Teologia: Imperfeição e Risco

Roberto dos Reis, M.Th.

 

N

ão tenho nenhuma dificuldade com minhas imperfeições e fraquezas, elas não me diminuem em nada. Muito pelo contrário, ressaltam a minha humanidade e, em muitos aspectos, me tornam mais humano. Sim, minhas imperfeições e fraquezas me humanizam à medida que as reconheço e aceito como limites das minhas possibilidades, como ponto de partida da potencialidade que habita em mim. São minhas imperfeições e fraquezas que me possibilitam ver e vi[ver] a plenitude de minha humanidade. Afinal de contas, desejamos sempre mais, queremos ir além, nutrimos um desejo quase que insano pelo desconhecido. Chegar aonde homem algum jamais chegou, explorar o inexplorado, dizer o que nunca foi dito, é isso que nos dá prazer, é isso que nos satisfaz. Como explicar o suicídio consciente dos aventureiros do Aconcágua que, nas montanhas gélidas da Cordilheira dos Andes, desafiam a morte levando o corpo ao esforço extremo? O prazer! O prazer de chegar ao topo e, ali, a vários quilômetros acima do nível do mar, fincar uma bandeira no chão e degustar o sabor daquele momento mágico, só nosso, e de mais ninguém. É interessante que esse prazer perdura nos outros até que um outro aventureiro repita o feito, ou vá a um ponto ainda mais elevado; mas em nós, o prazer é ad eternum, tornando-se nossa mais doce nostalgia. Essa é a dialética dos desafios, a maiêutica da superação.

Quem não se lembra da suíça Gabrielle Andersen-Scheiss que, nas Olimpíadas de Los Angeles (E.U.A), em 1984, surpreendeu o mundo ao cruzar a linha de chegada. Até aqui nada de surpreendente, não fosse o fato de ter chegado na trigésima sétima posição. Seus passos trôpegos, sua respiração ofegante, as câimbras atrozes e sua recusa de amparo pelos para-médicos que, ao longo dos últimos metros, tentavam ampará-la, não foram suficientes para fazê-la desistir de sua meta: completar a prova! O desejo incontrolável de cruzar a linha de chegada, superando os limites físicos e psíquicos de seu próprio corpo e submetendo-se ao risco, a encravaram para sempre na história. Daquelas Olimpíadas em Los Angeles, poucos se lembram da vencedora, a norte-americana Joan Benoit, mas todos se lembram da determinação de Gabrielle Andersen-Scheiss.

Somos humanos, por isso desejamos ardentemente ir além dos limites. Limite e risco são as faces de uma mesma moeda. É essa combinação que nos atrai. O risco é o que nos fascina. Assim, não podemos falar em humanidade sem considerarmos a eterna possibilidade do risco. Talvez seja isso que Lutero tinha em mente quando, em algum momento de sua trajetória disse: “a medicina faz enfermos, a matemática melancólicos e a teologia pecadores”. Teologia é risco. É por isso que nos aventuramos.

É nesse aspecto que Teologia e Arte se dão as mãos na busca pelo infinito e sua natural relação com os limites. Gilbert K. Chesterton[1] (1874-1936), em sua Orthodoxy, assevera que é impossível ser artista e não dar atenção às leis e limites (como pensam fazer os anarquistas), uma vez que arte é limitação. Olhe para os quadros pintados pelos artistas. A moldura é tudo, menos utensílio que fixa a obra na parede da sala, ou adereço que realça a pintura nas exposições dos museus. A moldura, sentencia Chesterton, é a essência de todos os quadros. Se o artista deseja desenhar uma girafa, deve fazê-la da mesma forma como se apresenta: com longas e finas pernas e um grande pescoço. Se, todavia, julgando-se livre de toda e qualquer norma ou limites para o seu processo criativo, desenhar uma girafa com pescoço curto, fatalmente descobrirá que não está livre para desenhar uma girafa.[2] Os limites, a toda evidência, constituem o objeto do artista e, consequentemente, a essência de sua obra. Afinal de contas, um quadro sem moldura não é um quadro; uma escultura sem os contornos que lhe atribuem a forma não é uma escultura. Tire-se a moldura, e perderemos o quadro; tirem-se os contornos da escultura, e perderemos a obra de arte.

