A  Utopia Liberal rortiana.

Um provável espanto que surge na leitura da obra de  Rorty é ao que ele se refere quando usa o termo liberal, nós das ciências humanas  e econômicas  estamos acostumados a ligar na maioria das vezes o termo liberal á  proposta do liberalismo clássico que, segundo o senso comum acadêmico, era a de eliminar na medida do possível a intervenção estatal nos assuntos civis. O ponto de espanto é quando Rorty diz em Contingência, Ironia e Solidariedade que liberal é o posicionamento do individuo para o qual a pior coisa que existe é a crueldade.

Como se distancia da proposta histórica que deu origem a nosso entendimento atual da palavra liberal, percebo a necessidade de organizar a questão de forma que possamos criar uma boa distinção entre, liberalismo clássico, o posicionamento político que Rorty elogia, e identificar quais são as ligações entre estas duas utilizações do termo liberal.

A construção da Utopia

Quando diz que parte de seu apego a Dewey e Whitmann se dá pelo fato destes terem proposto trocar conhecimento por esperança como base do pensamento em torno do progresso social, Rorty esta iniciando uma tentativa de justificar  o que mais tarde iria defender como a superação da filosofia pela literatura. Acreditando  que a base para se crer numa filosofia contemporânea é a tentativa  de abandonar  a idéia de uma verdade definitiva que vá resolver todos os problemas do homem, Rorty vai além disto apresentando os problemas filosóficos como meros problemas imediatos do homem em seu momento histórico. Como explica na citação abaixo, ele acredita que as soluções para os problemas  da tradição filosófica( natureza do Ser, natureza humana, origem de todas as coisas... ) não possuem nenhuma ligação com as soluções para os problemas do homem ( distribuição de justiça, realização pessoal, liberdade...), e que por este motivo as questões que os filósofos consideram como problemas de toda a realidade não precisam ser resolvidos para que possamos conviver  numa sociedade melhor.

A questão Kant x Mill , como a questão entre metafísicos e os pragmatistas parecerá ter tão pouco valor quanto terá a questão entre os crentes e os ateus .Porque os seres humanos não precisam concordar sobre a Natureza ou o Fim do homem para ajudar a facilitar a habilidade de nosso vizinho a agir a partir de suas proprias convicções nessas matérias , contanto que essas ações não interfiram em nossa liberdade de agir a partir de nossas próprias convicções.

(ENSAIOS PRAGMATISTAS - SOBRE SUBJETIVIDADE E VERDADE ( 2006 - Edição 1 ) Richard Rorty , Paulo Ghiraldelli Jr)

 

 

Então quando apóia Dewey e Whitmann  na proposta de trocar conhecimento por esperança Rorty está indicando que  o progresso moral  surge não no momento em que descobrimos objetos ou lugares a que chamamos verdade, mas no momento em que passamos a imaginar versões melhores de nós mesmos ( melhores nos termos pragmatistas, capazes de produzir mais felicidade e de evitar mais sofrimento ).

            Este processo de imaginar versões melhores de nós mesmos se dá quando iniciamos a, ao invés de prescrever por meio de descrições da realidade real do homem ou de suas relações em sociedade, simplesmente propor soluções para problemas imediatos sem grandes preocupações quanto a validade destas soluções para com outros momentos da história. Como expressa em seu artigo , Philosophy as Cultural Politcs :

           

“Imagination, in the sens im wich i am using the term, is not a distinctively human capacity. It is, as i said earlier, the ability to come up with socially useful novelties. This is an ability Newton shared with certain eager and ingenious beavers. But giving and asking for reasons is distinctively human, and is coextensive with rationality. The more an organizm can get what it wants by persuasion rather than force, the more rational it is.”

(Imaginação, no sentido o qual eu estou utilizando o termo, não é uma capacidade distintiva humana. Isto é, como eu disse antes, a habilidade de aparecer com narrativas sociais uteis. Isto é uma habilidade que Newton dividiu com certos eager e ingênuos castores. Mas dar e perguntar por razões é algo distintamente humano, e sua coexistência com a racionalidade. Quanto mais um organismo consegue o que quer pela persuasão ao invés da força, mais racional ele é).

