento humano de apropriação do mundo. Seus resultados serão tão ricos e complexos quanto inconclusivos. O que dará vazão a um amplo e díspare conjunto de seguidores e intérpretes, que buscarão contribuir para o desenvolvimento de suas reflexões originais nas mais distintas direções, a depender do privilegiamento que dão à dimensão negativa (como Schopenhauer, 1788-1860; Nietzsche, 1844-1900; e Deleuze, 1925-1995) ou da dimensão positiva (como Hegel; Marx; e Peirce, 1839-1914) da crítica kantiana da razão.

Não obstante, é possível identificar um conjunto de autores que galvanizam a posição kantiana em Economia e que adotam padrões metodológicos marcadamente uniformes15. De Quesnay (1694- 1774) e Malthus (1766-1834) a Sraffa (1898-1983) e Leontief (1906-1999) uma longa e expressiva lista de autores poderia ser apresentada. Mas três personagens lideram, indubitavelmente, o campo kantiano em Economia, tendo sido responsáveis pela sistematização da metodologia estruturalista em nossa Ciência. São eles David Ricardo, Max Weber (1864-1920) e John Maynard Keynes (1883 – 1946).

O que caracteriza e aproxima as obras destes autores é, antes de mais nada, o padrão de construção do “modelo” original (aquele que deve ser objeto de crítica e re determinação empírica). Ao contrário dos cartesianos, que constroem seus modelos utilizando-se quase que exclusivamente da dedução, os kantianos entendem que é preciso partir da realidade empírica observada. Em particular, no caso das ciências sociais, onde a realidade é mutável: uma das principais derivações positivas da crítica kantiana da razão foi a demonstração de que ela não é apenas produtiva, mas desigualadora: a razão produz regras éticas e comportamentais que se impõem de forma diferenciada entre distintos grupos sociais, períodos históricos e territórios. Para os economistas, isto equivale a reconhecer que não é de grande utilidade partir de uma abstração como “o consumidor médio”, e que deveríamos partir de agentes mais determinados, como “o empresário industrial”, o “trabalhador”, o “camponês”, ou, até mesmo, “o operário inglês da primeira metade do século XIX”, “o banqueiro e financista norte-americano da segunda metade do mesmo século”.

Por fim, uma questão se impõe: se o método da Economia apresentado anteriormente é, de fato, o método adotado pelos signatários da tradição kantiana, qual o sentido da caracterização desta escola como “estruturalista”? O sentido se encontra nas peculiaridades da modelística da tradição kantiana. Uma “estrutura” é algo que não se define pelas suas partes, mas pelas relações que as partes estabelecem entre si, definindo um todo que é maior do que a mera soma dos componentes (como o diamante vis-à-vis os átomos de carbono).

É neste sentido que os modelos produzidos pelos economistas kantianos são “estruturalistas”. Ao admitirem que a realidade é cambiante e que a modelagem nunca corresponde à realidade, os kantianos se tornam extremamente parcimoniosos na introdução de variáveis. Qualquer complexificação inessencial envolve uma perda de pureza, clareza, e testabilidade. E só é essencial aquilo que, por estar em relação com as demais partes do modelo, afeta as demais partes e (re)determina os resultados de sua presença; vale dizer, para os kantianos, só é essencial e modelável o que é estruturante.

Mas que se entenda bem: o “essencialismo parcimonioso” dos modelos estruturalistas não pode ser confundido com simplismo ou auto-circunscrição referencial. O reconhecimento de que a razão é (para além de limitada) plástica e mutável e que, por conseqüência, os sistemas sociais e econômicos são múltiplos e diferenciados, implica o reconhecimento de que a modelagem da “estrutura essencial” de cada sistema pressupõe uma pesquisa ampla e multi-referenciada de suas manifestações produtivas, culturais, políticas, etc.

