TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

Anderson da Costa Nascimento

1º Capitulo.

Vale ressaltar no capitulo primeiro, um dialogo entre Carlos Brito e seu filho Marcel quando tinha cinco anos a respeito da relação entre Deus e o Poder Constituinte e o filho fez a seguinte pergunta:

P: Meu pai é verdade que Deus tudo pode? R: É verdade, sim, meu filho. Deus tudo pode. P: E se Deus quiser morrer? Diante dessa pergunta ele acaba recompondo a ideia sobre o assunto e afirma. R: Deus tudo pode, é certo, menos deixar de tudo poder. Logo, Deus tem que permanecer vivo, porque somente assim Ele vai prosseguir sendo aquele que tudo pode[1].

Ao dar essa resposta de que Deus não podia morrer, ele termina por confirmar uma coisa e afirmar outra. Confirma a sua crença na existência de Deus e afirma do poder limitado de Deus apesar da crença geral de que ele pode tudo.

Com essa filosofia idealista ou espiritualista Carlos Brito, abre uma discussão que também pode ser aplicada ao Poder Constituinte, tendo em vista a comparação entre Deus e o Poder que, na Ciência Política e na Teoria da Constituição, é chamado de Poder Constituinte.

Numa nova metáfora, Carlos Brito enfatiza que “o Estado é a borboleta em que se transformou a crisálida de uma sociedade humana aspirante a povo” [2]. Na verdade ele quer dizer que nessa cruzada histórica do povo em busca de si mesmo, a finalidade de efetividade interna e externa da personalização jurídica do povo é um novo Estado.

Ainda insistindo na comparação possível entre Deus e o povo, devemos concluir que o povo também não tem, em rigor, o poder imanente de tudo poder. Ele, povo, assim juridicamente designado pelo fato de se organizar em Estado soberano, é o próprio poder de tudo poder, em termos jurídicos e no plano territorial interno. Dá-se, na imagem ideal do povo, a transubstanciação da soberania[3].

Por este ângulo, é de convir que a soberania outra coisa não é, na prática, senão o próprio modo estatal de ser do povo. É como inferir: no justo momento em que a transfiguração estatal se efetiva, num resultado empírico da fusão do poder soberano com o povo (o que significa dizer que o povo e a soberania passam a compor uma só unidade fenomênica, pois o povo é um com a soberania e a soberania é uma com o povo). O povo, impessoalmente encarado, é o poder soberano, tanto quanto o poder soberano, subjetivamente focado, é o povo.

Diante dessas afirmações Carlos Brito questiona que “Sem o povo, a soberania é forma pura, isenta de toda matéria, e, portanto, vazia. E sem a soberania, que é o povo?”.

Reponde dizendo que a Matéria humana coletiva ainda juridicamente privada de sua definitiva forma. Um ser jurídico ainda carente de totalidade, a meio caminho da autoconsciência, porque, nele, a soberania permanece numa dimensão apenas virtual. Daí a asserção de que, sem a incorporação da soberania, o povo não dá a si próprio uma Ordem Jurídica e deixa de se personalizar no Estado. E assim juridicamente incompleto e estatalmente irrealizado é que o povo não consegue superar o estágio político de simples população, que é o inconcluso estágio de crisálida[4].

Continua se perguntando e respondendo, “o que faz o povo ser assim a fonte e o nervo da soberania?” [5].

“E o que é subjetivação do poder mais alto em que a soberania consiste?”.

Responde da seguinte forma “É que o povo, no seu amálgama com o território de que se torna senhor, falando geralmente a mesma língua e vivenciando uma cultura própria, constitui o que se convencionou chamar de nação. Algo mais que sociedade humana, mais que população, muito mais que simples aglomerado de pessoas, por implicar uma verdadeira comunidade (de comum unidade); isto é, uma real comunhão de vida, no sentido de consciência coletiva quanto à partilha de um mesmo destino histórico, por se encontrarem todos em um mesmo barco. Logo, o mais abrangente e impessoal e permanente enlace humano (que é mais do que convivência hic et nunc), de sorte a plasmar um tipo de realidade social que só pode ser o começo de tudo, no plano da Política e do Direito[6].

