Teologia e Humanidade

 

Roberto dos Reis, Th.

Teologia e humanidade andam de mãos dadas. Faço teologia porque sou humano; sou humano, por isso faço Teologia. A justificativa para isso está, em primeiro lugar, no fato de não haver homem na face da Terra que, por algum momento se quer, nunca tenha indagado sobre a divindade. Seja ele quem for, civilizado ou não, e habite onde habitar, na mais organizada civilização ou na mais distante e esquecida comunidade tribal, o homem se defronta com o indiscutível Sentimento de Dependência Absoluta; em segundo lugar, não existe uma Teologia Angélica, uma Teologia elaborada pelos anjos, não pela ausência de condição ou capacidade para tal, afinal de contas, os anjos são testemunhas oculares dos grandes feitos do Criador. Estavam lá quando o Senhor, de um punhado de terra vermelha tirada de um lugar qualquer da vasta região da Mesopotâmia (atual Iraque), fez o homem à Sua imagem e semelhança; estavam lá quando o próprio Senhor, abdicando dos atributos de Sua divindade (Fp.2.6-7), assumiu a forma humana, submetendo-se às mais atrozes provações (cansaço, sede, fome, frio, angústia etc.); estavam lá quando o Senhor, andando pelas ruas empoeiradas da Palestina e vivendo a vida normal como qualquer outro aldeão israelita, explicitou a plenitude de sua humanidade na resignação da obediência à vontade de Deus-Pai; estavam lá quando o próprio Deus, encarnado em Seu Filho, tomou o cálice amargo do desprezo e da morte (Mt.26.39; Mc.14.32-42; Lc.22.39-46).  

Entretanto, a despeito de todo o cabedal informativo do qual são detentores, aos anjos não foram facultados o privilégio da produção teológica. Portanto, não há que se falar em produção intelecto-angelical. Paulo, escrevendo aos crentes da Galácia diz: “[...] ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie outro evangelho além do que já vos tenho anunciada, seja anátema”, Gl.1.8. Observe que o apóstolo não coloca em descrédito a possibilidade de o anjo ser verdadeiro: “[...] um anjo do céu [...]”, mas descarta a possibilidade dele comunicar uma verdade que transcenda àquela disposta nas Escrituras Sagradas, ou mais precisamente, às verdades reveladas aos homens. Pois a nós, seres imperfeitos, limitados e frágeis, é que o eterno Senhor confiou as mais indescritíveis revelações e não aos anjos, seres perfeitos e despidos de toda e qualquer fraqueza. Mas, qual o problema com a fraqueza? Por que alguns cristãos sentem-se incomodados com o fato de, em dada circunstância, não serem capazes de exibir força descomunal? A impressão que se tem é que no solo de nossa realidade existencial devemos nos apresentar como infalíveis, como super-homens, seres além a toda e qualquer possibilidade de fracasso. Esta é uma das grandes falácias arquivais: a perfeição plena do homem.

Chegando-se a Eva, quando ainda estava no Jardim, no Éden, Satanás lhes diz: “[...] Certamente não morrerás. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal”, Gn.3.4-5. A proposta feita à mulher era de perfeição absoluta: “[...] sereis como Deus, sabendo o bem e o mal”. Esta era a proposta feita pelo coração de Lúcifer a ele mesmo: “[...] Eu subirei ao céu, acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono, e no monte da congregação me assentarei [...]. Subirei sobre as alturas, e serei semelhante ao Altíssimo”, Is.14.13-14.

Paulo, trucidado por uma enfermidade que, a despeito de todas as interpretações exegéticas disponíveis, ainda continua uma incógnita, clama repetidas vezes ao Senhor para que lhe arranque o que ele chama de espinho na carne. A resposta divina é elucidativa: “A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza”, 2Co.12.9a. A isto o apóstolo aos gentios exclama: “[...] de boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas para que sobre mim repouse o poder de Cristo”, v.9b. A fraqueza, neste contexto específico, é a porta de entrada para a sublimidade do poder de Cristo na vida do apóstolo. Ele não é condenado pelo fato de ser portador de uma enfermidade debilitante, que lhe incomoda constantemente como um espinho, alojado na carne que, a cada movimento, lhe traz dores lancinantes. Pelo contrário, a exegese que faz da situação é extremamente positiva. O espinho, ao contrário do que se poderia imaginar, tem uma função pedagógica, corretiva: “[...] para que não me ensoberbecesse com a grandeza das revelações [...]”, v.7a.

