SUBSTÂNCIAS ENTORPECENTES:

A (des) criminalização do uso e consumo pessoal de drogas

 

Evandro Flávio Lisboa[1]

 

RESUMO

            Muito se tem discutido nos diversos recantos do estado brasileiro sobre a necessidade da legalização do uso e consumo pessoal de drogas, em especial a maconha. Para os adeptos dessa descriminalização, o uso pessoal da cannabis não transcende a esfera individual do usuário, isto é, a conduta do consumidor da substância psicoativa gera efeito, se prejudicial, apenas ao próprio usuário, não a terceiros. Dessa forma, essa corrente de pensamento, afirma que é inconstitucional que o Estado adote posturas incriminadoras sobre o consumo pessoal da substância em voga, em razão de violação dos princípios da alteridade, igualdade, da inviolabilidade da intimidade e da vida privada. Essa linha ideológica sustentada por determinados autores, afirma que esse proibicionismo, em uma primeira aproximação, pode ser entendido, como um posicionamento ideológico, de fundo moral, que se traduz em ações políticas voltadas à regulação de fenômenos, comportamentos ou produtos vistos como negativos, conforme asseverou Karam, citado em artigo de Sergio Seibel à Revista Veja. Todavia, para a corrente da situação, a descriminalização daria a impressão que o consumo de drogas não é perigoso. Tal posicionamento, fora externalizado em nota à imprensa, pelos juízes e promotores com atuação nas Varas e Promotorias de entorpecentes do Distrito Federal. Segundo esses servidores vitalícios, a legalização do uso e consumo dessa substância poderá gerar um incremento no número de consumidores, além de significar um retrocesso na legislação atual. Portanto, é de se ressaltar que tal discussão se tornará eficaz nos justos limites em que os cidadãos puderem participar democraticamente dos debates que serão realizados e, dessa forma, verificarem se os meios aferidos nessas discussões serão adequados e necessários para a manutenção do império do interesse coletivo.

 

PALAVRAS CHAVE: DIREITO PENAL. USO E CONSUMO PESSOAL DE DROGAS. (DES) CRIMINALIZAÇÃO. (DES) NECESSIDADE. ANTIPROIBICIONISMO.

 

INTRODUÇÃO

            Algumas das principais riquezas buscadas no Oriente e na América durante a época das grandes navegações dos séculos XVI E XVII eram as drogas. As especiarias das Índias Orientais, como a pimenta, a canela e a noz moscada, assim como as das Índias Ocidentais, como o pau-brasil, o açúcar e o tabaco, foram denominadas drogas pelo homem do período (Henrique Carneiro/2005).

            Consoante (HENRIQUE CARNEIRO/2005), a palavra droga provavelmente deriva do termo holandês droog, que significava produtos secos e servia para designar, dos séculos XVI ao XVIII, um conjunto de substâncias naturais utilizadas, sobretudo, na alimentação e na medicina. Verifica-se que esse termo também foi utilizado na tintura ou como substância que poderia ser consumida por mero prazer.

            Constata-se que a existência de diferentes drogas nas diversas regiões da Terra foi o próprio estímulo para o início das navegações, o que impulsionou, segundo Gaspar Barléu, citado por Henrique Carneiro, o início do nascimento e posterior expansão do comércio:

(...) Admire-se nisto a sabedoria de Deus: quis que nascessem as drogas quentes nas regiões tórridas, e as frias nas regiões frígidas, sem dúvida para que, trocando-se os produtos necessários aos homens, se aproximassem os povos, obrigados pelas mínguas comum a tornarem-se amigos.

            Aos poucos as recém-descobertas das Índias Ocidentais se tornaram fonte de outras drogas. No Brasil, as duas drogas mais importantes dos dois primeiros séculos da colônia foram o pau-brasil e o açúcar.

            Verifica-se que à época colonial pode ser incluída entre as sociedades que não faziam distinção precisa entre drogas e comida, equiparando-se assim às muitas culturas (que) não fazem uma clara distinção entre alimento e remédio.

