RESUMO 

Este trabalho objetiva abordar como a organização do ensino através da metodologia de temas geradores na educação infantil pode favorecer uma educação transformadora e qual é o papel do professor neste processo. Busca ainda, contribuir com as reflexões acerca da necessidade de ruptura da educação conservadora e da concretização de uma educação significativa e humanizadora.  Para este ensaio, foram realizados estudo de caso na Escola Municipal de Educação Infantil Fada Madrinha, localizada em Cachoeirinha/RS, referente a sua prática e organização pedagógica, pesquisa documental e revisão bibliográfica. Através deste estudo foi possível perceber que a metodologia dos temas geradores contribuem de forma significativa para o sucesso da educação popular e é capaz de ressignificar a prática educativa. Além disso, evidenciamos que a pedagogia transformadora requer que os educadores estejam pautados, em suas concepções, nos princípios de uma educação libertadora.

Palavras-chave: educação transformadora – educação infantil – tema gerador - Paulo Freire

ABSTRACT

The objective of this paper is to approach how the organization of the education teaching, through the methodology of generators themes in children´s education, can result in a transformer education and the teacher`s role in this process. Besides, this paper searches  also to contribute with ideas about the necessity to break off between the traditional  conservative education and the concretization of a significant and humanizing education. For this essay cases studies were effected at Municipal School of Children Education Fairy Godmother, located in Cachoeirinha/RS, concerning about its pedagogical practice and organization, documentary research and bibliographic review. By this paper it was also possible to realize that the methodology of generators themes contributes successfully for popular education and is able to resignify the educational practice. And otherwise, it was found out that the transformer pedagogy  requires that the educators  teachers be tuned in with the principles of the Liberating Education.

Key words: Transformer Education - Children Education - Generator Themes – Paulo Freire.

INTRODUÇÃO

A educação tem passado por inúmeras mudanças ao longo dos anos, conquistando avanços e quebrando paradigmas. Nesta caminhada percebeu-se a importância da mesma estar aliada às questões sociais, aos conteúdos da vida, à relação homem-mundo, trabalhando em prol de uma transformação há muito desejada. Para tanto, sabe-se que é necessário ressignificar as práticas e concepções pedagógicas e romper com as amarras da educação conservadora. Nesta perspectiva, propomos um estudo que possa evidenciar como o trabalho organizado a partir dos Temas Geradores pode favorecer as aprendizagens, entendidas aqui como concepção de mundo, com vistas à transformação da realidade.

Para contribuir com tais reflexões é que este artigo foi redigido, na expectativa de encontrarmos inspiração e conhecimento para a concretização de uma pedagogia ressignificada, que vise a formação integral dos sujeitos. Inicialmente, procuramos compreender a proposta dos temas geradores a partir dos ensinamentos de Paulo Freire, investigando também a origem desta metodologia. Em seguida, buscamos refletir criticamente sobre a experiência da Escola Municipal de Educação Infantil Fada Madrinha, no que tange a sua prática pedagógica através do trabalho com os temas geradores, analisando sua trajetória e os resultados obtidos a partir desta organização do ensino. Por fim, é feita uma contextualização quanto a necessidade de mudança da educação, contrastando a concepção libertadora e a bancária, salientando a postura e o fazer pedagógico dos professores que buscam uma educação transformadora.

Este trabalho não tem a pretensão de esgotar o tema, mas de refletir sobre ele, à luz da teoria e das reflexões de autores que já estudaram sobre essa importante temática. Ao explicitar a experiência positiva vivida pela Escola Fada Madrinha a partir do trabalho com os temas geradores, desejamos despertar em outros educadores e demais interessados o encantamento pela proposta e seus desafios, abrindo caminho a novos possíveis.

1 TEMA GERADOR: A METODOLOGIA PEDAGÓGICA QUE ULTRAPASSA OS MUROS ESCOLARES

Pensar sobre o Tema Gerador, enquanto proposta metodológica para a educação, nos instiga a refletir sobre a concepção progressista libertadora. Concepção esta, inspirada e fundamentada pelo mestre Paulo Freire, o qual, através de sua vasta obra nos faz repensar a educação por um viés, até então, por poucos percebido.

Paulo Freire, um homem simples, nascido em Pernambuco no ano de 1921 foi um educador nato. Suas concepções eram e ainda são inovadoras, pois entende a educação como movimento dialógico, libertador, político, crítico, transformador. Sua vasta experiência, no Brasil e fora dele, todas com viés para as classes populares, resultou em grandes obras literárias, sendo considerado o período mais fértil de suas reflexões entre meados dos anos 50 e 60. Foi nesta época que ele organizou e liderou inúmeros movimentos de educação e cultura, especialmente no que se referia a alfabetização de adultos.