3.                      O INSTITUCIONALISMO HISTÓRICO (OU: O HEGELIANISMO EM ECONOMIA)

Se já é estranha a pretensão de que, mesmo sem o saber, a maior parte dos economistas é cartesiana, e uma minoria expressiva é kantiana, ainda mais estranha deve ser a pretensão de que parcela não desprezível seja hegeliana. Afinal, enquanto Descartes e Kant são filósofos conhecidos e respeitados, Hegel não é apenas pouco conhecido: até mesmo pensadores renomados – como Bertrand Russel, 1872-1970  – classificam as teses desse autor como incompreensíveis ou absurdas.

Como já o disse Peirce (do nosso ponto de vista, o maior hegeliano anglo-saxão), o principal responsável por este quadro de incompreensão é o próprio Hegel, que optou por uma terminologia e um padrão expositivo esotéricos, que dificultam a compreensão de um sistema teórico já complexo por si mesmo. Não obstante, as teses centrais de Hegel são muito menos esotéricas do que usualmente se pensa. Senão vejamos. A primeira determinação da filosofia Hegel é o realismo. Por oposição a Kant (e, neste particular, em sintonia com Descartes), Hegel vai recusar a caracterização da realidade como “coisa em si” inacessível à razão humana. Pelo contrário: como bom realista, Hegel “… não pensa na mente como um receptáculo, no qual, se a coisa está dentro, deixa de estar fora. Operar uma distinção entre a verdadeira concepção de uma coisa e a própria coisa é … considerar apenas uma e mesma coisa sob dois aspectos diferente; pois o objeto imediato do pensamento num juízo verdadeiro é a realidade.” 

Mas o realismo de Hegel dista muito do realismo cartesiano. Enquanto para Descartes a construção racional é o real – e para Kant a construção racional é uma construção humana e o real é incognoscível –, para Hegel, nem o racional, nem o real são. Longe de serem dados imutáveis, o real e o racional estão num processo permanente e imbricado de construção e desenvolvimento. Vale dizer: Hegel vai radicalizar a percepção kantiana de que a razão é criativa e plástica e assumir que ela é passível de desenvolvimento. Mais: para Hegel, ela se desenvolve a partir das tensões postas por uma realidade “externa” que, a despeito de ainda não haver sido plenamente compreendida e dominada, já se diz presente, já incomoda.

Daqui se extrai todo um conjunto de derivações metodológicas. Em primeiro lugar, extraise uma certa “curiosidade desrespeitosa” com os antagonismos teóricos, os quais se busca superar a partir da síntese das posições conflitantes. Exemplo: Descartes e Kant parecem (e num certo sentido, são) antípodas. Mas por trás da oposição “o racional é real / o racional é ilusório” encontra-se a unidade “o racional é”. Para Hegel, superar esta unidade é superar os limites dos dois maiores sistemas filosóficos modernos e reconhecer que “o verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a essência que atinge a completude por meio do seu desenvolvimento. Deve-se dizer do Absoluto que ele é essencialmente resultado e que é o que na verdade é, apenas no fim.” 

Além disso, a tese de que os contrários solicitam sínteses superiores tem um desdobramento revolucionário para a prática científica: alimenta a concepção de que não só se pode, como se deve hierarquizar as concepções teóricas e as estruturas sociais, diferenciando-as em termos de seu grau de desenvolvimento. O que significa dizer que todo o hegeliano é “politicamente incorreto” e desrespeita os limites consagrados (na teoria, muito mais do que na prática) por cartesianos e kantianos entre discursos positivos dos normativos. Afinal, se há desenvolvimento, há hierarquia, há um melhor. E a ciência, na medida em que se consolida e conquista efetivo domínio sobre os processos de desenvolvimento racional, não pode ficar presa a “regras de silêncio”, que a excluam arbitrariamente das discussões sobre o que “deve ser”. Adotar tais regras por princípio equivaleria a pretender que, por princípio, a ciência não pode contribuir para o desenvolvimento da sociedade, devendo se restringir, ou à colaboração com o status quo ante, ou à observação da instabilidade social que caracteriza os períodos em que o mais desenvolvido já se anuncia, mas ainda não tem forças para se impor.