A dor e o desconforto provocados pela presença do espinho ser-lhe-iam extremamente necessárias nas suas jornadas teológicas, fazendo-o lembrar que a glória e o louvor pertencem unicamente a Deus. Ao se referir a esta enfermidade, Paulo utiliza o termo grego "skólops" que, traduzida para o português como espinho, evoca a ideia de uma estaca utilizada em torturas ou uma laça pontiaguda com a mesma função. De uma forma ou de outra, a realidade do espinho na vida do apóstolo desmistifica nossas ideias a respeito de nossas limitações, e as fraquezas passam a ser vistas como excelente ocasião para manifestação da graça: “[...] porque quando sou fraco, então é que sou forte”, 2Co.12.10c. Eis aqui a incursão que todo teólogo deve fazer, seja ele quem for, tradicional ou pentecostal, culto ou inculto: “levar cativo todos os pensamentos a Cristo”, 2Co.10.5b. entendendo que tudo o que se diz ou se escreve, para Deus se diz ou se escreve: “[...] porque por ele e para ele são todas as coisas”, Rm.11.36b. Se assim fizéssemos, não haveria teologias vergonhosas, nocivas e divorciadas das verdades basilares das Sagradas Escrituras. Afinal de contas, somos a teologia que produzimos, porque produzimos exatamente aquilo que somos, nem mais nem menos, aquém ou além, daquilo que somos.

A Teologia é Nossa

Quando ainda cursava a pós-graduação em Ciências da Religião, na cidade paulista de São Bernardo do Campo, no final de década de 1990, o coordenador do curso de pós-graduação daquela Universidade trouxe para a preleção áurea de abertura do semestre um dos mais conceituados teólogos brasileiros. Particularmente sempre nutri grande admiração por seu pensamento e, não de admirar, apreciava suas obras. A coragem com que expunha suas elucubrações e a ousadia com que enfrentava os críticos de sua teologia me cativaram ao longo dos anos. Entretanto, naquele dia ele não foi feliz. Ante os olhos estatelados daqueles universitários, boquiabertos diante do vasto conhecimento daquele sexagenário pensador, o ilustre orador disse, de forma veemente e convicta em um dado momento de sua prédica: “Não preciso de nenhum de vocês... Não preciso de Universidade [...] ela é que precisa de mim”.

Não pretendo tirar os méritos de sua maior idade intelectiva, a final de contas, um pós-doutorado ou uma livre docência pressupõem muitos anos de estudo e pesquisa, mas, subir num pedestal e declarar em alto e bom som que não precisamos uns dos outros, que somos auto-suficientes e que ninguém tem nada a nos ensinar, é dar um tiro no próprio pé, é renegar a própria história. Não, não deixei de ler seus livros; não deixei de admirar sua coragem expositiva e, apesar de tudo, ainda deleito-me com sua capacidade de reflexão e sua habilidade com as palavras. Entretanto, aquele incidente, se é que posso chamar assim, conduziu-me à reflexão.

Lembro-me, por exemplo, do nosso eminente mestre brasileiro, Paulo Freire. Educador e, acima de tudo, inquiridor dos métodos utilizados na educação, Freire sempre questionou o que ele chamava de Educação Bancária. “As pessoas”, dizia ele, “têm algo a ensinar”. Os alunos não são tábuas rasas que o professor marcará com seu infindável conhecimento, como se os alunos fossem recipientes vazios a serem cheios do conhecimento que ele, professor, é detentor. Pelo contrário, há uma troca, uma verdadeira simbiose de conhecimentos, onde se aprende à medida que se ensina e se ensina à medida que se aprende. Afinal, ninguém sabe demais que não necessite aprender, e ninguém sabe de menos que não possa ensinar.  