Foi na área da alfabetização que Freire passou a disseminar a proposta dos Temas Geradores, à medida que, em sua própria prática alfabetizadora buscava subsídios na realidade sociocultural do grupo com o qual trabalharia, fazendo inicialmente uma investigação do universo vocabular dos alfabetizandos. A partir da realidade dos educandos, os quais neste caso eram trabalhadores rurais, considerando seu cotidiano, suas angústias, seu vocabulário, Freire retirava as palavras que pareciam ser mais significativas e problematizadoras, as quais foram denominadas de palavras geradoras. Seriam estas palavras que comporiam o conteúdo programático desta classe de educandos.

A íntima relação que Freire estabelecia entre linguagem, pensamento e realidade, aliada à sua determinação em processar uma alfabetização que fosse substantivamente política, crítica e conscientizadora, impunha que a “palavra” não mais fosse alheia, estranha, alienada e desiderada do educando. Precisava ser sua “palavramundo”(CORAZZA, 2003, p.23).

Assim, considerando as palavras comumente utilizadas pelo grupo, carregadas de emoções, de experiências, de identidade das pessoas que o compunham, Freire organizava sua prática alfabetizadora, ou seja, o “Método Paulo Freire de Alfabetização de Adultos”. Prática esta que era significativa, conscientizadora, repleta de significado político, humano, que tinha por objetivo gerar ações transformadoras de vida. Sobre a magnitude desta concepção de alfabetização, nos lembra Corazza:

As palavras da vida (vívidas e vividas) organizadas didaticamente, para que o sujeito construa a apropriação do código escrito, possibilitam que ele se interrogue, se diga e se escreva. Não há “conhecimento acumulado pela humanidade” que substitua, qualificadamente, esta abertura para o sujeito onde, antes, se lhe calavam com um saber, de outros (2003, p.24).

É neste contexto que a alfabetização com o Método Paulo Freire se dava. Adquiria-se o código escrito, aprendia-se as questões fonéticas, semânticas, analíticas, sintáticas e todas as demais que se fazem necessárias na aquisição da linguagem escrita. Porém, jamais esquecia-se, como afirma Maciel (1963), do teor de conscientização da palavra geradora e das reações socioculturais que esta pode gerar no sujeito ou no grupo que a utiliza. É nesse sentido que as palavras tornam-se geradoras. Geradoras de práxis (ação-reflexão-ação), de conscientização, de valorização pessoal e humana, de libertação. Geradoras de sujeitos pensantes, críticos, transformadores de realidade, responsáveis pelo avanço ou pela estagnação de suas próprias vidas. Geradoras de homens e mulheres que passam a olhar para si e perceber o quão líderes, sábios, articuladores podem ser e o são. Geradoras de conhecimentos sim! Mas não de conhecimentos vagos, pré-selecionados, pouco ou nada interessantes para a vida prática, para a vida cidadã, os quais comumente vemos em nossas escolas atuais. Talvez por isso, a Pedagogia Progressista Libertadora, o ainda pouco conhecido método Paulo Freire, o trabalho com os Temas Geradores, tenham sido alvo de muitas críticas em relação ao ensino escolar, sendo considerado por muitos, como uma “prática vazia”, “sem conteúdos de ensino”, aplicável somente em educação não-formal, como erroneamente sugere Libâneo (1985, p.32).

Estas vivências de alfabetização se davam sempre em movimentos dialógicos, participativos, que visavam a construção da relação educador-educando onde os papéis são alternados, ou seja, a medida em que todos ensinam, todos também aprendem. Ambos são sujeitos do ato do conhecimento. Dialogando, problematizando, conscientizando e se apropriando da realidade em busca de sua transformação é que o conhecimento é autenticamente construído.

Este pensamento político, ousado e transformador de Paulo Freire não foi aceito por muitos, especialmente na época da Ditadura Militar. Diante desses desafetos, Freire, que tanto já havia feito pela educação popular, precisou exilar-se no Chile após o golpe militar de 64. E foi aí que ele reformulou sua teoria inicial, que referia-se mais diretamente à alfabetização de adultos e criou a metodologia dos “Temas Geradores”, ampliando e enfatizando a investigação temática como necessária para a descoberta dos conteúdos com significado concreto para a vida dos educandos.

