Muriely Salviano de Faria

TEORIA DO GARANTISMO PENAL

 

A Teoria do Garantismo Penal, fundada pelo professor e juris-filósofo italiano Luigi Ferrajoli, surgiu com o intuito de limitar o poder punitivo no Estado de Direito, através dos direitos fundamentais previstos em cada Constituição. Isso significa, de forma sucinta, que o Direito de Punir do Estado (Direito Penal Subjetivo) não deve sobressair aos direitos individuais de cada um, o que acontece na Ditadura ou no Totalitarismo.

A palavra “Garantismo”, para Ferrajoli, possui três significados distintos: aponta um modelo normativo de direito; indica uma teoria jurídica onde vigência e validade formam grupos jurídicos distintos; e delibera uma filosofia política que exige que o Direito e o Estado se justifiquem. Este pressupõe também a distinção entre direito e moral, ponto de vista interno e externo, e justiça e validade.

Luigi Ferrajoli sugere o aperfeiçoamento do Estado de Direito existente, mas, do ponto de vista liberal, a proposta garantista aconselha a não intervenção do Estado nos direitos de liberdade do povo, ao passo que socialmente falando, o júris-filósofo incita a máxima intervenção do Estado quando para garantir os direitos sociais dos cidadãos. Logo, Ferrajoli relaciona o termo “Garantismo” ao Estado Constitucional de Direito.

Para Cademartori (1999, p. 161) a teoria garantista implica “um Estado minimizador das restrições das liberdades dos cidadãos dentro de um Estado Social maximizador das expectativas sociais, com correlatos deveres, do próprio Estado, de satisfazer tais necessidades.

Vale ressaltar que, como já dito anteriormente, uma das acepções de “Garantismo” para o júris-filósofo italiano distingue vigência (validade formal) de validade (validade material), tornando-as autônomas e independentes entre si. Logo, o fato de uma norma ter sido criada conforme os procedimentos formais estabelecidos por uma lei de caráter superior do mesmo sistema, não significa que essa norma é válida, apenas que é vigente. Isso se dá porque a validade não está relacionada apenas aos critérios formais de sua produção, mas também ao seu conteúdo, ou seja, não se deve apenas ater à observância dos critérios formais, mas também estar vinculada com o conteúdo das leis superiores. Em suma, para que uma norma seja eficaz ou válida, ela precisa surtir efeitos na sociedade, ao passo que, para uma norma ser vigente, ela precisa ter passado pelos procedimentos legais.

Axiomas da Teoria do Garantismo Penal e os Princípios Limitadores do Direito de Punir do Estado

 

O Garantismo Penal está estruturado a partir de dez axiomas ligados uns aos outros de forma sistemática, de forma a impor condições à intervenção punitiva do Estado, às normas materiais de direitos fundamentais.

A seguir, os dez axiomas, também chamados de mandamentos do Garantismo Penal:

A1 Nulla poena sine crimine

A2 Nullum crimen sine lege

A3 Nulla lex (poenalis) sine necessitate

A4 Nulla necessitas sine injuria

A5 Nulla injuria sine actione

A6 Nulla actio sine culpa

A7 Nulla culpa sine judicio

A8 Nullum judicium sine accusatione

A9 Nulla accusatio sine probatione

A10 Nulla probatio sine defensione (FERRAJOLI, 2006, p. 91).

Esses axiomas encontram-se revelados em princípios, como pode ser visto no excerto a seguir:

Denomino estes princípios, ademais das garantias penais e processuais por eles expressas, respectivamente: 1) princípio da retributividade ou da conseqüencialidade da pena em relação ao delito; 2) princípio da legalidade, no sentido lato ou no sentido estrito; 3) princípio da necessidade ou da economia do direito penal; 4) princípio da lesividade ou da ofensividade do evento; 5) princípio da materialidade ou da exteriorização da ação; 6) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; 7) princípio da jurisdicionalidade, também no sentido lato ou no sentido estrito; 8) princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação; 9) princípio do ônus da prova ou da verificação; 10) princípio do contraditório ou da defesa, ou da falseabilidade. (FERRAJOLI, 2006, p. 91).

 

Esses princípios limitam o Direito de Punir do Estado. O primeiro garante que não há pena sem crime, isto é, um comportamento que não é considerado uma infração penal (que deve constar em um artigo de lei) não pode sofrer sanção, o que leva ao segundo princípio, que assegura que não há crime sem uma prévia correspondência legal. O Princípio de Necessidade ou da Economia do Direito Penal, por sua vez, garante que não há lei penal desnecessária, enquanto o Príncipio da Lesividade complementa que não há necessidade sem injúria, ao passo que o quinto princípio acrescenta que não há injúria sem ação. Já o Princípio da Culpabilidade, também chamado de Responsabilidade Pessoal, vem para garantir que não há ação sem culpa, enquanto o da Jurisdicionalidade diz que toda culpa deve ter julgamento. O oitavo, que revela o axioma correspondente, assegura que em todo julgamento deve haver acusação e esta deve ser distinta do juiz, enquanto o Princípio da Carga da Prova ou da Verificação defende que só há acusação se tiver provas para tal. Por fim, o décimo, o Princípio do Contraditório ou da Defesa ou da Refutação garante que toda pessoa tem o direito de contra-argumentar, de se defender.