Pois bem, conheci Paulo Freire já no final de sua vida e até onde sei, nunca escreveu nenhum tratado ou compêndio sobre Teologia. Entretanto, poucas pessoas produziram Teologia como ele. Lembro-me como se fosse hoje: o pequeno cinema da cidade de Pindamonhangaba (não existe mais!), no interior do Estado de São Paulo, estava praticamente lotado. Professores e professoras da rede municipal participavam de um seminário promovido pela Delegacia de Ensino daquele município. Na época, eu era apenas um seminarista e, recebendo um convite para participar daquele seminário, não pensei duas vezes. A palestra, que gravitou em torno do tema “Leitura do Mundo”, foi magistral e inesquecível. Num dado momento de sua fala, quando mencionou a questão da exclusão dos menos favorecidos, Freire, qual pregador pentecostal num culto de domingo, esbravejou: “Não creio num Cristianismo que exclui o negro [...] Não creio num Cristianismo que exclui o aidético [...] Não creio num Cristianismo que exclui a prostituta, o aleijado, o pobre, o cego, o nu [...]”, e arrematou sob inflamados aplausos: “Vão pro inferno com essa Teologia da exclusão”. Os ouvintes foram ao delírio, ovacionando o ilustre mestre. Meus olhos encham-se de lágrimas e, como Paul Tillich diante de Guernica[1] (obra de Pablo Picasso, de 1937), senti a presença de Deus. Ali, naquele cinema; ouvindo alguém que a Igreja e a Academia não reconhecem como Teólogo.

Olhemos as produções teológicas das últimas décadas, para as coletâneas teológicas do século XX e veremos a ausência de nomes como Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Adélia Prado, Cecília Meireles, Guimarães Rosa, Mário Quintana, Patativa do Assaré, Carlos Drumond de Andrade, Oscar Niemayer e tantos outros. Porque? Por que não são teólogos, responderiam alguns. Quem foi que disse? Torno a perguntar. Há muito mais teologia nas produções que não se dizem teológicas do que nas que se rotulam como tais. Afinal de contas, como ler as obras de Freire e não ver a preocupação com a educação essencialmente atrelada à liberdade; como lê os textos de Darcy Ribeiro e não perceber a sensibilidade com a história de seu povo, história que conscientiza, que confere o sentido de ser brasileiro; como ler e ouvir as poesias de Adélia Prado, Cecília Meireles, Mário Quintana, Patativa do Assaré e Carlos Drumond de Andrade sem viver a efervescência das emoções, dos sentimentos, do coração; como é possível ler Grande Sertões Veredas, de Guimarães Rosa, e não vislumbramos a forma como o homem simples interpreta o Sagrado, vive a vida e encara a morte; como é possível ver a obra arquitetônica de Oscar Niemayer e não nos rendermos à beleza dos traços ousados e inconfundíveis daquele que é o maior arquiteto brasileiro.        

Estas são algumas das realidades que nos tocam de forma plena: liberdade (escravidão), consciência (inconsciência), sensibilidade (insensibilidade) e simplicidade (arrogância). Vivemos isso todos os dias e, queiramos ou não, oscilamos entre um pólo e outro. Num instante desfrutamos a plena liberdade, noutro agonizamos como pássaro preso numa gaiola sutilmente colocada à beira do caminho; num instante temos a mais cristalina consciência, sabemos de tudo, conhecemos todos os caminhos e nada nos é estranho, mas de repente, tudo se torna obscuro, a consciência passa a não fazer mais sentido, o conhecido torna-se inóspito e os caminhos dantes familiares revelam-se perigosos; num instante somos facilmente tocados pela beleza da mais bela flor, nos encantamos com o gorjear do mais simples dos pássaros, noutro, tornamo-nos gélidos como o Himalaia e insensíveis a todo e qualquer afeto; num instante revelamo-nos simples como o mais inocente dos gestos, franciscanos no pensar, no falar, no agir, noutro somos impiedosos habitantes da arrogância. Oscilamos, queiramos ou não, entre estes pólos, somos hóspedes rotineiros destas duas realidades.

É neste contexto que as teologias surgem e re-surgem, nascem e re-nascem. É o eterno devir[2] das elucubrações da vida, é a fênix dos nossos devaneios, pois a todo o momento interpretamos as coisas (e a nós mesmos), fazemos a leitura de tudo, nada nos escapa. Somos geneticamente inquiridores. Tudo por conta de nossa própria existência. Foi para isso que fomos criados, forjados do barro vermelho da Mesopotâmia para, antes de retornarmos ao nosso estado primitivo, nos lançarmos na imensidão das coisas num verdadeiro projetar-se para fora, num enamoramento constante e audacioso com a Ultimidade Ontológica[3], a razão última de todas as coisas. Essa é a nossa condição. É o estigma da superação, do tornarmo-nos humanos projetando-nos para fora, para além do invólucro, para além de nós mesmos, numa luta desesperada pela liberdade. Isso significa dizer que só seremos plenamente humanos, sendo super-humanos, indo além daquilo que vemos no espelho, além da imagem distorcida daquilo que aparentemente somos. Eis a razão de nossas produções, eis a alma da Teologia, e a vida, seu ateliê.   