É nesse sentido que o trabalho com os temas geradores ultrapassam os muros escolares. A investigação possibilita que o educador se aproxime ainda mais dos educandos, e despido de preconceito possa compreender sua realidade, seu modo de vida, seus anseios e suas necessidades. Informações necessárias para que se possa perceber o cenário da educação, e construir, juntos, seu enredo. Enredo este, que é único para cada comunidade ou grupo, que é significativo, que é gerador. E por assim ser, pode desdobrar-se em outros tantos temas, em outros enredos, ampliando as possibilidades de discussão e de construção de aprendizagem. Conscientes da situação concreta, de sua inconclusão enquanto sujeito, de sua relação com mundo e da problemática vivida, os educandos são desafiados, a nível cultural e prático, a transformar sua visão de mundo e, por consequência, a realidade.

Nesta metodologia, os temas oriundos da vida concreta tornam-se o centro do processo educativo e através da dialogicidade, inicia-se um movimento de práxis, ou seja, parte-se da prática, teoriza-se sobre ela e volta-se à prática para transformá-la. Aí podemos encontrar o sentido da palavra gerador: “aquele que gera, que faz nascer algo novo” (CORAZZA, 2003, p.20). É o que se poderia chamar de educação para a vida.

2 O TEMA GERADOR VIVENCIADO NA EDUCAÇÃO INFANTIL: O CAMINHO SE FAZ CAMINHANDO

Buscando inspiração em Paulo Freire, a Escola Municipal de Educação Infantil Fada Madrinha, localizada em Cachoeirinha/RS, passou a organizar sua prática pedagógica através da metodologia dos Temas Geradores. Os estudos sobre esta temática iniciaram em meados dos anos 2000, com a construção da Proposta Político-Pedagógica (PPP), porém somente em 2008, após ter propriedade do que compõe a educação libertadora e a democrática aprovação pelo grupo de trabalho, a metodologia foi colocada em prática.

A concepção de uma educação popular, que visa um fazer educativo que aborde os “conteúdos da vida” e a consequente transformação da realidade local, surgiu com a mudança de administração do município. Encantadas por essa nova perspectiva, as educadoras da EMEI Fada Madrinha passaram a buscar subsídios teóricos sobre a Educação Libertadora e perceberam, após contrastar com outras metodologias, tais como Pedagogia de Projetos e Centros de Interesse, que o Tema Gerador seria capaz de envolver não somente os educandos, educadoras e funcionárias, mas toda a comunidade escolar, estendendo a educação aos pais, familiares e demais interessados. Em uma escola e em uma comunidade que era carente “de tudo”: de recursos materiais, de infraestrutura, de alimentação, de valorização, de autoestima, de vez e voz, algo necessitava ser feito para mudar este cenário! Ainda não se sabia bem como, mas a conscientização através das vivências diárias e dos estudos sobre uma possível mudança fez com que o grupo de trabalho assumisse seu papel enquanto transformadores sociais e acolhessem esta comunidade, já tão sacrificada pela situação. Desta forma, buscou-se despertar nela o desejo de libertação e a tomada de consciência ao também assumir-se como sujeitos de sua jornada. Movidas por esse desejo, o grupo de trabalho buscou orientações com a Assessoria Pedagógica da Secretaria de Educação e com profissionais que já haviam experienciado esta vivência em escolas de Porto Alegre/RS. Porém percebeu, como lembra Freire, que o caminho se faz caminhando e que seria necessário construir sua própria trajetória.

Conscientes da necessidade de mudança e de sua responsabilidade acerca deste novo caminhar, educadoras, funcionárias e gestoras se aventuraram na experiência das investigações temáticas, utilizando como ferramenta a pesquisa socioantropológica. Esta, realizada através de visitas às casas das famílias, é orientada por um questionário semiestruturado, o qual apenas norteia a investigação, pois o que realmente a enriquece são as conversas, os desabafos, as percepções e os vínculos estabelecidos. É isso que evidencia a forma de viver e pensar deste povo. A conversa sobre diversos temas, tais como questões socioculturais, socioambientais, saúde, lazer, religiosidade e educação, sobre os quais as respostas são fielmente registradas pelo educador-entrevistador, é que irão compor a tabulação da pesquisa e a origem do tema, seu contra-tema e seus eixos. A tabulação dos resultados da pesquisa é realizada pelo coletivo da escola. Nesta ocasião, todas as respostas e anotações tornam-se conhecidas pelo grupo e são extraídas as situações limites, as quais são discutidas e problematizadas até que se encontre a situação mais significativa para o momento, sendo esta eleita como o Tema Gerador. Percebendo as falas dos entrevistados, os educadores (entendidos ao longo deste texto como professores, funcionários e gestores), vão conhecendo e reconhecendo a comunidade. Conforme explicita a PPP da escola (2011), vão percebendo a realidade, procurando entendê-la e ressignificá-la, com o objetivo de contextualizar o ser humano e os grupos sociais num determinado momento histórico, aproximando a instituição com a comunidade da qual faz parte, buscando compreender o que os adultos e as crianças pensam a respeito de suas vidas, seus desejos, seus sonhos, seus medos, suas satisfações e insatisfações. Assim, são obtidos os dados para a construção de um projeto comum à escola, com duração de dois anos, que contemple toda a comunidade escolar, construindo uma nova perspectiva de trabalho na instituição de Educação Infantil, por meio da construção de um currículo contextualizado, significativo e transformador (PPP, 2011).