Nesse sentido, minhas limitações constituem a minha própria identidade. Minha humanidade, com todas as suas fraquezas e imperfeições, é minha essência, minha constituição. Tire Deus minhas limitações e perderei minha essência; tire Deus os contornos existenciais daquilo que me fazem ser o que sou, e perderei minha humanidade. Serei tudo e qualquer coisa, menos humano.

Um Deus Apaixonado

A obra de arte é resultado da paixão do artista pelas infinitas possibilidades. À medida que se sente livre para criar e, com habilidade, traz para o mundo dos fatos a concretude de sua obra, o artista é conduzido pelos limites. Já se disse que a única tarefa do artista, o escultor, por exemplo, é tirar o excesso da argila e, através da persistência, constância e abnegação, desvelar a escultura subjacente à massa incolor da argila. A mão do artista é guiada pela paixão, pelo desejo incontrolável de ver surgir à sua frente, como uma flor que desabrocha diante dos olhos, o fruto de sua mais íntima inspiração. A escultura, nesse sentido, é anterior ao nobre ato de desvelamento efetuado pelo artista. Os limites o guiarão na mágica tarefa de trazer para o mundo dos fatos, e das possibilidades, a obra de arte escondida. Ela sempre esteve lá, viva na mente criativa do artista e colorida ante seus olhos, mas oculta do mundo. Sabe por quê? Porque o artista consegue vê o que ninguém mais vê. E porque vê o que ninguém vê, é tido como louco. Mas não há insanidade, não há loucura em ver o invisível. Louco é aquele que perde tudo, menos a razão, diria Chesterton. O artista, pelo contrário, vê o que os outros não vêem porque seu coração é diferente. E porque seu coração é diferente, seus olhos também os são.

A Última Ceia, obra de Salvador Dalí (1904-1989). Óleo sobre tela, o quadro tem tudo o que qualquer outro quadro que retrata a última refeição de Cristo com seus discípulos tem: os discípulos à mesa, Jesus, os elementos notadamente pascais, o pão partido, o vinho vermelho cor de sangue. A diferença fica por conta das paredes que formam aquele cenáculo: vidro! Aos olhos de Dali, as paredes não são de pedra, barro ou madeira... São de vidro! Longe do que realmente foram, as paredes de vidro retratam, não apenas a transparência essencial ao momento eucarístico, mas a vastidão daquilo que os olhos podem ver. Olhando a partir do ambiente eucarístico, os olhos do artista mergulham na imensidão do cosmos. Contemplam os pássaros, as árvores, as montanhas, os rios, os mares, o céu, o universo, o infinito. Nessa perspectiva, o que é essencial? É essencial tirar as paredes. Mas se tirarmos as paredes, não haverá mais cenáculo. O que fazer então? A resposta já vimos: Fazê-las de vidro. Portanto, dizemos como Rubem Alves, o essencial é invisível aos olhos. A arte dá essa possibilidade. Isso tudo porque ama, porque deseja. Sendo assim, antes do objeto vem a paixão; antes da existência fática, o desejo. É por isso que Cristo, ante a mesa pascal, olhando para seus discípulos diz: “[...] como desejei comer convosco está páscoa [...]”, Lc.22.5b. Afinal de contas, a fagia do coração (paixão e desejo) antecede ao ato fágico. Comemos primeiro com o coração para depois comermos com a boca.

É interessante que na esfera da arte, a paixão e o desejo antecedem o objeto dessa mesma paixão e desejo; mas na esfera da ciência as coisas mudam, pois o objeto vem antes: “A coisa a si saber é anterior ao próprio saber”,[3] dizia Aristóteles. Isso significa dizer que o objeto não se desvela, não se mostra pela simples exigência da razão cognitiva. A razão, por mais excelente que seja, não encanta o objeto; não é capaz de seduzi-lo a ponto de fazê-lo desnudar-se ante seus olhos. A ciência não é capaz de seduzir a razão, mas a fé sim. É precisamente aí, quando a fé seduz a razão, que nasce a Teologia (BOFF, 1998).