            Portanto, se na época colonial não se discriminava claramente a distinção entre droga e alimento, nos tempos atuais, aparentemente, as fronteiras entre esses dois conceitos são muito bem definidos e bem vigiadas. Uma análise mais profunda evidencia que as distinções não são ‘naturais’, mas um recurso artificial de controle político e jurídico (Henrique Carneiro/2005).

 

CONTROLE POLÍTICO DAS DROGAS

            Sigmund Freud[2] esclareceu que:

(...) as drogas são os instrumentos mais eficientes para se obter prazer e para se combater a dor. Não apenas a dor física, para o qual os analgésicos são bálsamo, como também a dor psíquica, para o qual as drogas são consoladoras supremas. Por isso, as drogas ocupam um lugar de primeira importância na economia libidinal de todos os povos, ao ponto de chegarem a ser divinizadas (como no caso do vinho, visto como o próprio corpo de Cristo).

            Por tudo isso, as drogas são objeto de um imenso interesse político e econômico, seu domínio é fonte de poder e riqueza. Sacerdotes, reis, estados, a medicina e outras instituições sempre disputaram monopólio do seu controle e a autoridade na determinação das formas permitidas de seu uso (HENRIQUE CARNEIRO/2005).

            Sabe-se que o controle dessas substâncias articula interesses econômicos, políticos e culturais. Saliente-se que, iniciou no séc. XX o fenômeno do proibicionismo do comércio do álcool durante a Lei Seca nos Estados Unidos (1920-1933). Essa postura se trata de atender interesses políticos, o que ocorre até hoje, pois permite a legislação proibicionista apenas o consumo de certas drogas, por exemplo, o álcool e o tabaco, enquanto proíbe outras, como os derivados do ópio cannabis e coca.

            O consumo de tabaco e álcool, assim como as demais drogas legais e ilegais em geral, passou a ser objeto de uma forte intervenção reguladora estatal desde o início do séc. XX, que resultou em tratados internacionais, legislações específicas e aparatos policiais.

            Consequentemente, a atribuição e autonomia para dispor sobre qual substância proibir se trata de questão eminentemente política. Assim, aduziu Consoante Henrique Carneiro:

(...) a autonomia ou heteronomia das decisões humanas é o que está em causa, ligada a própria questão da noção de reflexibilidade do eu e da plasticidade psíquica, cujo desenvolvimento seria uma das marcas típicas das conquistas no terreno das liberdades individuais da época contemporânea.

A DESCODIFICAÇÃO DAS SUBSTÂNCIAS ENTORPECENTES

            Sabe-se que a política criminal das drogas no Brasil, lastreada no direito penal máximo, é realizada por reedições de leis criminalizadoras com alguns arranjos políticos-criminais, extraídos, quase sempre, de políticas públicas alienígenas. Não obstante os insucessos dogmáticos desses países centrais, a legislação pátria mantém em seu arcevo criminal posturas ineficazes de prevenção individual do uso e consumo de drogas consideradas ilícitas.

            Para estruturar uma pesquisa jurídica, faz-se necessário buscar sua nascente e trilhar pelo caminho marginal até se chegar ao destino. Esse caminho percorrido se deve em razão de estar o pesquisador voltado para a linearidade dos estudos, para que não se desvie de seu objeto.

            Dessa forma, diante de inúmeras leis aprovadas pelo Congresso Nacional, poderia adotar comentários de âmbito geral, mas devido ao grau de abstração e generalidade, esse trabalho não atingiria o caráter de se entender o processo de (des) criminalização das drogas.