Além desses, há outros princípios como o da Proporcionalidade, que estabelece que  sanção deve ser proporcional ao crime; o da Humanidade, que proíbe penas cruéis e desumanas, acrescentando que o condenado deve receber auxílio e assistência e o da Adequação Social, que prescreve que a lei deve corresponder as necessidades do povo, que deve aceitá-la, logo, um crime só é crime, se for tido socialmente como tal.

Distinção entre Abolicionismo e Garantismo Penal

No Brasil há uma constante confusão entre Abolicionismo e Garantismo Penal, considerando-os sinônimos, o que não são.  O primeiro está atrelado aos estudos realizados pela Teoria da Reação Social, com uma vontade de eliminar o sistema penal, alegando que os conflitos devem ser submetidos ao tratamento no âmbito cível ou administrativo, isso se não forem resolvidos no plano informal-comunitário. Logo, para os abolicionistas os artefatos penais acarretam mais danos do que trazem benefícios, ao passo que o Garantismo Penal, fundado por Luigi Ferrajoli, defende a punição desde que numa perspectiva de direito penal mínimo.

O Garantismo Penal e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

 

Segundo Pimentel (s.d) que utiliza a palavra de Marcelo Mavilino Camargo (s.d), a dignidade da pessoa humana não é, por si só, um direito fundamental, mas sim uma qualidade de todo ser humano, o que faz com que toda pena deva ser sempre humana e nunca cruel. Ainda assim exerce fundamental no mundo em que vivemos, situando o homem como o foco de todo o ordenamento jurídico.

Sobre esse assunto, há o excerto a seguir:

[...] o condenado, enquanto detentor de direitos fundamentais e garantias individuais está submetido aos cuidados do poder estatal e dessa forma merece receber tratamento digno, mesmo tendo violado as normas de convivência social, a integridade humana de outrem, mesmo assim merece os cuidados do poder público competente de forma a preservar a sua dignidade e assegurar o seu retorno ao convívio social, ou seja o principio da dignidade da pessoa humana exige que o Estado transforme os infratores em cidadãos aptos a conviver socialmente, sem o cometimento de novos delitos. [...] a dignidade humana não é uma mera prestação estatal, algo que dependa das ações da pessoa humana e nem tampouco algo a ser conquistado, sendo na verdade, uma qualidade intrínseca da pessoa humana, irrenunciável e inalienável, um elemento qualificador do ser humano e que não lhe pode ser negado (PIMENTEL, s.d., s.p.)

E o mesmo autor conclui:

Vimos que a tese central do garantismo penal é a observância não só dos direitos fundamentais, mas também dos deveres fundamentais. Que a pena é o alicerce do Direito repressor, sendo consecutiva ao delito. O respeito ao principio da dignidade da pessoa humana pressupõe um universo de prerrogativas que devem ser respeitadas diariamente, pois só assim conseguiremos um real Estado Democrático de Direito. Mesmo a pena não solucionando os problemas da criminalidade é necessário cumprir com o Princípio da Dignidade Humana no tocante tratamento dado aos detentos, pois além de qualquer coisa são pessoas e detentores de direitos e garantias individuais, assim sendo têm direito a ressocialização para que sejam auxiliados no retorno ao convívio social, pois só assim terá seus direitos resguardados, atingindo assim a finalidade do garantismo penal (PIMENTEL, s.d., s.p.).

Em suma, se a finalidade do Garantismo Penal é garantir que o Estado assegure os direitos fundamentais de cada um, e, ainda que, para alguns doutrinadores a dignidade da pessoa humana seja mais um atributo de cada um do que um direito fundamental, é imprescindível a sua garantia. Ao se aplicar o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana está preservando os direitos individuais de cada cidadão, não adotando penas cruéis e exageradas e também evitando a arbitrariedade do Estado, o abuso de poder.

Essa arbitrariedade do Estado, inclusive, preocupou os cidadãos desde a Idade Média, onde o Estado queria sempre apontar um culpado, utilizando-se de uma verdade denominada “presunção de culpabilidade”. Lopes Jr (2008, p. 177-178) explica essa verdade dizendo que “basta recordar que na inquisição a dúvida gerada pela insuficiência de provas equivalia a uma semiprova, que comportava um juízo de semiculpabilidade e semicondenação a uma pena leve”.