Olhando por esse viés, não me sinto à vontade quando nos trabalhos acadêmico-científicos sou obrigado a estabelecer hipóteses, que são nada mais que possíveis respostas para a inquirição inicial, para a problemática gestadora do meu empreendimento científico. Tenho perguntas, é só o que tenho! Diante do objetum, “aquilo que se lança diante de mim”, só tenho indagações, e qualquer resposta, ou pretensão de resposta, pode obnubilar a verdade. E a verdade do objeto está no próprio objeto. Logo, se, como escreveu Aristóteles, a coisa a si saber vem antes do próprio saber, é evidente que o objeto é a medida desse mesmo saber, ou seja, na ciência é preciso deixar-se conduzir pelas mãos das coisas. É o objeto, em sua mais simples realidade, que ensina o caminho a ser percorrido.

Para alguns, quem pergunta é porque fatalmente conhece a resposta. Entretanto, quem pergunta, o faz não porque conhece, mas porque crê. Em outras palavras, questionamos não porque sabemos, mas porque cremos. E quem crê, naturalmente deseja saber o que é mesmo aquilo que acredita. Quem acredita deseja saber, pois a fé tem dentro de si a curiosidade. É Santo Anselmo quem diz: “fides quaerens intellectum”, ou seja, “a fé buscando entender”, buscando ver com a inteligência aquilo que já viu com o coração. Isso é possível porque o amor é um dos elementos intrínsecos da fé. Quem ama pensa, divaga, medita.

Em sua Suma Teológica, Santo Agostinho (1225-1274) diz que é no fervor da fé que se ama a verdade que se crê, revolvendo-a no espírito, abraçando-a na busca pelas razões do seu amor. Pois, segundo o próprio Agostinho, o amante não se contenta com uma apreensão superficial do amado, pelo contrário, ele deseja refletir no seu interior tudo o que se refere ao amado, a tal ponto de habitar nele.

            É precisamente neste momento que achamos um ponto em comum entre ciência, arte e teologia: o amor, o desejo, o prazer. Não se faz ciência, arte ou teologia sem a centelha do amor, sem a chama do desejo, sem o gosto do prazer. Sem desejo nada que o homem faz é bem feito. Sem desejo não há desenvolvimento científico; não há produção artística; não há teologia. Os caminhos podem não ser os mesmos, pois a natureza das coisas dita os métodos próprios para se chegar a elas, mas, chegue aonde chegar, o Sagrado estará presente. Inexpugnável, diria Kujawski[4], mas presente; talvez não da forma como imaginamos, ou do jeito como aprendemos nas Universidades ou Seminários, mas, fatalmente, Ele estará lá.

Concluo dizendo que, uma coisa que precisamos aprender e contra a qual relutamos a vida inteira, é que o Sagrado não segue nossa cartilha! Não lê nossos compêndios de Teologia Sistemática; não assume os contornos que Lhe damos em nossas proposições teológicas; não Se importa com aquilo que dizemos a Seu respeito em nossos hinos ortodoxos, em nossas liturgias sacralizadas e em nossos posicionamentos fundamentalistas; não Se convence com nossas argumentações eclesiásticas e denominacionais; não Se deixa levar por nossas elaborações filosóficas e neurolinguísticas; não Se encanta com a beleza transitória de nossos templos ou com o esplendor de nossas indumentárias clericais. O Sagrado, ao contrário de tudo que pensamos a Seu respeito, tem outros gostos, anda por lugares inimagináveis e diz coisas inesperadas. É por isso que é fascinante e majestoso, dizia Rudolf Otto (1869-1937).

O sagrado é quem nos encanta e fascina. Tal como Moisés ante o vislumbre da hierofania divina na sarça ardente, somos atraídos por Ele e para Ele. Atração e repulsa, como faces de uma mesma moeda, conjugam-se como ingredientes indispensáveis nessa que se tornou a maior e mais fascinante de todas as odisseias: a compreensão do Sagrado.  É nesse aspecto que a Teologia se torna a mais insana e arriscada de todas as ciências. Afinal de contas, Deus não cabe em nossa cabeça! E, mesmo assim, dizia João Kolenda Lemos (1922-2012), somos atrevidos, correndo por lugares onde os anjos caminham na ponta dos pés.



[1] CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. São Paulo: Editora Mundo Cristão, 1ª Edição, 2008 (terceira reimpressão).

[2] Idem.

[3] Metafísica, I, X (I), cap. 06, 1057, apud Tomás de Aquino, Suma Teológica.

[4] KUJAWSKI, Gilberto de Mello. O Sagrado Existe. São Paulo: Editora Ática, S/E, 1994.