            No Brasil (SALO DE CARVALHO/2010) a criminalização do uso, porte ou comércio de substância entorpecente apareceu quando da Instituição das Ordenações Filipinas (Livro V, Título LXXXIX – “que ninguém tenha em caza rosalgar, nem o venda, nem outro material venenoso”). Asseverou o autor que no Código Penal Brasileiro do Império em nada dispunha sobre a proibição do consumo ou comércio de entorpecentes. Todavia, após a edição do Código de 1890[3], passou-se a regulamentar no art.159 os crimes contra a Saúde Pública que previa apenas pena de multa:

(...) Expor à venda, ou ministrar substâncias venenosas sem legítima autorização e sem as formalidades prescritas nos regulamentos sanitários.

            Verifica-se que no início do séc. XX o aumento constante de ópio e haxixe, incentivou a edição de novos regulamentos sobre o uso e a venda de substâncias psicotrópicas. Por conseguinte, com o advento da Consolidação das Leis Penais em 1932, fora acrescentado doze parágrafos no Código de 1890. Em matérias sancionatária foi acrescida e pena de multa, a prisão celular, substituição do termo substâncias venenosas por substâncias entorpecentes.

            Percebe-se que, embora se encontre resquícios de criminalização das drogas ao longo da história legislativa nacional, apenas a partir da década de 40 é que se pode verificar o surgimento de política proibicionista sistematizada.

            Constata-se que as políticas de controle de drogas são criadas a partir de sistemas punitivos autônomos. No Brasil, essa política criminal se deu quando da autonomização dos Decretos 780/36 e 2953-38 e o ingresso do país no modelo internacional de controle. Não obstante, saliente-se que com a publicação do Código Penal de 1940, a matéria é recodificada no Art. 281, sob epígrafe de comércio clandestino ou facilitação de uso de entorpecentes.

            Todavia, a partir do Decreto-Lei 4720/42 e da Lei 4451/64 que dispôs sobre o cultivo e a ação de plantar, respectivamente, iniciou-se o processo de descodificação, o que irá ocasionar o (des) controle da sistematicidade da matéria criminal.

            Dessa forma, nota-se que o consumo de substâncias psicoativas começa a tornar-se elevada, principalmente a partir da década de sessenta com a popularização do consumo da maconha e LSD. O uso de entorpecentes surge como instrumento de protesto contra as políticas belicistas e armamentistas, criando, por conseguinte, as primeiras dificuldades às agências de controle penal (SALO DE CARVALHO/2010).

            Nesse momento o consumo de drogas ganhou espaço público, o que aumentou sua visibilidade e gerou pânico moral, ocasionando intensa produção legislativa em matéria penal. Consequentemente, fora idealizados por grupos morais e movimentos sociais repressivistas aliadas aos meios de comunicação com o intuito de transnacionalizar o controle sobre as entorpecentes.

            Para SALO DE CARVALHO/2010, passa a ser gestado o modelo médico-sanitário-jurídico de controle dos sujeitos envolvidos com drogas, fundado em duplo discurso que estabelece a ideologia de diferenciação. Conforme o mencionado autor, a principal característica do modelo é traçar nítida distinção entre consumidor e traficante, ou seja, entre doente e delinquente, os quais sobre os culpados traficantes recairiam o discurso jurídico-penal e sobre o consumidor incidiria o discurso médico-psiquiátrico.

            Diante das elevadas preocupações no âmbito de repressão, bem como o enaltecimento do número de usuários de substâncias psicoativas, o poder legiferante rompendo com a orientação internacional e com o discurso de diferenciação, fora editado o Decreto-Lei 385/68 que modificou o Art. 281 do CP, o qual veio a criminalizar o usuário de drogas com pena idêntica àquela imposta ao traficante.

            Três anos mais tarde, o sistema repressivo brasileiro fora readequado – Lei 5726/71 – às orientações internacionais, o que marcou a descodificação da matéria. Verifica-se que, apesar de não mais considerar o dependente como criminoso, a legislação continuava a identificar o usuário ao traficante impondo pena privativa de liberdade de 01 a 06 anos.