O primeiro tema gerador da escola, obtido no ano de 2008, referia-se a participação dos pais na vida escolar de seus filhos. A frase dita por um dos entrevistados: “Se a família não vai à escola, a escola deve ir a família” foi eleita como a mais significativa, a situação limite. O grupo entendeu que era necessário desacomodar os pais, pois caso contrário, estes permaneceriam inertes, estagnados, à parte da educação dos filhos, aguardando o dia em que a escola iria ao seu encontro. Era fundamental que a família se fizesse presente no contexto escolar e principalmente na educação das crianças, uma vez que esta deve ser resultante da parceria escola-família. Para trabalhar o tema, o grupo aponta o contra-tema, o qual é obtido através da análise, da problematização e do olhar crítico dos educadores. O contra-tema é a alavanca do processo, pois baseado no que se quer alcançar encaminha para a possibilidade de mudança. Em 2008, o contra-tema resumiu-se na seguinte frase: “A conquista de uma vida melhor dependerá da ação e participação de cada um, pois unidos faremos a diferença”.

Muitas foram as conquistas na estreia desta metodologia dentro da instituição. Pouco a pouco os resultados foram surgindo, através de um trabalho de sensibilização às famílias, aos educandos e aos próprios educadores, os quais são pessoas fundamentais neste processo e precisam motivar-se constantemente. Desta forma, todos são desafiados pelo tema. Os pais passaram a participar mais ativamente das atividades propostas pela escola, tais como oficinas, teatro, horas do conto, festividades, reuniões, espaços destinados à participação e decisões. Internalizando o tema, foram aos poucos compreendendo que era necessário uma mudança em sua postura e que somente através da participação autêntica seria possível alcançar uma educação de qualidade para seus filhos e construir uma escola onde se fizessem representados. Por consequência, as crianças despertaram para a participação, pois são também desafiadas a engajar-se, compreendendo e assumindo desde cedo seu papel de cidadão. Assim, ora motivam os familiares a assumir esta postura, ora os vêem como exemplos. Já neste ano, o principal eixo temático se referia a sustentabilidade ambiental, sendo este também o viés dos anos seguintes. Esta temática iniciou sendo trabalhada pontualmente, em cada turma, através de reaproveitamento de materiais e aos poucos foi tomando uma dimensão gigantesca ao ponto de, em 2009, transformar a escola em uma “agrofloresta”.

Resumidamente, a agrofloresta é um trabalho de permacultura que agrega questões relacionadas a sustentabilidade, responsabilidade, pesquisa, conscientização e ética, mudando toda uma cultura dentro e fora do ambiente escolar, exigindo obviamente, participação. É um lindo projeto, realizado através da prática de cultivo vegetal, no qual todos estão envolvidos, dos “bêbes aos vovôs”, onde a consciência ambiental vai dia a dia sendo construída. Junto à ela, vão também sendo resgatados outros valores, essenciais à vida em sociedade, às relações humanas.

No ano de 2010, já mais madura na prática da metodologia, a instituição refez todo o processo da pesquisa socioantropológica, sua tabulação e obteve como tema gerador a seguinte frase: “Que os filhos tenham estudo, emprego e se realizem na vida”. Problematizando a situação, o grupo entendeu ser real este desejo dos pais em relação aos filhos, porém, percebeu que muito pouco era feito para que tais coisas ocorressem. Era necessário ir ao encontro destas realizações. Para tanto, é preciso novamente desacomodar e agir. Dentro desta perspectiva, o contra-tema dizia: “A vida que a gente quer depende do que a gente faz”. No foco da mudança de atitude, a comunidade escolar passou a compreender melhor sua responsabilidade em relação ao meio ambiente e a sustentabilidade, bem como na sua relação com o mundo e com as pessoas. O projeto “O Surgimento de uma Agrofloresta Encantada no Mundo das Fadas” ganhou ainda maior proporção e além de continuar semeando a conscientização, a responsabilidade e a ação, começou a colher os frutos. É emocionante ver uma escola onde todos cuidam e valorizam este espaço compreendendo-se como parte indispensável do processo e inspirando-se para semear tais concepções em outros solos. Trata-se de um trabalho prático, vivenciado pelo coletivo e portanto, apreendido.