A questão que fica por responder então é: quem define, como define, e quando define o que é o “mais desenvolvido”? Para Hegel, não cabe dúvida sobre este ponto: quem decide é a coletividade pensante; são todos e qualquer um que se dedicar à reflexão filosófico-científica. E isto na medida em que, para esse autor, a verdade é o resultado a que chega todo e qualquer indivíduo que queira, possa e realize o exercício pleno de seu direito à dúvida e à replicação das experiências lógicas que conduziram os cientistas às suas conclusões originais.

Contudo, há que se diferenciar os distintos graus e momentos da construção e conquista da verdade. Para um astrônomo as assertivas “2+2=4” e “a Terra gira em torno do Sol” são igualmente evidentes. Mas estas duas assertivas não são igualmente evidentes para uma criança de 7 anos ou para um guerreiro Massai. Da mesma forma como não são igualmente evidentes para o leigo em Economia as assertivas “o primeiro litro d’água é mais valioso para quem está morrendo de sede do que o segundo” e “o mercado e o sistema de preços são padrões complexos e relativamente recentes de alocação do trabalho e de distribuição dos seus produtos”. O que não significa que a segunda assertiva seja, de fato, menos lógica e verdadeira que a primeira.

A questão é que não estão dadas as condições para que todos exercitem simultaneamente seus direitos à experiência científica. E, por isto mesmo, a responsabilidade de cada filósofo e de cada cientista é a de transcender o senso comum, interpretando o mundo em que vive, apontando alternativas de superação de suas contradições, de enfrentamento de seus problemas e de desenvolvimento racional. E deve fazê-lo apresentando claramente suas hipóteses, e correndo os riscos de vê-las negadas pelos fatos e pela lógica superior de antagonistas.

E aqui, talvez, a diferença crucial entre hegelianos, kantianos e cartesianos. Para os últimos, o desenvolvimento histórico, ou é uma ilusão (pois todas as sociedades são essencialmente iguais), ou se encerra com a afirmação do espírito científico na modernidade e o abandono das utopias teológicas e metafísicas. Da mesma forma, para os kantianos, ou o desenvolvimento histórico não existe (só existem estruturas sociais alternativas, que não podem ser hierarquizadas), ou ele traduz o desenvolvimento moral e intelectual dos indivíduos e da coletividade. Em suma: ou não há História, ou ela é um processo ético-intelectual. Para Hegel, a História existe e acompanha o desenvolvimento da razão. Mas a razão não é a fonte supra-histórica da História. Ela só se desenvolve na medida em que, respondendo a estímulos e demandas objetivamente postos, cria novos estímulos e demandas sobre si mesma.

A centralidade ocupada pela questão do desenvolvimento das forças produtivas na tradição teórica hegeliana não pode, pois, ser subestimada. Não gratuitamente, os três maiores economistas desta escola – Smith, Marx e Schumpeter – são teóricos das condições de desenvolvimento das forças produtivas materiais. Mas é preciso não confundir o núcleo que organiza o tratamento que estes autores dão ao seu objeto com o próprio objeto. O que interessa a Smith, Marx e Schumpeter (bem como a seus seguidores, intérpretes e críticos hegelianos) não é o “progresso técnico”, mas as determinações sociais, institucionais e culturais do desenvolvimento das forças produtivas, bem como suas consequências previsíveis nos planos da dinâmica econômica, da distribuição da renda e da propriedade, da consciência e da organização social, etc. Em última instância, o objeto da Economia para esses autores é a dinâmica de longo prazo dos sistemas econômicos concretos: suas determinações institucionais, sua evolução observada e projetada e seus desafios prováveis.

A Economia é uma ciência. E, como toda a ciência, tem uma fronteira (que não é uma linha, mas a um largo território) que separa a área dos conhecimentos consolidados e consensuados, da área onde se colocam questões para as quais só podemos ter hipóteses e conjecturas.

O que particulariza a Economia das demais ciências consolidadas (como a Física, a Biologia, a Lingüística, etc.) é que, de um lado, a sociedade demanda que os economistas se posicionem cotidianamente sobre temas que estão “para além da fronteira” e, de outro lado, os economistas tendem a aceitar estas demandas, ofertando respostas hipotéticas e controversas que, usualmente, são apresentadas como se fossem conclusões científicas rigorosas e inquestionáveis.