 

POLÍTICAS ANTIDROGAS PÓS-64

            A partir do golpe de 1964, o Brasil adota o modelo repressivo militarizado centrado na lógica bélica de eliminação e neutralização de inimigos internos. Portanto, a estrutura política de drogas sofreria mais uma vez uma reformulação: ao inimigo interno político (subversivo) é acrescido o inimigo interno político-criminal (traficante).

            Incontinenti, a escassez do discurso médico- jurídico no processo de repressão, permitiu a elaboração do sistema jurídico-político. Já nos fins da década de setenta, foi sancionada a Lei 6368/76 regulamentando a política de drogas.      Ressalve-se que essa legislação mantivera o discurso médico-jurídico, diferenciando o consumidor (dependente ou usuário) do traficante – plano político-criminal, bem como implementando o discurso jurídico-político, caracterizando à figura do traficante como inimigo interno, justificando as constantes elevações de pena.

            Sob os auspícios da Doutrina de Segurança Nacional, foi estabelecido como dever de toda pessoa física ou jurídica colaborar na prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso de indevido de substância entorpecente ou que determine a dependência física ou psíquica.

            Tal fato foi bastante influenciado pela estratégia política do governo norte-americano, em que transferiram a responsabilização dos altos índices de consumo e comércio domésticos de drogas aos países produtores ou país de rota de passagem do comércio internacional. Essa institucionalização acabou por instaurar o modelo genocida de segurança pública voltada as situações de guerras internas.

            Todavia, essa arte-e-manha americana só servirá para aumentar ainda mais o fosso de criminalização entre classe baixa e classe com barganha.

            Insta salientar a análise realizada por Vera Malaguti Batista sob o aumento do consumo de drogas,em especial a cocaína no Rio de Janeiro, em que a autora percebeu cisão do discurso jurídico-político-médico conforme a identidade do sujeito criminalizado:

Aos jovens de classe média, que a consomem (cocaína), aplica-se o estereótipo médico, e aos jovens pobres, que a comercializam, o estereótipo criminal.

            Tal constatação também integra as conclusões de Rosa Del Olmo, citada por Salo de Carvalho:

           

(...) tudo dependia na América Latina de quem cosumia (droga). Se eram os habitantes de favelas, seguramente haviam cometido um delito, porque a maconha os tornavam agressivos. Se eram ‘os meninos de bem’, a droga os tornava apáticos.

            Percebe-se que o sistema proibicionista no Brasil se sustenta no tripé ideológico representado pelo Movimento de Lei e Ordem, pela Ideologia da Defesa Social (IDS) e, subsidiariamente, pela Ideologia da Segurança Pública (ISN).

            A IDS, caracterizada pelo tipo ideal de resposta ao delito de caratê universalista, foi de suma importância para a legítima principiologia do sistema repressivo.

            Essa ideologia recebera complementos do Movimento de Defesa Social, que atualizou um modelo universal para reformar as instituições e leis criminais, reconhecendo a criminologia como laboratório de investigação da ação criminosa, cujo objetivo se trata da tutela da sociedade contra delinquentes através da prevenção geral e prevenção especial, embora tenha adotado, posteriormente, categorias como periculosidade e personalidade, o que resultou o retrocesso às práticas autoritárias segregacionistas. (ZAFFARONI/1991).

            Quanto à Ideologia da Segurança Nacional, influenciada pela bipolarização leste-oeste (Guerra Fria), somada ao Estado de exceção pós-64, ocorreu como resultado uma sanção neutralizadora àqueles que tenham à pretensão em violentar os valores moral-criminoso político e comum, ou seja, a forma de manutenção da ordem se baseava na ideia de eliminação, tornando o desejo insaciável de poder punitivo, principalmente pela força pública instituída.

            Já o terceiro pilar que ainda sustenta a política-criminal autoritária de uso e consumo de drogas no Brasil são os movimentos de lei e ordem. A função desse movimento é combater à criminalidade através de leis severas, inclusive com pena de morte.