A vida, portanto, é produtiva. Enquanto vivermos, seja em que condição for, num palácio como Salomão; num deserto como Isaías; num alto posto diplomático como Daniel ou atrás de bois como Amós, a exegese das coisas será o transpirar natural de nossa própria existência. A Teologia, a rigor, é em sua essência o resultado da dialética da vida, não o produto de debates acadêmicos ou de vociferações filosóficas. É isso que precisamos entender: a vida. E a vida é o que é por si mesma e a Teologia, consequentemente, o resultado natural da vivência. É por isso que fazemos Teologia todos os dias, pois todos os dias vivemos a vida e fazemos dela, seja de que forma for, a exegese de nossa existência. Neste sentido, a Teologia não é hóspede da mente, simples enxertos neuronais, sínteses que se materializam em livros estacionados em bibliotecas, obras literárias esquecidas nos sebos ou colecionadas por pseudo-intelectuais. Pelo contrário, é pele que cobre o corpo, é cheiro que nos identifica. Talvez seja por isso que os liberais são excêntricos e recatados os ortodoxos.

  

Vendo por esse prisma, conseguiremos enxergar Teologia em tudo. Seja na resposta despretensiosa e inocente que o sertanejo dá para a chuva que cai ou na explicação científica que o meteorologia emite a partir das infindáveis parafernálias tecnológicas à sua disposição. Tanto este quanto aquele não estão em lados opostos de uma mesma realidade, pois a realidade comum não é a chuva que cai, mas a vida que se vive. Ademais, os inimigos não surgem da concordância, é na discordância que os elegemos e nos fazemos como tais, passando a enxergá-los não como pares, mas como “outros”. Eis o grande perigo, o desconforto, o fanatismo, o fundamentalismo: Enxergar a partir de mim, e os que estão além, “outros”. É por isso que Cristo, em Sua oração sacerdotal, pediu ao Pai que anulasse essa perspectiva do “outro”: “[...] que eles sejam um, assim como nós um somos, para que o mundo creia [...]”, Jo.17.21b. Se a igreja tivesse compreendido isto, sua história não seria chamuscada pela fumaça das fogueiras da inquisição ou marcada pela mordaça dos incontáveis silenciados. Rudolf Otto que me perdoe, mas o Totalmente Outro[4] está mais perto do que se imagina. É por isso que fazer Teologia não é privilégio de uns poucos iluminados. Quem disse que para fazer Teologia é necessário passar pelos seminários? Quem disse que é necessário o domínio da exegese e da ciência hermenêutica ou do conhecimento dos grandes teólogos do século vinte para dizer o que pensamos sobre Deus? Quem constituiu as Cátedras, as Universidades, as Faculdades e os Seminários como gestores, legitimadores e juízes da produção teológica? Atrelar a validade e veracidade do conhecimento teológico ao cabedal intelectual institucionalizado é desumanizar a Teologia, é negar-lhe sua origem, é tirar-lhe aquilo que ela tem de mais valioso: a simplicidade da prédica e a realidade da vida. A Teologia, portanto, é a verdade, e a verdade é sempre verdade, esteja ela onde estiver.



[1] CALVANI, Carlos Eduardo B. Paul Tillich: aspectos biográficos, referenciais teóricos e desafios teológicos. Paul Tillich: trinta anos depois. São Bernardo do Campo, nº 10, pp.11-35, Julho 1995.

[2] KUNDERA, Milan. A Insustentável Leveza do Ser. 1ª ed., Rio de Janeiro: rioGráfica, 1986.

[3] TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. 1ª ed., São Paulo/São Leopoldo, S/D.

[4] OTTO, Rudolf. O Sagrado. 1ª ed., São Bernardo do Campo/São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista/Programa Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, 1985.