Com a Revolução Iluminista (ou Francesa) criou-se a Declaração dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos, onde estabelecia um princípio da inocência, em seu art. 9º, garantindo que todo homem era inocente até que fosse provado o contrário. Além dessa declaração, muitos outros tratados foram criados para assegurar a dignidade da pessoa e evitar o abuso de poder do Estado, como demonstra o trecho a seguir:

O princípio da presunção de inocência tem seu marco principal no final do século XVIII, em pleno Iluminismo, quando, na Europa Continental, surgiu a necessidade de se insurgir contra o sistema processual penal inquisitório, de base romano-canônica, que vigia desde o século XII. Nesse período e sistema o acusado era desprovido de toda e qualquer garantia. Surgiu a necessidade de se proteger o cidadão do arbítrio do Estado que, a qualquer preço, queria sua condenação, presumindo-o, como regra, culpado (RANGEL, 2010, p. 24-25).

A partir de então inúmeros diplomas legislativos e internacionais adotaram esse princípio em seus ordenamentos, como a Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, em 1969).

 

A tripartição do poder, o Ministério Público e o Garantismo Penal

 

O Garantismo Penal, como já mencionado anteriormente, procura garantir que o Estado preserve os direitos fundamentais e limitar o seu Direito Penal Subjetivo (o Direito de Punir). A tripartição dos poderes também está relacionada a essas finalidades, porque é mais do que uma divisão funcional, é um sistema de pesos e contrapesos, ou seja, cada poder regula o outro, assegurando de que não haja abuso em nenhum deles.

Um exemplo disso é que quem elabora as leis é o Poder Legislativo, ainda que em caso de Emendas Provisórias seja o Executivo quem as crie, mas elas apenas terão força de lei, só sendo, de fato, uma lei caso seja aprovada pelo Poder Legislativo, ao passo que as Leis Delegadas podem ser criadas pelo Executivo, desde que o Congresso Nacional (no caso do Brasil) aprove, ainda podendo voltar atrás na sua decisão (sustar) no caso de abuso de poder do Presidente da República.

Outro exemplo é que apenas o Poder Legislativo da União pode legislar sobre o Direito Penal, podendo os estados legislar apenas com a autorização do primeiro. O Presidente da República com ou sem Emenda Provisória não pode atuar sobre o Direito Penal.

Sobre o Ministério Público há intensos debates sobre a possibilidade de o Ministério realizar os procedimentos investigatórios, mas isso feriria um dos princípios limitadores do Direito de Punir do Estado e um dos axiomas do Garantismo Penal elaborados por Luigi Ferrajoli: o princípio oitavo, denominado Acusatório ou Separação entre Juiz e Acusação, além de transgredir preceitos fundamentais garantistas previstos na Constituição.

Referências Bibliográficas

 

 

ALMEIDA, Débora de Souza. A Teoria do Garantismo Penal em Questão. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/17878/a-teoria-do-garantismo-penal-em-questao>. Acesso em: 29 de outubro de 2013, às 14h34.

 

 

CADEMARTORI, Sergio. Estado de Direito e Legitimidade: Uma Abordagem. Garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

                                                                                         

 

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. Tradução Ana Paula Zomer Sica e outros. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

 

 

FISCHER, Douglas. O Que É Garantismo Penal (Integral)?. Disponível em: <http://metajus.com.br/textos-nacionais/O_que_e%20garantismo_penal_Douglas_Fischer.doc>. Acesso em: 01 de novembro de 2013 às 15hs.

 

 

GENTIL; Plínio Antônio Brito; SANCHES, Samyra Haydeê Dal Farra Naspolini. A Teoria do Garantismo e a Proteção dos Direitos Fundamentais no Processo penal. Disponível em: <http: www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/brasilia/16_654.pdf>. Acesso em: 29 de outubro de 2013, às 12h58.

 

 

LOPES JÚNIOR, A. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. v. I. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

 

 

MACHADO, Leonardo Marcondes. Culpabilidade: Garantia Penal e Processual Penal Contra os Abusos Punitivos. Disponível em: <http://atualidadesdodireito.com.br/leonardomachado/2013/01/07/culpabilidade-garantia-penal-e-processual-penal-contra-os-abusos-punitivos/>. Acesso em: 01 de novembro de 2013, às 14h55.

 

 

MAXWELL. Teoria do Garantismo Penal. Disponível em: <http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/18331/18331_3.PDF>. Acesso em: 29 de outubro de 2013, às 13h.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 17. ed. Vol I. São Paulo: Atlas, 2001.

PIMENTEL, Esimone Felicio. Garantismo Penal e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,garantismo-penal-e-o-principio-da-dignidade-da-pessoa-humana,41163.html>. Acesso em: 01 de novembro de 2013, às 14h53.

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 18. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.