            Aliada ao movimento, como principal veículo de produção sobre tal posicionamento, a mídia distribui estereótipos criminais induzindo os órgãos instituídos em atuarem sempre seletivamente, deixando de fora outros tipos de delinquentes.

REDEMOCRATIZAÇÃO E AS POLÍTICAS DAS DROGAS NO BRASIL

            Após vinte e um anos de um Governo despótico, a sociedade brasileira progredira ao processo de redemocratização inspirada no desejo de ruptura como políticas autoritárias do Regime Militar, bem como a necessidade de ocorrer profundas alterações quanto a legislação da época, principalmente em relação à matéria de repressão penal.

            Todavia, as mudanças idealizadas se tornaram ilusões penais, uma vez que a Constituição recepcionou anseios punitivos pretéritos sem estabelecer obstáculos quanto à violência punitiva, o que potencializou o aumento da violência institucional e instituindo política de restrição aos direitos fundamentais.

            No que se refere à questão das drogas, a CF/88 equiparou seu tratamento ao dos crimes hediondos, o que legitima a estagnização de movimentos criminalizadores autoritários.

            Constata-se que a visão de uma constituição-garantia de direitos e liberdades fundamentais, caracterizada como uma Lei de contenção à violência institucionalizada com resquícios interpretativos adquiridos de período de exceção. Dessa forma, é evidente a conclusão que a política de guerra às drogas se tornou um grande fracasso, visto que não obtivera resultado satisfatório na erradicação ou controle razoável do narcotráfico. Diante dos princípios estabelecidos no texto constitucional, verifica-se a constante violação dos direitos fundamentais dos grupos vulneráveis da sociedade sob os auspícios moralizadores de certos grupos da população.

            Porém, esse foco está aos poucos evoluindo para a interpretação lógico-sistemática do modelo jurídico-político de repressão qualificada à repreensão ao tráfico de entorpecentes, com estratégias centralizadas na sistematização do planejamento, avaliação, cooperação e ações conjuntas com organismos policiais no combate ao tráfico ilícito.

            Tudo isso se deve depois da criação do Programa de Ação Nacional Antidrogas (PANAD), lançado em 1996, com o objetivo de prevenir, recuperar, reinserir os dependentes e reprimir o tráfico.

            Foi a partir do PANAD que o Brasil ingressou no programa guerra às drogas, desenvolveu o Sistema Nacional Antidrogas e criou a Secretaria Nacional Antidrogas.

            Não obstante a vigência de o Programa ter perdurado por uma década, após confrontar as projeções realizadas pelo PAND, foi obtido como balanço que a estratégia internacional de guerra às drogas não logrou os efeitos idealizados de eliminação do comércio ou diminuição do consumo, além de provocar a densificação no ciclo de violência com a produção de criminalidade subsidiária (comércio de armas, corrupção de agentes estatais, etc) e vitimização de grupos vulneráveis (dependentes, moradores de áreas de risco).

            Convém ressaltar que mesmo diante da (in) eficácia desse Programa, o Estado brasileiro iniciou uma estratégia consoante as prescrições constitucionais, rompendo, ainda que timidamente, com o dogma autoritário da Ditadura Militar face a política de repressão ao tráfico de drogas.

ILEGITIMIDADE DA INTERVENÇÃO PENAL

            Verifica-se que o consumo sistemático de substância psicoativas, ou seja, aquelas que de alguma forma interferem no sistema nervoso, na consciência ou na psique humana, está presente na história há milênios[4]. Nota-se que o consumo de substâncias de uso proibido se trata de um problema social.

            Para Remir Lenoir, citado por Venâncio/2010, um problema social é, antes de tudo, um campo discursivo que envolve representações as mais diversas a respeito de fenômenos específicos.

            Isso exposto, constata-se o que é constituído hoje como problema social varia conforme as épocas e regiões e pode desaparecer no momento em que o corpo social assim entender necessário.