Recentemente, no início de 2012, a investigação temática foi refeita, obtendo-se como tema a seguinte frase: “Não espero mais do que a escola me proporcionou. Tenho filhos bem educados com muita confiança, acostumados a respeitar o próximo e respeitar limites”. A pergunta que não quis calar por parte das educadoras foi: “Seria esse papel exclusivamente da instituição?”. Percebeu-se que os pais estão atribuindo o mérito da educação dos filhos à escola. Embora honradas pelo reconhecimento, entendemos que a escola é somente um dos espaços de educação, que de forma alguma pretende substituir a família. Até mesmo porque as crianças um dia deixam a instituição escolar e precisam ter no núcleo familiar uma base sólida de princípios e valores. De forma alguma queremos nos eximir de nosso papel. Ao contrário, o que queremos é disseminar nossa ideologia que pretende a construção de uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária, e para tanto, precisamos nos constituir como autores de vida. Neste anseio, buscamos conscientizar os pais da problemática vivida, muitas vezes não percebida por eles, com o objetivo de que se tornem nossos parceiros nesta caminhada que nos move. Após a problematização, eis o contra-tema encontrado: “A família atuando com responsabilidade, participação, ação e comprometimento em união com a escola formando cidadãos de bem na perspectiva de um futuro melhor”. Agora, a escola convida a família, não mais apenas a participar, mas a responsabilizar-se pela educação de seus filhos e pela construção de um mundo melhor. Trabalho este, de extrema importância, que precisa ser construído e reconstruído a cada dia, em uma perspectiva real de conscientização, dialogicidade, atitude, mudança de realidade, como nos ensinou Paulo Freire.

Explicitar a experiência vivida pela EMEI Fada Madrinha a partir da implementação do Tema Gerador em tão poucas linhas, talvez não dê a compreensão real da diferença que o trabalho desenvolvido vem fazendo na vida das crianças, das famílias, dos educadores e funcionários. É uma constante tomada de consciência, que uma vez despertada, não mais pode ficar adormecida, pois o eu interior, este que faz parte das pessoas de bem, não mais admite viver na ignorância, no comodismo e na opressão, repetindo os comportamentos do passado e calando-se frente às injustiças e desigualdades. Para Lunardi e Tres, “se o ensino escolar foi capaz de interferir positivamente na realidade vivida pela comunidade escolar, transformando-a, então sim teve êxito e atendeu ao chamado da Educação Popular” (2005, p.88). Nesse sentido, acreditamos estar no caminho certo, pois os resultados estão sendo evidenciados a todo momento, desafiando-nos todos os dias a fazer mais e mais em busca de uma educação significativa, autêntica, emancipatória e trans-formadora.

Diante desta trajetória é fácil compreender os motivos pelos quais “o caminho se faz caminhando”. Não há receita e tampouco passo a passo. Cada instituição, ao investigar sua comunidade e descobrir o tema que emerge desta, se faz única, constrói seu próprio caminhar. É importante lembrar também, que embora o trabalho com os temas geradores estejam atrelados a comunidade local, partindo inclusive desta, não exclui nem desvaloriza os conteúdos culturais e intelectuais. Ao contrário, dá significado real à eles. Para Kramer, trabalhar com temas geradores,

significa exatamente a possibilidade de articular, no trabalho pedagógico, a realidade sociocultural das crianças, o desenvolvimento infantil e os interesses específicos que as crianças manifestam, bem como os conhecimentos acumulados historicamente pela humanidade a que todos têm direito de acesso. Os temas imprimem, ainda, um clima de trabalho conjunto e de cooperação na medida em que os conhecimentos vão sendo coletivamente construídos, ao mesmo tempo em que são respeitados os interesses individuais e os ritmos diversificados das crianças (2006, p.50).

