Shirlei Marly Alves

1 INTRODUÇÃO

O objetivo deste ensaio é analisar as comunidades virtuais no que diz respeito ao modo como são articuladas pelos objetivos comuns, pelas relações intersubjetivas entre seus membros, bem como pelas formas de comunicação engendradas pelas tecnologias da informática.
Na intersecção dos eixos subjetividade, comunicação e aprendizagem, destacamos as singularidades inerentes ao modo de se inserir nas comunidades virtuais, com vistas a identificar como se estabelecem as relações entre subjetividade, comunicação e aprendizagem nesse contexto.

2 COMUNIDADES VIRTUAIS: TECENDO DIZERES, SERES E APRENDIZAGENS

De acordo com Lévy (1999), as relações entre as pessoas foram profundamente alteradas em função do surgimento do ciberespaço e da cibercultura, possibilitados pela conexão entre computadores do mundo inteiro na internet, dando suporte a outras formas de relação e socialização, e ainda de aquisição e transmissão de saberes. Desse modo, a humanidade, hoje, convive com uma intensa e inesgotável troca de ideias e com a construção do conhecimento em rede, com o consequente descentramento das informações.
Sartori e Roesler (2003) destacam que o ciberespaço é o lugar de concretização das comunidades virtuais, cujo funcionamento se vincula às conexões possibilitadas pelas tecnologias de informação e comunicação, através das quais pessoas com objetivos comuns se relacionam e estabelecem novas subjetividades. Trata-se não mais de nossos vizinhos, de nossos amigos, de nossos colegas de trabalho ou outros afins, mas de "[...] pessoas de todos os cantos do mundo, pessoas com quem dialogamos diariamente, com quem podemos estabelecer relações bastante íntimas, mas que talvez nunca venhamos a encontrar fisicamente." (TURKLE, 1997, p. 12 apud BELLONI, 2009, p. 66)
O termo ?comunidade virtual? foi usado primeiramente por Rheingold (1996, p. 18), o qual a define como "agregados sociais surgidos na rede, quando os intervenientes de um debate o levam por diante em número e sentimento suficientes para formarem teias de relações pessoais no ciberespaço". Essa definição destaca a origem de uma comunidade ? o debate (ou seja, algo sobre o qual algo precisa ser dito, concebido, discutido ou que simplesmente faz parte dos interesses das pessoas) e ainda o modo como o sentimento em torno dele vai tecendo relações entre os indivíduos, tornando-os membros de um grupo vinculado a interesses comuns.
De acordo com Beltrán Llera (2007 apud CARVALHO, 2009, p. 36), trata-se de "grupos de pessoas que se comunicam, compartilham experiências e temas afins e se esforçam para atingir objetivos comuns". Já Lévy (1999, p. 27) tem a comunidade virtual como "um grupo de pessoas se correspondendo mutuamente por meio de computadores interconectados", a qual se constrói sobre "afinidades de interesses, de conhecimentos, sobre projetos mútuos, por meio de cooperação ou de troca, independentemente das proximidades geográficas e das filiações institucionais." (1999, p. 127).

2.1 Comunicação e comunidade
Percebe-se, nas definições de comunidade virtual, uma forte ênfase no componente comunicativo, visto que, no oceano de possibilidades da internet, não se constroem vínculos consaguíneos ou de outros parentescos, mas, sim, relações cujo nascedouro está em um desejo de querer dizer algo a outro ou a outros, no sentido de se inserir em uma rede comunicativa, numa busca de convergência entre pontos de vistas, dos quais, naturalmente, não se ausentam as tensões ou os conflitos. O que, possivelmente, nesse aspecto, diferencie a comunidade virtual das demais seja o fato de que as possibilidades quase ilimitadas de comunicação ensejam a formação e a inserção em um número bem maior de grupos comunitários.
Curiosamente, como assinala Feenberg (apud NEDER, 2010, p.160-161), com os primeiros computadores distribuídos para uso doméstico, na França, com vistas a uma ampliação das possibilidades de acesso à informação, a comunicação não era prioridade, embora fosse tecnicamente possível: nem o hardware nem o software foram desenhados com esse propósito. Foram os hackers que fizeram a transmutação, "constituindo-se em um caso emblemático da transformação democrática das redes técnicas por atores humanos que elas envolvem, inovando recentes formas sociais." Esse fenômeno tornou possível uma ampla utilização da rede de computadores no mundo dos negócios e também a articulação de intercâmbios para os mais diversos fins, incluindo a educação.
A comunicação, portanto, é o pilar básico sobre o qual se concretizam todos os potenciais da tecnologia da informática, para além de uma simples acumulação ou computação de dados. Isso significa que, nos fluxos intercambiais, vão se engendrando novas relações, novos diálogos, novos acordos, dos quais emerge toda a gama de projetos para a rede mundial, seja para a defesa da democracia em regimes fechados, como ocorre atualmente no Irã (onde se busca burlar a vigilância ideológica do regime no poder), seja para o incremento das lutas ativistas em prol de diversas causas, seja ainda para a construção de projetos cooperativos de educação a distância entre instituições, além d outras possibilidades. Nesse contexto, as pessoas "participam, emitem opiniões, constroem novos significados, tecem uma rede de cooperação oportunizada pelo processo de comunicação bidirecional". (SARTORI; ROESLER, 2003). A identificação de propósitos comuns ou de convergências de idéias enseja ainda a formação de comunidades virtuais.
Quanto ao modo como se relacionam os membros dessas comunidades, é importante destacar que o senso de comunidade está vinculado a restrições reguladoras que dão aos membros da comunidade uma distinção em relação às demais, como esclarece Lévy (1999 apud SAMPAIO-RALHA, 2010):

Entre os participantes de comunidades virtuais também se desenvolve um forte conceito de "moral social". Uma espécie de código de conduta, um conjunto de leis não escritas, que governam suas relações, principalmente com relação à pertinência das informações que circulam na comunidade. Ou seja, não é necessário impor o que "pode" e o que "não pode" em uma comunidade. Ela mesma se auto-regula, se organiza. Se não for assim, não é uma comunidade...