            Portanto, os resultados da “Guerra às drogas” são catastróficos para as pessoas que o Estado pretende acolher, não havendo ganho visível quanto ao objetivo de prevenir o uso indevido, bem como não há a reinserção social de usuários e dependentes.

            O surgimento das drogas sempre esteve associado a dois eixos: a criminalização e medicalização. Isso se deve a partir da preocupação com a saúde e com a segurança pública, representada pela medicalização e pela imposição de penas, que as sociedades e os estados direcionaram sua atenção para a questão.

            Percebe-se que a criminalização do uso da substância cannabis sativa, está associada ao consumo dessas drogas às camadas baixas, aos negros, mulatos e bandidagem, pois essas pessoas eram (e são) vistas como perigosas pela sociedade.

            Maria Dutra de Oliveira asseverou que

(...) a seletividade é estrutural. O delito de porte de drogas para consumo pessoal provavelmente é um dos que apresentam as maiores cifras negras e a sua repressão só ocorre de maneira seletiva, pois, do contrário, a sociedade e, sobretudo, aqueles que têm o controle sobre as definições não concordariam com a manutenção de ta prática como delito (...).

            Constata-se que caso houvesse repressão constante às festas dos filhos e dos pais da classe média, talvez o objeto antiproibicionista tivesse sido alcançado. Assim, nota-se que não é contra a planta que as autoridades estão voltadas, mas contra a propagação de prática específicas de classe ou raças que eram vistas como perigosas.

            Sabe-se que o consumo de substância proibida causa prejuízo apenas ao indivíduo que a consome e não a terceiros. Para superar esse obstáculo lógico e justificar o princípio da alteridade penal, a jurisprudência criou uma justificação em que considerou que a incriminação do porte de drogas é causa de perigo abstrato à saúde pública.

            Essa é a principal incriminação do usuário de drogas, criminalização essa manipulada pela forma interpretativa de tutela do bem jurídico saúde pública. Essa concepção também foi analisada por Maria Lúcia Karam:

(...) é evidente que a conduta de uma pessoa que, destinando-se ao seu uso próprio, adquire ou tem a posse de uma substância que causa ou pode causar mal à saúde, não há como identificar ofensa à saúde pública, dada q ausência daquela expansividade do perigo (...).

            Cristiano Ávila Maronna[5] também expressou em não ser mais possível que a ciência jurídica ignore a existência de um antagonismo evidente entre a destinação pessoal do consumo e a proteção jurídica à saúde pública, esclarecendo que se o consumo é pessoal, afeta à saúde individual.

            Nota-se que aceitar como justificativa para a incriminação dos consumidores a necessidade de punição do tráfico (ou mesmo de outros crimes) significa adotar critérios de responsabilidade objetiva, na medida em que se reprime alguém (consumidor de drogas) por atos de terceiros - traficantes ou autores de delitos relacionados ao consumo ou comércio de drogas (MARONNA/2012).

            Dessa forma, percebe-se que a conduta do Estado em substituir a vontade do indivíduo para protegê-lo de si mesmo, cuida-se de uma política paternalista, o que contraria o pensamento liberal segundo o qual a pessoa tem o direito de seguir seu próprio plano de vida. Ressalte-se que no Estado de Direito não se pune a autolesão.

            Desde o estudo de Stuart Mill, há notícia de paternalismo na lei penal. Segundo Mill, a lei só pode coibir condutas que lesem a terceiros: o dano a outrem deveria ser a única base para a incriminação de comportamentos (SILVEIRA/2006).

            Destaca-se ainda que além da alteridade penal, a criminalização do uso e consumo pessoal de substância psicoativas, viola os princípios da vida intimidade e vida privada da pessoa humana.

            Consoante dispõe art. 5º[6], X da Constituição Federal de 1988, é conferido ao cidadão o direito de impedir que intrusos venham intrometer-se na sua esfera particular. Assim, incumbe ao Estado assegurar que ao indivíduo a livre busca de suas realizações de vida pessoal.