As demandas sociais têm origem na necessidade dos governos em ter alguma referência para a definição de suas políticas econômicas e na necessidade das diversas organizações da sociedade civil em referenciar seu apoio ou resistência àquelas políticas. Estas são demandas objetivas e impositivas.

Não há como fugir da questão: o que acontecerá com a economia do país a médio e a longo prazo se optarmos por esta política econômica ao invés daquela? E ninguém melhor para “palpitar” sobre o assunto que um economista. Mas qualquer projeção no mundo anárquico e dinâmico em que vivemos será, necessariamente, uma hipótese.

O que orienta a pesquisa dos cartesianos é a convicção de que o mundo é essencialmente ordenado, estável e simples26. Para além das aparências (de mudança, de crise, de irracionalidade, de alternativas abertas), o que existe é o homem econômico racional, egoísta e hedonista, buscando a maximização de seu prazer, com um mínimo de dispêndio de recursos.

Por oposição, os economistas kantianos partem do princípio de que, para além das determinações estáveis e recorrentes, existem particularidades institucionais e culturais, que afetam os resultados de qualquer política econômica. Mais: como os agentes são essencialmente plásticos (seus fins e padrões de racionalidade não são, nem únicos, nem estáveis), alguns sistemas são particularmente propensos a apresentar instabilidade dinâmica. De forma que os estruturalistas vão tender a se contrapor aos cartesianos em duas frentes: 1) vão defender a necessidade de políticas regulatórias públicas que limitem (à la Keynes) a instabilidade estrutural dos sistemas econômicos e/ou (à la Ricardo) a manifestação de tendências dinâmicas perversas de longo prazo nos mesmos; 2) vão insistir nos limites estruturais de qualquer projeção sobre o futuro, pois não existe, nem ordem natural, nem tendências inexoráveis nos sistemas econômicos.

Por fim, os economistas hegelianos partem da hipótese de que as mudanças históricas são racionais; vale dizer, respondem a determinações objetivas, e, como tal, são passíveis de compreensão científica. Como regra geral, as mudanças devem ser a resposta socialmente viável a demandas e pressões contraditórias, que impedem a sustentação do status quo ante. De forma que, só com a adequada compreensão dos conflitos de interesses internos a um dado sistema (envolvendo o padrão de estratificação social e seu grau de assimilação e aceitação na coletividade atual e potencial27) e da sua institucionalidade histórica específica (envolvendo o conjunto das regras, instituições e padrões competitivos que sancionam e/ou limitam a transformação das forças produtivas materiais e da apropriação-distribuição-circulação do produto) é que se pode circunscrever as trajetórias de desenvolvimento efetivamente abertas e hierarquizá-las em função de suas probabilidades objetivas. Em suma: ao contrário do que pretenderiam neoclássicos e estruturalistas, nem a modelística hiper-racionalista e ahistórica dos primeiros, nem a modelística simplificada e sub-determinada dos segundos, é suficiente para apoiar (ou para negar validade a) qualquer prognóstico sobre as consequências de distintas políticas econômicas. Tais prognósticos pressupõem a identificação das tendências. sistêmicas e só podem ser considerados científicos se construídos nos marcos totalizantes do institucionalismo histórico.

E o mais importante é que, via de regra, as construções teóricas que conquistaram consenso em Economia – superando os tratamentos parciais e polêmicos que vicejavam até então – receberam contribuições das três grandes tradições do pensamento econômico. Cada uma, na sua especialidade.

Via de regra, os cartesianos – com seu proverbial pendor matemático e analítico  desenvolvem inovações instrumentais; os estruturalistas – atentos para realidades e problemas específicos – exploram as inovações na modelagem de sistemas “mal comportados” e derivam conseqüências inusitadas das mesmas; e os hegelianos – voltados para o desvendamento da lógica da História – revelam as condições institucionais que alimentam a emergência das contradições modeladas pelos estruturalistas, bem como as condições que permitem a superação das mesmas. Este padrão de colaboração já se manifestou inúmeras vezes.


[1] Pós-graduando em Gestão Empresarial pela Universidade Estácio de Sá e Graduado em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba.