A Palavra de Deus nos exorta que devemos nos submeter uns aos outros. (Gál. 5.13 e Ef. 5.21). Mas não fala, ou se fala não é muito explícita, a respeito da obrigatoriedade de submissão eclesiástica hierárquica.

Portanto, nos propusemos a analisar essa questão que é defendida, até com certa idolatria pela maioria dos cristãos.

A pergunta é: submissão aos líderes cristãos é mandamento?

Pois bem. Quando se trata de hierarquia, subentende-se que alguém manda, e que os outros devam obedecer.

Ora, mas os líderes cristãos são instituídos para "mandar" ou para "aconselhar"?

O filósofo Hobbes disse que a "confusão entre os conselhos e as ordens, deriva da maneira imperativa de falar em ambos utilizada."

E continua:

"Uma ordem é quando alguém diz Faze isto ou não faças isto, e não há lugar para se esperar outra razão a não ser a vontade de quem o diz. De onde manifestamente se segue que quem ordena visa com isto a seu próprio benefício, pois a razão de sua ordem é apenas sua própria vontade, e o objeto próprio da vontade de todo homem é sempre algum benefício para si mesmo."

"Um conselho é quando alguém diz Faze isto ou Não faças isto, e deduz suas razões do benefício que tal acarreta para aquele a quem o diz. Torna-se a partir daqui evidente que aquele que dá conselho pretende apenas (seja qual for a sua intenção oculta)o benefício daquele a quem o dá."[1]

Isto posto, fica manifesto que é da natureza do conselho que todo o benefício ao aceitá-lo, ou prejuízo por recusá-lo, recai sobre a pessoa que o recebe. Quando aconselhamos alguém a aceitar a mensagem salvadora do Calvário, todo o benefício por aceitar o nosso conselho, ou prejuíjo por recusá-lo, recai sobre a pessoa a quem aconselhamos. O conselheiro não pode exigir benefício algum pelo conselho dado, e o motivo de dar o conselho é o desejo ardente de o outro venha se salvar. Nada mais pode motivar o conselho dado, senão um sincero desejo de ver a felicidade do outro. Se o conselheiro visa a sua própria felicidade, como é o caso de se pregar para ganhar galardões, encontramos um desvio na doutrina de amor ao próximo. Já não se trata de um conselho desinteressado, mas trata-se de um ato egoísta e egocêntrico, uma ação manipuladora.

Todos os homens são livres para aceitar o que lhes parece direito,ou recusar o que não lhes convence o espírito. Daí vem que, diante de um conselho, eu tenho a liberdade de acatá-lo, ou ignorá-lo. Diante de um conselho, eu julgo, pondero, aprecio e decido por mim mesmo, com total liberdade, até para rejeitar o que me é oferecido, mesmo que isto redunde em prejuízo para mim.

Se um conselho é repetido insistente e veementemente, em tom autoritário e imperativo, ele perde a característica de conselho e ganha status de ordenança. E neste caso subentende-se que o beneficiário, ou maior interessado na observância do conselho, não seja o aconselhado, mas o conselheiro. Se, alguém insistir com autoritarismo para que uma pessoa decida somente de determinada forma sobre algum assunto, não dando liberdade para um julgamento racional do ouvinte, dá-se a entender que não há conselho, mas ordem.

Nos púlpitos das igrejas, o que deveria ser sinceros conselhos de quem anseiapela salvação do outro, ganha aspectos de ordenanças, tamanha a veemência e os tons ameaçadores com que são proferidos. É pois de se duvidar que alguns pregadores tão zelosos do ofício, pretendam sinceramente a nossa salvação. Muitos deixam transparecer claramente que estão buscando súditos, aliciando-os sob o disfarce de irmãos.

Antes de tudo, o conselheiro sincero deve colocar-se numa posição de igualdade com o aconselhado. Jamais poderá se colocar num nível de superioridade, pois acabará afetando a liberdade do outro. Quem aconselha deve respeitar o outro como um ser livre e responsável pelas suas próprias decisões. Deve dar autonomia. Dar liberdade para definir seus valores. Ler a Bíblia com os próprios olhos. Caso contrário não aconselha, ordena.

Diante de uma ordem eu não tenho outra escolha a não ser acatá-la. Eu não tenho as duas opções como eu tinha diante do conselho: aceitar ou recusar. Diante de uma ordem eu não posso ponderar, não tenho direito de analisar. Não tenho duas vias a percorrer. Simplesmente tenho que obedecer.

Daí concluímos que a ordem não leva em consideração a liberdade do outro, espera-se tão somente uma única resposta, uma única atitude: obediência. Quando se ordena, não se põe em questão o direito do outro de julgar se lhe é favorável, se é coerente, ou se é justo o que se espera que ele faça. Quando alguém ordena, não há o que se ponderar, aquele que ordenou espera tão somente uma decisão: que a sua determinação seja cumprida.Não se dá autonomia ao outro. Não se respeita a dignidade e a liberdade do outro. Quem ordena não admiteque o outro pense. Não aceita que o outro tenha opinião própria. Quem ordena quer ter nas suas próprias mãos todo o controle da ação do outro.

Depreende-se daí que a responsabilidade pelos resultados da decisão num aconselhamento é totalmente do aconselhado, pois lhe é falcutado julgar e decidir. Ele assume os riscos e as consequências da sua decisão. Mas, quando se ordena, a responsabilidade dos resultados é de quem dá as ordens, porque aui não se dá a liberdade de escolha para o outro.

O sistema eclesiástico hierárquico caracteriza-se pelas ordens emanadas de quem ocupa os degraus superiores na hierarquia. Quem está no topo hierárquico prescreve e disciplina todo os comportamentos através de leis, regras e regulamentos. Ele dita o "que pode" e o "que não pode". Desta forma, ele toma para si a responsabilidade pela salvação ou condenação de cada membro. Se ele não deixa escolha para os seus liderados decidir, não há porque os crentes pensar, estudar, avaliar, escolher e decidir.

Um grande problema aqui é que os cristãos tornam-se dependentes das regras, e diante de situações novas, muitos não sabem como decidir. Vivem na dependência das ordens: "Isto pode?" "Fazer isto é pecado?" "Isto é permitido?"

Uma vez que não admitem outra forma de decisão, outras formas de pensamento, depreende-se das ordens que elas encerram a "verdade absoluta". Quem julga ter a interpretação infalível das Sagradas Escrituras não admite outra interpretação.

Embora Deus tenha dado aoshomens a liberdade para decidir sobre suas vidas, o sistema hierárquico não admite esta liberdade. Ele quer controlar a vida uns dos outros, estabelecendo o que se deve crer, como se deve crer, como se comportar, o que vestir, o que ver, o que falar e até em que pensar.Isto entra em contraste com "estai pois firmes na liberdade com que Cristo nos libertou, e não torneis a meter-vos debaixo do jugo da servidão." Gal. 05.01

Analisemos agora, se é legítimo, diante de Deus, a nossa submissão aos líderes eclesiásticos.

No meio eclesiástico o poder é outorgado por Deus através de dons e ministérios, ou pelos homensatravés da comunidade religiosa.

Além dos que recebem autoridade de Deus, e dos que recebem autoridade da comunidade, existem também aqueles que dão a si mesmo o poder e a autoridade. Mas, esses são usurpadores. Não merecem respeito, quiçá nossa submissão.

Para nos submeter resignadamente àqueles a quem Deus outorga o poder diretamente, temos que levar em consideração que: 1)há pessoas realmente enviadas ou inspiradas, 2) há pessoas enganadoras ou mentirosas, e 3) há pessoas iludidas.

Em I Reis, capítulo 13, há um fato interessante que envolve dois profetas, ou seja, dois enviados. Um deles foi enviado a profetizar contra o altar idólatra do rei Jeroboão. Após cumprir a sua missão, este profeta foi induzido pelo outro profeta afazer algo que o Senhor não o tinha autorizado. Foi obediente à palavra do seu companheiro profeta, mas incorreu em transgressão do mandado do Senhor. Foi devorado por um leão, em represália a sua desobediência.