Portanto, o tema gerador é entendido aqui como fio condutor das atividades escolares, uma vez que possibilita a articulação com os conteúdos tornando-os significativos, com real valor social, sempre contextualizado e interdisciplinar, sendo adquiridos para alguma finalidade concreta em função de um objetivo claro para os educandos. Concebendo desta forma, a EMEI Fada Madrinha não abre mão de um trabalho pedagógico diversificado, que aborde todas as áreas do desenvolvimento, que desperte a curiosidade natural daqueles que tem sede de aprender, desde que estes sejam problematizados, ressignificados e ampliem a visão de mundo. O incessante trabalho com as famílias faz-se necessário em função de que, na educação infantil, estas precisam estar muito presentes na vida das crianças, pois são a base de sua formação. É certo que não alcançaremos a todas as famílias como objetiva nossa ideologia e intencionalidade, porém, é certo também que trabalhando com o despertar desta responsabilização da família a partir das crianças, teremos daqui um tempo, melhores pais e melhores mães, que buscarão não repetir os erros com eles cometidos. Mesmo porquê nosso foco é a não reprodução, pois desta já estamos fartos. Há gerações viemos reproduzindo apenas, como bons filhos da educação bancária[1], tão repudiada por Freire. Chegou o momento da mudança! E é idealizando esta mudança que comprova-se ser possível o trabalho com os temas geradores na educação formal, desde que haja envolvimento e desejo por parte dos educadores em aventurar-se neste mundo desconhecido. Para Lunardi e Tres (2005, p.87):

 […] ao decidir trabalhar com temas geradores, o professor decide também ser trabalhado por eles. Para isso precisa romper com a mera repetição de modelos e metodologias e envolver-se com a construção significativa de conhecimentos, não mais pré-determinados, mas que aos poucos vão revelando o que cada sujeito é e está se tornando.

Isto exige do educador responsabilidade e busca constante de clareza e fundamentação de conhecimentos, pois trabalhando desta forma está gerando um conhecimento novo e diferenciado. Educador e educando estarão caminhando no desconhecido, desafiando-se na busca de desvelar e transformar a realidade concreta.

É desafiadas por essa busca que nós, educadoras da EMEI Fada Madrinha, seguimos em frente, fazendo o caminho a cada dia, sendo mediadores de uma educação real, significativa, contextualizada, emancipatória, que vá além de conteúdos programados, desconectados e coisificados, mas que de fato desperte a consciência do poder existente em cada sujeito. Entendemos ainda que “a prática pedagógica vai muito além de uma mera metodologia de ensino. É, acima de tudo, o engajamento em busca da libertação e da transformação social” (LUNARDI; TRES, 2005, p.88).

3 EDUCAÇÃO LIBERTADORA: A UTOPIA QUE MOVE O EDUCADOR CONSCIENTE

Uma das maiores lições que Paulo Freire nos deixou foi o despertar para uma educação libertadora. Totalmente em oposição à educação bancária, entendida por Freire como domesticadora, perpetuadora da cultura dominante, antidialógica, rígida e castradora, a educação libertadora traz a concepção crítica, problematizadora, dialógica, construtiva, conscientizadora e humanizadora, essencial para a transformação dos sujeitos e da sociedade.

Ainda hoje, percebemos a concepção bancária arraigada em nossas escolas, nas universidades, no pensar e agir dos professores. Muitos ainda não conseguiram desvencilhar-se destas amarras, pois também são oprimidos. Tornaram-se “coisificados”, alienados, e como tais, temem a mudança. Porém, a liberdade é uma permanente busca, e aqueles que ousam buscá-la, vêm pouco a pouco, através de sua prática, humanizando-se e humanizando. Nesta perspectiva, educador e educando tornam-se sujeitos, autores, e através de uma relação dialógica, horizontal, formam-se em comunhão.

Educador e educandos (liderança e massas), co-intencionados à realidade, se encontram numa tarefa em que ambos são sujeitos do ato, não só de desvelá-la e, assim, criticamente conhecê-la, mas também no de recriar este conhecimento.

Ao alcançarem, na reflexão e na ação em comum, este saber da realidade, se descobrem como seus refazedores permanentes.

Deste modo, a presença dos oprimidos na busca de sua libertação, mais que pseudoparticipação, é o que deve ser: engajamento (FREIRE, 1987, p.56).