            Desta forma, o progresso moral seria exercido não por buscas por algum objetivo primeiro, natural ao homem, mas sim pela simples vontade e capacidade humana de imaginar situações melhores com nossos atuais recursos, ainda no artigo acima citado ele comenta ;

Intellectual and moral progress is not a matter of getting closer to an antecedent goal, but of surpassingthe past.

(Progresso moral e intelectual não é uma questão de se aproximar de um objetivo anterior (ao homem),mas de suprimir o passado.)

            O passado a ser supresso, são os antigos vocabulários que nos impedem de enxergar soluções para problemas atuais, vocabularios este que tem como caracteristica principal a inclusão de termos pretensamente ahistoricos. Assim a utopia de Rorty, serve como uma destas narrativas que nos apresentam uma anternativa a utilização dos recursos sociais que temos agora. O que torna estranhamente familiar toda a sua obra é a construção dos personagens e instituições que existem nesta Utopia, como por exemplo a figura do Ironista, a situação do Bazar Árabe e a figura do Liberal. Passaremos a partir de agora a buscar entender melhor como o abandono ou a posse de uma verdade redentora influi na construção do ambiente social necessário para os personagens da Utopia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O abandono da verdade redentora.

Em um debate com Habermas, Rorty se posiciona do seguinte modo sobre a busca pela verdade tão enraizada na tradição filosófica:

Não que haja nada de errado com razão, verdade e conhecimento. O que há de errado é a tentativa platônica de colocá-los no centro da cultura, no centro de nosso senso do que é um ser humano.

Debating the state of philosophy (London: praeger publishes, 1996)

Para Rorty o problema do posicionamento ( filosófico ou politico)em favor da existencia de uma verdade indiscutivel, reside na experiência historica que temos  com fundamentalismos radicais, sejam eles politicos ou religiosos. Estes fundamentalismos, geralmente encabeçados por homens que veem a si mesmos como possuidores de uma autoridade concedida por intuição ou entidade para além da humanidade, têm  uma possibilidade grande de ignorar o apelo de termos como, democracia, direitos humanos, ou mesmo dignidade. Dostoievsk no primeiro volume de Crime e Castigo descreve bem a postura de tais indivíduos; Rashnikov (lol) em seu artigo descreve alguns indivíduos que 'inventam a humanidade' e não tem perante si a necessidade de obedecer a quaisquer leis uma vez que seu papel na historia,segundo crêem, é ser a base para o começo de um capitulo eterno na história humana. Esta figura do fundamentalista seria inviável no ambito da administração pública da utopia liberal-democrata de Rorty, e no que diz respeito ao direito

 

 O pensador norte-americano então vai apontar para uma das possíveis causadas da perca de espaço cultural que a filosofia sofreu nas ultimas décadas, segundo ele, o filosofo perdeu sua importância social porque ainda acredita que existe um objeto ou lugar chamado verdade, e acredita que a posse deste lugar ou objeto concederia ao homem a resposta para todos os problemas inferiores (distribuição de justiça, realização pessoal , liberdade ...), desta forma se empenha tanto na busca por este objeto ou local  encantado que perde a  oportunidade de resolver problemas imediatos, cujas as soluções estão ao nosso alcance. Em sua obra Pragmatismo, Filosofia da Criação e da Mudança ele aponta para uma possível causa da fragilidade da argumentação  política quando se busca uma base filosófica para o posicionamento destacando assim como vã  a luta pelo argumento exclusivo de uma posição política.

“Em particular os que estão a esquerda do espectro político nutrem a esperança de encontrarem uma perspectiva filosófica que não possa ser utilizada pela direita política , uma filosofia que esteja exclusivamente a serviço de causas nobres . Mas esta perspectiva não vai existir nunca pois qualquer perspectiva filosófica é apenas uma ferramenta que pode ser usada por muitas mãos diferentes. ”  

(Pragmatismo, Filosofia da Criação e da Mudança – Richard Rorty – Organizadores; Cristina Magro e Antonio Marcos Pereira. Belo Horizonte . Editora UFMG,2000  )

 

Quanto ao desenrolar da proposta de abandono da busca pela verdade redentora, o desenrolar desta abrange dois âmbitos, o primeiro diz respeito a deixar qualquer pretensão de autoridade histórica, e o segundo diz respeito às possibilidades de interpretar o termo progresso. Nas próximas linhas dissertarei acerca destes dois âmbitos.

Quanto a abandonar a pretensão de autoridade histórica, podemos tentar compreender isto como aquela autoridade que Rashnilhkov descreveu como própria de figuras históricas destinadas a inventar a humanidade. Esta autoridade dispensa a seus possuidores a possibilidade de ignorar apelos próximos uma vez que se vêem como respondendo a um apelo maior e a - histórico. Desta forma impediríamos posicionamentos radicais que poderiam gerar sofrimento desnecessário.

 

O próprio Rorty explica que perderíamos também possibilidade de demonstrar que nossos inimigos estão errados no modo como atuam, perderíamos a possibilidade de apontar como posicionamentos errados os de figuras como Hitler, Stalin e republicanos. Quando chega a esta conclusão Rorty é criticado tanto pela esquerda progressista quanto pela direita conservadora. Por um lado afirmam que Rorty propõe um posicionamento acomodado quando desiste de provar que capitalismo e sadismo social são os grandes demônios de nossa era, por outro a direita conservadora chama seu posicionamento filosófico de irresponsável e até danoso para a juventude uma vez que propõe que nossos padrões de vida (morais, éticos) são apenas opções de agrado e não o fruto de uma perfeita evolução da civilização.

 

A imagem do que seria então esta cultura liberal vai aparecendo mais nitidamente quando reunimos os pontos que acima exploramos e organizamos  eles de modo especificar melhor as formas no quadro da utopia liberal rortyiana.

São estes: liberal como individuo para o qual a pior coisa que existe é a crueldade, produzir uma sociedade melhor por imaginar versões melhores de nós mesmos, trocar conhecimento por esperança, abandonar a idéia de autoridade intelectual ( parar de usar descrições pretensamente possuidoras de alguma aproximação com a verdade para realizar prescrições) e por ultimo resolver problemas ao alcance de nossas capacidades perceptíveis, ou seja dentro do nosso tempo e espaço, sem a pretensão de resolver um problema definitivamente ou como se  nossas soluções fossem aplicáveis a qualquer outra concepção de bem.

Uma possível interpretação da ligação que existe entre todos estes pontos  da obra de Rorty é a de que a mais provável possibilidade de construir uma sociedade melhor é por abandonar a postura de quem tem autoridade para apontar modos “ideais” do viver em sociedade, e simplesmente aceitar e comparar novas descrições deste ideal , e aceitar estas posturas só é possível quando assumimos que não é viável obter uma perspectiva fora do momento histórico (da proveniência de cada um )que possibilite observar algo como ‘o bem maior’.

 O que tornaria possível esta postura em nível de sociedade seria a garantia da liberdade individual para a realização de especificidades, aqui percebemos a causa do apego de Rorty as propostas liberais, pois o Estado estaria presente neste momento apenas para aumentar a concessão destas liberdades a medida que diminuíssem a quantidade de sofrimento desnecessário existente. Para que esta sociedade exista Rorty propõe que continuemos a acreditar nela, como demonstra na frase final de seu livro Para realizar a América.

 

 

 

Liberalismo, Estado Democrático de Direito e Cultura dos Direitos Humanos.

 

Todos estes termos pertencem primeiramente ao conjunto de termos notáveis e considerados sagrados para a maioria das descrições da cultura ocidental. Meu objetivo aqui é identificar no conteúdo destes termos aspectos que representem algum valor para a sustentação da proposta rortyiana para uma sociedade que produza mais realização de especificidades  e  menos sofrimento desnecessário.

O senso comum histórico nos aponta que algumas das principais características do liberalismo clássico foram às propostas no sentido de diminuir a área de controle estatal, com o intuito de aumentar as liberdades individuais propiciando assim maior possibilidade para as realizações pessoais.
Porém aumentar a liberdade dos indivíduos não está intrinsecamente ligado as teorias do Estado mínimo pois, como expõe Francisco Vergara em sua obra Introdução aos Fundamentos Filosóficos do Liberalismo,

A quantidade desejável de intervenção pública , de acordo com eles ( teóricos do liberalismo clássico )só podia ser determinada examinando-se uma um todos os diversos problemas colocados e as diferentes modalidades de intervenção pública propostas.