O que tiramos desta história para o nosso estudo é que, mesmo os verdadeiros enviados estão sujeitos a erros. Podemos inferir que, até mesmo um enviado pode agir fora dos interesses do Senhor, tomando decisões de seu próprio interesse. E mais, a submissão aos enviados deve estar subordinada ao mandado do Senhor.

A história desses dois profetas também nos aponta para a questão do engano. Nós não podemos penetrar na individualidade de ninguém. Até mesmo as pessoas que estão ao nosso lado possuem um mundo secreto que não nos é permitido perceber o que se passa ali. É a individualidade, ou intimidade. Neste mundo secreto estão escondidos os traços mais originais da pessoa, seus sentimentos, emoções, vontades e pensamentos. Nem as palavras são capazes de expressar rigorosamente as verdades desse mundo íntimo. Por isto é impossível uma outra pessoa conhecer se alguém é sincero ou não, se age por interesse próprio ou não, se é inspirado ou se é mentiroso.A intimidade do outro é área privativa. Daí que se esta pessoa nos dá uma ordem, é quase impossívelperceber se ela está agindo sinceramente ou se está seguindo interesses pessoais. Se o primeiro profeta tivesse analisado a mensagem do outro, e ponderado de acordo com o mandado do Senhor, antes de obedecer cegamente, ele teria mais chance de escapar do leão.

Por conseguinte, entendemos que as ordens de qualquer homem devem ser peneiradas por uma crítica racional. Devemos analisar se são coerentes com o mandado do Senhor, antes de ser obedecidas. Pode-se tratar de um verdadeiro enviado, mas que pode estar enganado; pode-se tratar de um mentiroso; ou pode ser que seja apenas um iludido.

Segue-se que não somos obrigados a nos submeter a qualquer ordenança. Mesmo as ordens dos enviados, devemos obedecê-las se, e somente se, estiverem coerentes com o mandamento do Senhor. Ou seja, a decisão de obedecer ou não, está com aquele que recebe a ordem. Se se trata de algo justo e coerente do ponto de vista da vontade do Senhor, e há obediência, haverá méritos. Se se trata de algo fora da vontade do Senhor, e há obediência, haverá castigo. Não há mérito na obediência de algo que está fora da vontade de Deus. Por conseguinte, cada crente é que deve analisar as ordens recebidas das igrejas, antes de qualquer submissão cega e irracional.

Se alguém ordena algo que o Senhor não ordenou clara e explicitamente, esta pessoa visa interesses próprios, e não os interesses do Senhor. Ordena mentiras, não merece crédito. É mentiroso. Não haverá méritos na obediência a mentiras.

Mentiroso é aquele que diz algo que sabe não ser verdade, ou que não tem certeza da veracidade. Mas quando Deus fala diretamente com alguém, Ele fala através de sonhos, visões ou revelações. São meios subjetivos, que não podem ser provados ou comprovados. Como é impossível saber com certeza absoluta que alguém recebeu verdadeiramente um mandamento do Senhor para nos transmitir, segue-se que não somos obrigados a acreditar resignadamente. Pode tratar-se de um mentiroso que quer se passar por profeta de Deus. Jesus nos alerta: "Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós disfarçados em ovelhas, mas interiormente são lobos devoradores." Mt. 07.15. Como nos resguardar? Através de uma análise racional. Esta análise leva-nos a comparar as palavras recebidas com a Palavra do Senhor. Se são coerentes e harmônicas entre si, deve ser mensagem de Deus, mas mesmo assim não.pode ser encarada como uma ordenança. I João 4.01: "Amados, não creiais a todo espírito, mas provai se os espíritos vêm de Deus; porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo."

A obrigatoriedade de obedecer, portanto, não vem imposta por causa da autoridade de quem nos transmite a mensagem, mas é de foro íntimo de quem a recebe. Se esta prerrogativa não nos fosse dada, como nos precaver dos lobos disfarçados? Teria sido uma recomendação inútil do Senhor Jesus e do Apóstolo João.

Talvez o maior problema entre os cristãos sejam os iludidos. Iludidos são aqueles que se acham profetas. Se fazem profetas. Nunca receberam uma ordenança direta de Deus, mas se julgam no direito de impor as "verdades" das suas deduções aos outros. O mentiroso sabe que aquilo que ensina não é verdade. Pratica a mentira porque lhe é conveniente. O iludido, pelo contrário, acredita que a mentira que ensina é verdade. Daí surge as intolerâncias, os abusos e o autoritarismo. Desse grupo é que nasce os supersticiosos e fanáticos.

O grande problema dos iludidos é que, por mais que se mostre a eles a irracionalidade das suas deduções, eles se tornam mais intransigentes. Quando não encontram argumentos coerentes para se defenderem, passam para ofensas pessoais: "endemoniado", "desviado", "adúltero", "inimigo", etc.

Concluímos que, as ordens que o cristão recebe de outro cristão, deve ser submetida ao crivo da sensatez, da razão e da coerência com a vontade do Senhor. Perde-se pois a natureza de ordem, porque não sou obrigado a obedecer aquilo que me parece fora da doutrina de Cristo. Se tais ordens não são de caráter obrigatório, não podem ser leis, devem ser conselhos.

Convém analisarmos agora se devemos submissão às autortidades que receberam o poder da comunidade religiosa? Neste caso, o poder é outorgado pelos homens.

Todo o poder que emana de uma sociedade para uma pessoa, ou para um grupo de pessoas, ele não é poder absoluto. Ou seja, quando a comunidade dá a alguém o poder pararepresentá-la, ela dá uma parte do seupoder a esta pessoa. Desta forma, o poder total da comunidade está nas mãos da própria comunidade. A autoridade dispõe apenas de uma parcela do poder da comunidade.

Como vimos, as autoridades escolhidas pela comunidade cristã dispõe de poder para organizar os trabalhos comunitários. Ora, os cristãos são todos sacerdotes e são todos iguais perante o Senhor. Não há porque se falar que alguns desses sacerdotes sejam mais privilegiados diante de Deus. Por conseguinte, nos assuntos de natureza espiritual, a comunidade cristã não pode delegar poder que vise impedir, permitir, autorizar, mediar ou intermediar, ligar ou desligar a relação da pessoa com Deus. Desta forma, estas autoridades estão autorizadas a ministrar somente sobre assuntos desta vida. As regras, ou leis, pelas quais devem pautar-se, devem ser deliberadas pela comunidade, mas nunca podem bloquear ou impedir a relação da pessoa com Deus, porque isto não é de competência dos homens.

Conclui-se pois, que aquilo que a comunidade deliberar, deve ser acatado pelos membros. Mas, como estas autoridades não dispõem de poder coercivo, não podem castigar fisicamente os desobedientes, nem podem cortar vínculos espirituais, segue-se que devem ordenar o mínimo possível e priorizar o aconselhamento.

O motivo destas autoridades descambar para o autoritarismo é que, assim que uma pessoa descobre que elasnão podem lhe fazer mal algum, suas ordens são ignoradas. Daí passam a estabelecer mais regras, muitas vezes até sem anuência da comunidade, para coibir a desobediência. Mais leis, mais desobediências. Passam então para as pressões psicológicas, para as ameaças, para as injustiças, os abusos e prepotências.

Conclui-se, pois que as autoridades eclesiásticas, instituídas por Deus, ou instituídas pelos homens, devem aconselhar, nunca ordenar. E a nossa submissão aos seus decretos resume-se tão somente àqueles que julgarmos coerentes com o mandado do Senhor. Pois, não é autoridade eclesiástica que legitima a doutrina, mas sim, a sua coerência com a Palavra do Senhor.

Ou seja, o nosso relacionamento com Deus pauta-se pela Fé, mas com os homens, o nosso relacionamento é pautado pela razão.



[1] HOBBES, Tomas – Leviatã –Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beaztriz Nizza da Silva – 2ª Ed. São Paulo – Aril Cultural – 1979 -(Os Pensadores)