A soberania popular ou o modo constituinte de ser do povo

É neste ponto de intelecção que o Poder Constituinte, em nada diverge da soberania, por ser ele essa mesma soberania; ou seja, o Poder Constituinte é a soberania que se manifesta de modo inicial ou primário.

Se falarmos assim de primariedade expressional da soberania, é porque o povo nação, já imerso no seu Estado, atua em outros momentos que o Direito Positivo costuma etiquetar como expressão de "soberania popular". É o caso da Constituição brasileira de 1988, cujo art. 14 faz dos institutos do sufrágio universal, do voto, do plebiscito, do referendo e da iniciativa das leis pelos cidadãos uma forma de exercício, justamente, da soberania.

É de se perguntar, naturalmente: e quando ocorre aquela citada manifestação primária da soberania? Manifestação primária, essa, que estamos a identificar com o Poder Constituinte? Não com o Estado?

Coaduna-se com essas reflexões quando ressalta que a soberania se manifesta como Poder Constituinte somente, formal ou oficialmente, no preciso instante da criação jurídica do Estado. Criação que se formaliza, hodiernamente, no corpo de um documento jurídico-positivo cujo nome é Constituição, “(palavra que, no vernáculo, significa a maneira particular de ser de cada coisa ou objeto de conhecimento)” [7].

Quanto à justificativa para o nome técnico "Poder Constituinte", é porque ele significa “o poder de constituir a Constituição, que termina sendo o poder de constituir o Estado e o poder de dar início à montagem do Ordenamento Jurídico do povo e do Estado” [8].

Assim sendo o Poder Constituinte é o poder de constituir a Constituição e não o poder de constituir normas constitucionais. Posto que, a diferença entre as duas coisas é muito importante, porque, se toda Constituição é um feixe de normas constitucionais, nem todo feixe de normas Constitucionais é uma Constituição.

Se toda Constituição originária é um repositório de normas constitucionais, nem todo repositório de normas constitucionais é uma Constituição originária. Isto porque as emendas à Constituição pressupõem uma Constituição originária a emendar. E tais emendas veiculam normas Constitucionais. Porém, sob um regime normativo e sim, pela própria Constituição emendada.

O Poder Constituinte, é a manifestação primária da soberania, faz a Constituição, que, a um só tempo, faz o Estado e inaugura o Ordenamento Jurídico. É esse Ordenamento que vai receber do Estado uma ininterrupta complementação, de maneira a consubstanciar todo o mundo do Direito.

Dizer que existe um Direito originário que o Estado não faz é também dizer que esse Direito é o único a não passar pelo crivo do Estado ou de qualquer outra pessoa jurídica. É que, no momento constituinte, a sociedade é concebida como se de pessoas coletivas não se formasse. Nem públicas nem privadas. Apenas as pessoas físicas é que se tornam protagonistas das ações políticas de que resulta o féretro de uma Constituição e o partejamento de outra[9].

2º Capitulo

“Uma distinção entre o fazer e o garantir das normas jurídicas da seguinte forma, se e o Estado não detém o monopólio da produção do Direito, é, no entanto, a única instância dotada do poder oficial de garanti-lo.” Segue afirmando que "Não existe liberdade que não seja garantida pelo Estado e, ao inverso, só um Estado controlado por cidadãos livres pode oferecer-lhes alguma dose razoável de segurança".

Em ultima ratio, poder e Direito são a primária dicotomia ou os dois mais elementares princípios de organização da vida social. Vida, que, sob o prisma jurídico, se constitui de relações verticais e de relações horizontais. Estas, pressupondo a igualdade de forças entre os respectivos protagonistas, e, aquelas, a superioridade de uma parte sobre a outra. De todo modo, relações que fazem do Direito o complexo das condições existenciais da sociedade, na propalada conceituação de IHERING. Ou como sentenciava TOBIAS BARRETO: "Perante a consciência moderna, o Direito é o modus vivendi, é a pacificação do antagonismo das forças sociais".

O caráter político do Direito posto pelo Poder Constituinte, é na Constituição Positiva que os dois fenômenos culturais se dão mais firmemente as mãos. A Constituição é o Direito que nasce daquele mais originário, daquela vontade que se contém no poder político, como o primeiro ponto formal de encontro ou como o espaço inicial de integração das duas categorias sociais básicas (o poder e o Direito).