 (fonte: )

Desta forma, uma sociedade liberal nos termos expressos por Vergara seria construída com um governo que participasse na vida de seus cidadãos apenas para garantir que teriam não apenas liberdade, mas também as condições necessárias para realizar suas versões da felicidade, de modo a garantir que o numero de pessoas excluídas da posição de cidadão com usufruto de seus direitos fosse o menor possível. Esta perspectiva da sociedade liberal se encaixa nas descrições de Rorty de sua utopia, porém ainda resta tentar descobrir como seria construído o individuo liberal para o qual a pior coisa que existe é a crueldade. Primeiramente chamo a atenção para uma descrição da democracia proposta por Hans Kohn em sua obra O século Vinte, Um Desafio ao Homem :

 

Por sua própria essência, a democracia nunca pode ser perfeita, porque isso pressuporia cidadãos perfeitos, altamente educados e nunca levados pela emoção cega ou pela inércia 

 

O motivo pelo qual escolhi esta citação repousa no fato de que, embora não tenha encontrado relatos históricos de que o autor teria servido de influência para Rorty, encontramos em sua obra ( Hans Kohn ) um ótimo suporte fazer apontamentos sobre alguns aspectos do cidadão liberal  que surgiria da sociedade imaginada por Rorty. Pois é uma questão importante esta de como garantir a liberdade para a realização das felicidades especificas e ao mesmo tempo garantir que os indivíduos se preocupem uns com os outros ?

Como já foi tratado neste texto, Rorty acredita que apenas o relato literário, ou seja  outras perspectivas históricas, poderia criar indivíduos cada vez mais sensíveis  não apenas ao sofrimento daqueles que não podem se defender, como também indivíduos que descubram em sua história a possibilidade de reconciliação social com inimigos teóricos. Na mesma obra ora citada, Hans Kohn faz uma proposta de reconciliação entre EUA e URSS  neste sentido de convivência,

Os americanos terão de aprender que várias civilizações e tradições podem coexistir mesmo neste mundo único. A riqueza da diversidade é um dos grandes elementos da história e do progresso .No período de transição será impossível desenvolver uma ordem mundial geral. Os americanos, algumas vezes gostam demais de decisões claras, de alternativas cruas. Em 1949, ao enfrentar a Russia, os americanos punham, em geral, o dilema em termos de acordo ou guerra, ordem mundial ou caos .Tal forma de encarar as coisas só pode levar a ilusões e em ultima análise á catrastofe. Pois na situação presente nem pode haver acordo nem é preciso que haja guerra. Durante algum tempo o mundo ocidental deverá viver, sem acordo e sem guerra, lado a lado com um mundo comunista firmemente unido. Isto exige força, paciência, e uma visão larga, mas não há soluções rápidas, atalhos ou panacéias .

 

            Se aplicarmos esta proposta de convivência entre blocos econômicos a  simples vizinhos da cidade perceberemos o quanto Rorty estava empenhado em garantir que ninguém seria forçado a perceber o sofrimento alheio, mas simplesmente induzido a isto pela observação do máximo de relatos, com perspectivas diferentes sobre o mesmo acontecimento, que  pudessem ser produzidos e apresentados a um individuo pela simples persuasão. Estes relatos hoje são produzidos não por filósofos mas por obras literárias, Rorty aponta isto diversas vezes em sua obra e como exemplo podemos apontar para filmes como Stalingrado, ou para a obra completa do autor Gunther Grass, onde é relatado o sofrimento dos soldados e da classe média do Terceiro Reich. Reconhecer o sofrimento destes indivíduos , assim como reconhecer a injustiça social que é aplicada aos negros desde o fim da escravidão, nos sensibiliza para que não sejamos instigados a glorificar atos cruéis contra tais indivíduos, por fim podemos afirmar que Rorty acredita que o acumulo de leitura de tais relatos nos possibilita reconhecer mais e mais sofrimento desnecessário, tendo assim dado o primeiro passo para evitá-lo. Neste sentido, a superação da filosofia pela literatura que Rorty propõe serviria aqui para possibilitar que possamos cada vez mais conviver com indivíduos que não concordem conosco. Conviver garantindo que tenham acesso a liberdade ( liberalismo como cultura ), a direitos iguais (estado democrático de direito) e  produzindo no espaço público um espaço de encontros livres e honestos pautados na melhoria das condições de vida do homem comum.