            O Ministro relator da ADPF[7] 130, Carlos Brito, enfatizou que não se ignora a inexistência de direitos absolutos (...) a intimidade e a vida privada não são direitos ilimitados; podem ser restringidos, como de fato são, quando se deparam com outros direitos fundamentais em aparente confronto, como por exemplo, “a liberdade de imprensa x a intimidade”, em que esta cede espaço àquela.

            Ainda segundo o Ministro, o que não se admite é a existência de norma infraconstitucional que, por si só, diminua a eficácia de direito fundamental. Portanto, a Lei 11.343/06 não possui dignidade para limitar o disposto no inc. X, art. 5º da CF/88.

            Dessa forma, é de se concluir que a razão de se punir criminalmente, embora não exista pena privativa de liberdade, o usuário de drogas ilícitas é o perigo social que advém da conduta do indivíduo, sob a justificação de colocar em risco a saúde pública. Todavia, há um divórcio litigioso entre o bem jurídico digno de tutela - a saúde pública - e a saúde do indivíduo, o que leva ao entendimento de inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06.

            Por conseguinte, a conduta criminal do art. 28 descrita na Lei de Drogas não preenche o requisito para a incriminação da conduta, que é o princípio da lesividade, por não representar ofensa a bem jurídicos. Esse princípio é bem explicitado pela professora Ana Cláudia Lucas[8]:

(...) cumpre o princípio duas funções: constituir limite ao direito de punir do Estado e estabelecer baliza na fixação da pena. Além disso, pelo mesmo princípio estão proibidas as incriminações de atitudes internas, ideias ou desejos – as cogitações criminosas – assim, também, estão vedadas as inculpações de condutas que não ultrapassem o limite do próprio autor, como os atos preparatórios de um delito.

            O princípio da lesividade impõe a separação do direito de outras concepções ou ideias, como moral e religião. Caso um conduta comissiva ou omissiva ataque uma ideia religiosa ou moral ela não pode ser considerada apta para caracterizar uma conduta criminosa.

            Jeremy Benthan entendia, em sua “Introdução aos princípios da moral e da legislação”, que os atos de prudência, que consistem na promoção da própria felicidade, devem ser deixados à ética privada, cabendo ao legislador, no máximo, impor leves censuras a comportamentos evidentemente autolesivos (DO PRADO/2012[9]).

            Portanto, a historicidade do Estado-paternalista em intrometer na esfera individual dos cidadãos tornou-se fato corriqueiro e aceito pela cultura ocidental. Faz-se necessário operar uma radical mudança nas preferências morais que sedimenta a tutela estatal, embora na maioria dos casos tendem a ser graduais realizadas através de pequenas rupturas das políticas criminais. Isso não significa que a reprovação por uma maioria de pessoas de certas condutas seja suficiente para sua criminalização.

            É com acerto que Daniel Nicory do Prado parafraseou:

(...) A declaração da inconstitucionalidade da norma que incrimina o porte de drogas para uso próprio significará não só o reforço do caráter democrático da Constituição de 1988, e da valorização da liberdade e da vida privada, mas também a redução do estigma social do dependente químico, que, com isso, terá mais estímulo para procurar ajuda nas redes pública e privada de atenção à saúde para deixar o ciclo autodestrutivo que os discursos criminalizantes sempre pretenderam evitar.

CONCLUSÃO

            Percebe-se que é evidente concluir que a política de guerra às drogas é um grande fracasso, visto não obter resultado na erradicação ou no controle do tráfico. O que se torna notório é a constante violação dos direitos e garantias fundamentais dos grupos vulneráveis da população.

            Verifica-se que a legitimidade dessa guerra está atrelada ao ideal moralizador de abstinência associada a obsessão pelo combate às substância entorpecentes. Assim, é justamente a defesa da sociedade contra o crime organizado que sempre mais vezes é usada como justificação para a limitação de direitos e garantias individuais, que são também fundamentais: com o suspeito – muitas vezes, infelizmente, fundado... – para o qual a luta contra as organizações criminosas torna-se pouco mais que um pretexto para pressões autoritárias e até mesmo liberticidas (CARVALHO/2010).