 É neste panorama de integração que subjaz ao visual da Constituição como "estatuto jurídico do fenômeno político" (CANOTILHO), ou como "estatuto jurídico do Estado" (JORGE MIRANDA). Não sendo à toa, portanto, o rótulo social e até jurisprudencial-doutrinário que toda Constituição porta de "Código Político" e de "Carta Política” [10].

Em verdade, a Constituição é Código Político, sobretudo pela sua origem e pelo seu objeto. Pela sua origem, é o único poder que funda o Ordenamento e de modo reflexo é identicamente político. Pelo seu objeto, sendo essencialmente o Estado, carreia para a Constituição a politicidade que envolve tudo quanto se refira à estruturação estatal:

O tipo unitário, ou federal, de Estado; a forma republicana, ou monárquica de governo, do Estado; o sistema parlamentar, ou presidencial de governo, do Estado; o modo independente e harmônico de relacionamento entre os órgãos elementares, do Estado; o sistema eleitoral de investidura dos titulares dos órgãos legislativo e executivo, do Estado; a representatividade popular dos órgãos eminentemente políticos, do Estado; a abertura dos espaços de movimentação da cidadania e de criação dos direitos públicos subjetivos como limites à atuação, do Estado, etc.[11].

Nada resta, praticamente, nesse patamar da organização básica do Estado que não seja entranhadamente político.

Se bem observarmos, toda Constituição Positiva se estrutura formalmente em partes que, ora diretamente, ora indiretamente, põem o Estado como tema de conformação.

Diante dessa perspectiva Brito fica inteiramente à vontade para imaginar a Constituição como “a certidão de nascimento e a carteira de identidade do Estado” [12].

Já no tocante ao epíteto de "Carta Política", ele explica por ser “a Constituição uma carta ou estatuto de direitos e garantias fundamentais”, tudo, naturalmente, perante o Estado e o Governo ou por intervenção deles.

O que também confere a esse tema dos direitos e garantias fundamentais (também figurantes a nacionalidade, a soberania popular e a cidadania).

Nessa trajetória relacional do político para o jurídico, ou do Poder Constituinte para a Constituição, o fato que nos parece mais digno de nota reside em que o político não se deixa regrar pelo jurídico.

O Poder Constituinte, não se deixa regrar pelo Direito o que não significa estar ele completamente imune a parâmetros e até mesmo a freios socioculturais, no instante em que elabora a Constituição.

Para Carlos Brito, “tudo tem limite nas coisas ditas humanas e o Constituinte não escapa à contingência de ter que operar tanto compenetrado dos seus incondicionamentos formais e ilimitabilidade material quanto do risco da inefetividade global da sua obra” [13].

Pelo entendimento de Carlos Brito, “o Poder Constituinte como realidade fica do lado de fora da Constituição” [14].

O fato é que o Poder Constituinte está do lado de fora da Constituição. Faz a Constituição, mas sempre do lado externo a ela. Não entra no corpo dos dispositivos constitucionais, porque, se entrasse, aí, sim, passaria a ser uma realidade, conheceria condicionamentos formais e finitude material, como é próprio de toda instituição ou de todo instituto que se torna objeto de norma jurídica.

 Deduz da seguinte forma: “o poder que fica do lado de fora da Constituição, no ponto de partida, fica para sempre do lado de fora”. Ao reverso, “o poder que fica do lado de dentro da Constituição, no ponto de partida, fica para sempre do lado de dentro” [15].

Por outro lado o Poder Constituinte fica do lado de fora da Constituição porque ele não é, nem pode ser criatura da Constituição. É o criador, unicamente, porque ele, sendo a primeira manifestação da soberania, é o próprio povo. É a polis por completo, no preciso instante histórico em que a polis dá a si própria a mais radical das conformações jurídicas: a conformação inicial e superior a todas as outras[16]. 



[1] Brito, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Forense. Rio de janeiro. 2003

[2] Idem

[3] Idem

[4] Idem

[5] Idem

[6] Idem

[7] Idem

[8] Idem

[9] Idem

[10] Idem

[11] Idem

[12] Idem

[13] Idem

[14] Idem

[15] Idem

[16] Idem