O educador que se percebe como sujeito do ato do conhecimento e entende este como processo de busca, despe-se de seu “poder” frente aos educandos e junto a eles, quebra a rigidez da educação. Rigidez que tolhe, que segrega, que castra toda e qualquer forma autêntica de pensar e de ser. A educação deve estar em favor da liberdade, da criatividade, da criticidade, da atitude, da humanização. Para tanto, é fundamental que o educador, consciente de seu papel enquanto formador e de sua condição de mediador, alicerce sua prática em  concepções que visam o sujeito em sua totalidade, considerando sua realidade, sua história, suas vivências, suas verdades, seus anseios, necessidades, esperanças e frustrações. É necessário que o educador construa sua práxis, a fim de promover uma educação de fato significativa, pela e para a vida, renunciando a cultura do silêncio.

Na era da informática, onde basta um click para se obter qualquer tipo de informação, não mais precisamos de professores que tão somente transmitam e depositem cultura e conhecimento, condicionando o educando à passividade, a adaptação, a memorização mecânica de conceitos desconexos de sua realidade. “Transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador” (FREIRE, 1996, p.33). Precisamos de educadores dispostos a despertar nos educandos a paixão de aprender, o desejo da mudança, e junto deles, construir a educação real, utilizando o conhecimento prático, vivido, apreendido. Neste sentido, o educador precisa estar consciente de que sua ação não pode ser neutra. Necessita assumir-se enquanto formador e compreender que a educação não pode separar teoria e prática. Ela é composta de conhecimentos científicos e ética. Conhecimentos estes que só tem validade se forem utilizados coerentemente para a transformação, para o bem comum, a exemplo dos já comentados “temas geradores”. Freire sabiamente nos desperta para a prática da docência:

Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto ou aquilo. [...] Sou professor a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura [...]. Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais. [...] Sou professor a favor da esperança que me anima apesar de tudo. [...] Sou professor a favor da boniteza de minha própria prática, boniteza que dela some se não cuido do saber que devo ensinar, se não brigo por este saber [...] (1996. p.102).

É assim que nos constituímos educadores! Diariamente, esperançosos, na luta para tornar possível a utopia de uma educação libertadora, transformadora e autenticamente humanizadora, superando desta forma a herança do intelectualismo alienante. Para Freire, ensinar exige pesquisa, exige respeito ao saber do outro, exige criticidade, estética e ética. Exige práxis, aceitação ao novo, rejeição à discriminação, autonomia, humildade, bom senso, comprometimento, competência profissional. Ensinar requer liberdade e autoridade, dialogicidade, convicção, atitude, esperança. Ensinar é uma especificidade humana, exige amor.

Não seremos ingênuos a ponto de não reconhecer que a educação bancária tem seus objetivos, ainda que velados, e está tão presente em nossa atualidade e em nossa formação, mesmo enquanto profissionais, pelo fato de ser muito interessante para as classes opressoras. Como nos afirma Vasconcellos, “do ponto de vista da classe dominante é um contra-senso oferecer um ensino popular de qualidade, pois este ajudaria as pessoas a compreenderem melhor a realidade em que vivem, a desvendar as relações, a se valorizarem, a exigirem seus direitos” (2001, p.33). Não seremos ingênuos acreditando que a transformação dessa realidade se dará tranquilamente como num passe de mágica. É certo que não se rompe facilmente um modelo pedagógico, o qual tem suas concepções e práticas cristalizadas, ainda que este seja arcaico como é a educação conservadora. Porém, é imprescindível que se construa uma proposta pedagógica ressignificada, criadora, reflexiva, que não ande a reboque da história, mas que faça história. É preciso problematizar a realidade e discutir os conteúdos educativos, despertando e desafiando a consciência crítica em um ato de desvelamento da realidade e de progressivas mudanças. O trabalho organizado através dos temas geradores, como já vimos, favorece a articulação entre ensino e aprendizagem significativos. Desta forma é possível que haja conhecimento, pois os educandos, de fato, são convidados a conhecer.

“A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir a discussão criadora, sob pena de ser uma farsa” (FREIRE, 2010, p.104). Eis o papel do educador! Ousar e transformar eticamente a educação, num ato de amor, de coragem, de humanidade. Perceber o caos e a ineficiência da educação tradicional e nada fazer para mudá-la, assim como entender os sujeitos como seres livres e nada fazer para efetivar esta afirmação, é contribuir com esta farsa.