            Acrescente-se ainda que a forma como é direcionada a política pública de combate aos psicoativos em geral, tem levado o Estado a dar respostas punitivas para a repressão desses grupos a partir do direito penal do terror. Por isso é necessário uma detida interpretação constitucional, bem como (re) formulação da codificação do conteúdo da Lei de Drogas, a fim de representar barreira de contenção das violências da política repressiva, pois do contrário, é certo o extravasamento e perda do controle dos atos do poder.

            Nota-se ainda que o tratamento eminentemente penal ao usuário/dependente de drogas obteve inúmeros resultados infrutíferos, desde o aumento das violências diagnosticado pela incidência desigual da repressão penal aos mais vulneráveis, à ineficiência das Instituições estatais de prevenção e repressão do tráfico.

            Constata-se que após a era das descodificações das legislações de conteúdo criminal, o direito penal o direito penal desmantela gradualmente a estrutura garantidora constitucional dos direitos fundamentais. Observa-se que o direito penal se transformou em uma fonte obscura e imprevisível de perigo para qualquer cidadão.

            Portanto, faz-se necessário que o Estado não intervenha mais na esfera íntima da pessoa humana em razão dos motivos expostos, pois os indivíduos possuem a prerrogativa inalienável em gerenciar sua própria vida, independente da invasiva intervenção estatal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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            DO PRADO,Daniel Cristiano. De drogas e democracias. Boletim IBCCRIM, nº 167, Ano 20, Ed Especial de Drogas – Out/2012, São Paulo: 2012.

            GARCIA, Mariana Dutra de Oliveira. Descriminalizastf: um manifesto antiproibicionalista ancorado no empírico. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v.10, n.46 , p. 135-155, jul. 2012.

            KARAM, Maria Lúcia. Proibições, riscos, danos e enganos: as drogas tornadas ilícitas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. 68 p. (Escritos sobre a liberdade)

            LIMA, Roberto Kant de; Eilbaum, Lucia; PIRES, Lenin (org.). Conflitos, direitos e moralidades em perspectiva comparada/ Organizadores: Roberto Kant de Lima, Lúcia Eilbaum, Lenin Pires. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.

            MARONNA, Cristiano Avila. Drogas e consumo pessoal: a ilegitimidade da intervenção penal/ Cristiano Avila Maronna Boletim IBBCRIM, nº 167. Ano 20. Ed. Especial Drogas– Out//2012: São Paulo, 2012

            PASSETTI, Edson (coord.). Curso livre de abolicionismo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2012. 166 p.

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[1] Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica

Pós-graduando lato sensu em Direito Aplicado à Segurança Pública pelo Centro Universitário Newton Paiva

[2] http://adroga.casadia.org/news/freud_e_cocaina.htm                            Acessado em 28/05/2013

[3] CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (Estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06) – 5ª ed. Ampl. e atual.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

[4] No Brasil, não havia, até o final do séc. XIX, a preocupação direta do Estado e nem e existência de um debate sobre o controle do uso de alguma substância psicoativa.

[5] MARONNA, Cristiano Avila. Drogas e consumo pessoal: a ilegitimidade da intervenção penal/ Cristiano Avila Maronna Boletim IBBCRIM, nº 167. Ano 20. Ed. Especial Drogas– Out//2012: São Paulo, 2012

[6] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm                   Acessado em 28/05/2013

[7] http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/adpf130.pdf                             Acesso em 28/05/2013

[8] http://profeanaclaudialucas.blogspot.com.br/2010/06/principio-da-ofensividade-ou-lesividade.html Acesso em 28/05/2013

[9] DO PRADO, Daniel Cristiano. De drogas e democracias. Boletim IBCCRIM, nº 167. Ano 20. Ed. Especial Drogas– Out//2012: São Paulo, 2012