É assim que nós, educadores, esperançosos e conscientes de nosso papel, continuamos lutando pela realização do sonho, acreditando nesta utopia, na busca de uma educação de fato trans-formadora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao refletirmos sobre a necessidade de uma pedagogia que seja de fato transformadora, desde a educação infantil, percebemos que é fundamental a conscientização e o desejo de mudança por parte dos profissionais. Estes, comprometidos com seu papel de formadores, buscando a efetivação de uma educação ressignificada, contextualizada, libertadora, são capazes de trilhar, junto com os educandos, o caminho rumo a transformação de realidade. Para tanto, é imprescindível que os educadores investiguem e considerem o universo dos educandos e sua relação com o mundo. No caso da educação infantil, as famílias também fazem parte do processo educativo. Além disso, os educadores precisam aderir ao exercício da práxis, pensando criticamente sua própria prática e aperfeiçoando-a diariamente.

Através deste estudo foi possível constatar que o trabalho a partir dos temas geradores pode resultar em lindas vivências e que este de fato, se conduzido da maneira como se propõe, favorece que nos aproximemos de uma educação trans-formadora, como sugere o título deste artigo. Formadora de sujeitos críticos, reflexivos, humanizados e por isso, transformadora de realidade. Para tanto, é preciso renunciar as práticas rotineiras, descontextualizadas, castradoras e opressoras, próprias da educação conservadora. Ainda que o sistema incentive a perpetuação da cultura dominante, a alienação, a submissão das classes populares, cabe aos educadores denunciar este abuso e comprometer-se com a construção de uma educação que valorize a vida, que possibilite o ser, o pensar e o fazer consciente, crítico, autônomo, ético, criativo e libertador.

Através deste ensaio, convidamos aos educadores que de fato se percebem como libertadores ou que desejam vir a ser, a engajarem-se nesta proposta. Convidamos a trabalhar movidos pela utopia de um mundo mais justo e fraterno. É certo que não faremos milagres, mas cremos sim na possibilidade da humanização através da educação. Talvez, muitos nos critiquem como idealistas e sonhadores por continuarmos apostando no ser humano, por continuarmos vivendo a prática docente como compromisso com a vida. Ainda assim, continuamos a acreditar nas palavras de Freire (1996), que diz que educação não muda o mundo, mas muda as pessoas, e as pessoas sim, estas transformam o mundo. Eis que nossa luta não é em vão!

Recomendamos para outros pesquisadores o aprofundamento deste tema, buscando encontrar subsídios e inspiração para a efetivação e disseminação desta educação que tanto almejamos. Que possam também encantar-se com o processo de humanização proporcionada pela experiência da educação transformadora.

OBRAS CONSULTADAS

CORAZZA, Sandra Mara. Tema Gerador: Concepção e Práticas. 3.ed. Ijuí: Unijuí, 2003.

EMEI FADA MADRINHA. Proposta Político-Pedagógica. Cachoeirinha, 2011.

FREIRE, Paulo. Educação como Prática de Liberdade. 33. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 34. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1987.

KRAMER, Sonia (coord.). et al. Com a Pré-escola nas Mãos: Uma alternativa curricular para a educação infantil. 14. ed. São Paulo: Ática, 2000.

LIBÂNEO, José Carlos. Democratização da Escola Pública: A pedagogia crítico-social dos conteúdos. 20. ed. São Paulo: Edições Loyola: 2005.

LUNARDI, Elisiane Machado; TRES, Silvana. Tema Gerador: Uma experiência metodológica na prática de ensino nos anos iniciais. In: Ação Pedagógica na Educação Infantil e Anos Iniciais. MAIA, Christiane Martinatti, et al. Canoas: Ed. ULBRA, 2005.

MACIEL, Jarbas. A Fundamentação Teórica do Sistema Paulo Freire de Educação. Estudos Universitários. Revista Cultura. Universidade do Recife. Nº IV, 1963.

SOUZA, Ana Ines. A pedagogia de Paulo Freire. CEFURIA: Curitiba, 2006. Disponível em: <http://www.cefuria.org.br/doc/educpoppedf.pdf >. Acesso em: 24 mai. 2012.

TOZONI-REIS, Marília Freitas de Campos. Temas ambientais como “temas geradores”: contribuições para uma metodologia educativa ambiental, crítica, transformadora e emancipátória. Editora UFPR: Curitiba, 2006. Disponível em: <www.scielo.br>. Acesso em: 15 mai. 2012.

VASCONCELLOS, Celso dos Santos. Para onde vai o Professor? Resgate do Professor como Sujeito de Transformação. 8. ed. São Paulo: Libertad, 2001.



[1] Termo utilizado por Freire para referir-se a educação tradicional, opressora, na qual o professor “deposita” os conteúdos, por ele selecionados, nos alunos através de uma relação vertical, e estes por sua vez, devem memorizá-los e “arquivá-los” como verdades inquestionáveis, gerando assim a reprodução dos sistemas dominantes.