Desse modo, regulando a si mesmo, o sujeito regula os demais e mantém a estabilidade comunitária pela aceitação e cumprimento das normas de comunicação. Identifica-se a comunidade pelo que ali se discute, pelos diálogos que entretece, pelos interesses que alimenta nos intercâmbios comunicativos. Assim, a comunicação (o que e como se comunica) dá o caráter da comunidade, na qual o diálogo se instaura como sua condição de existência, ancorado nas visões e previsões possibilitadas pelas trocas comunicativas que se viabilizam.
2.1 A emergência de novos eus: intersubjetivações nas comunidades virtuais
Segundo Francisco, Machado e Axt (2004),
Outras características da comunicação mediada por computador são: ausência de comunicação não verbal; poucos sinais da posição social; anonimato social; maior desinibição e assertividade. Para a emergência das relações virtuais são criadas normas consensuais de interação, o que inclui a autorreflexão sobre a participação na comunidade e na autogestão do ciberespaço. (ênfase adicionada).


Ressalta-se, pois, que, no processo de comunicação via web, sem impõem outras formas de se subjetivar, ou de se tornar sujeito, que, insistimos, é um sujeito marcadamente discursivo, pois só em suas locuções podemos flagrar-lhe a identidade (fugidia, talvez, mas, regulada pelas normas da comunidade, em algum momento, torna-se passível de análise).
Conforme os autores, o anonimato propiciado pela comunicação automatizada possibilita ao indivíduo participar de comunidades sem os receios dos julgamentos prévios, dos conhecimentos já acumulados sobre sua vida. Cria-se assim um sujeito virtual, o qual pode nem sequer coincidir com o homem ou a mulher que se senta diante da máquina. Como já demonstram alguns programas (ex. second life), não precisamos mais nos acoplar ao nosso eu conhecido, acostumado, dado. Podemos, sim, nos multiplicar em outras subjetividades, de acordo com nossos objetivos no mundo virtual, assumindo uma atitude mais assertiva, porque menos podada pelos preconceitos e pelas visões arraigadas.
Guatari (1992, p. 13) contribui para uma melhor compreensão sobre a questão da subjetividade no universo on-line da ao afirmar que

Quer nos voltemos para o lado da história contemporânea, para o lado das produções semióticas maquínicas ou para o lado da etologia da infância, da ecologia social e da ecologia mental, encontraremos o mesmo questionamento da individuação subjetiva que subsiste certamente, mas que é trabalhada por agenciamentos coletivos de enunciação. No ponto em que nos encontramos, a definição provisória mais englobante que eu proporia da subjetividade é: "o conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva". (ênfase adicionada).


Assim, também no seio de uma comunidade virtual, a alteridade atua como um regulador (LÉVY, op. cit.) das intersubjetivações, consubstanciando a emergência de novas subjetividades a cada inserção em uma nova comunidade. Mais uma vez em Guatari (op. cit.) buscamos os termos que melhor esclarecem esse processo que, a princípio, parece pôr sob ameaça a própria condição do eu humano:

As condições de produção evocadas nesse esboço de redefinição implicam, então, conjuntamente, instâncias humanas inter-subjetivas manifestadas pela linguagem e instâncias sugestivas ou identificatórias concernentes à etologia, interações institucionais de diferentes naturezas, dispositivos maquínicos, tais como aqueles que recorrem ao trabalho com computador, universos de referência incorporais, tais como aqueles relativos à música e às artes plásticas ... Essa parte não-humana pré-pessoal da subjetividade é essencial, já que é a partir dela que pode se desenvolver sua heterogênese. Deleuze e Foucault foram condenados pelo fato de enfatizarem uma parte não-humana da subjetividade, como se assumissem posições antihumanistas!
A questão não é essa, mas a da apreensão da existência de máquinas de subjetivação que não trabalham apenas no seio de "faculdades da alma", de relações interpessoais ou nos complexos intrafamiliares. A subjetividade não é fabricada apenas através das fases psicogenéticas da psicanálise ou dos "matemas do Inconsciente", mas também nas grandes máquinas sociais, mass-mediáticas, lingüísticas, que não podem ser qualificadas de humanas.


É visível, nas elucubrações do autor, a ênfase na questão da heterogênese da subjetividade, o que se maximiza e se torna mais visível no ambiente de uma comunidade virtual, onde o estar-lá significa estar em consonância com uma identidade instituída no grupo e pelo grupo, legitimando ou não os seus membros, estabelecendo assim parâmetros para sua inserção como sujeitos daquele universo.

2.3 Aprendizagens para além do pensado
Como já explanado, o mundo virtual abriu-nos portas para muito além do que poderíamos prever ou imaginar, tornando instantâneas as comunicações, possibilitando interações cada vez mais amplas, ensejando novas formas de construir e compartilhar conhecimentos, fazendo emergir novas formas de inteligência, com destaque para a inteligência coletiva, pois, como aponta Lévy (apud MENEZES, p. 181),
O saber da comunidade pensante não é mais um saber comum, pois doravante é impossível que um só ser humano, ou mesmo um grupo, domine todos os conhecimentos, todas as competências; é um saber coletivo por essência, impossível de reunir em uma só carne. No entanto, todos os saberes do intelectual coletivo exprimem devires singulares, e esses devires compõem mundos.

Sem fronteiras, o mundo virtual nos desafia a aprender a estar nele, a habitá-lo e a explorá-lo, sem nos perdermos nas suas múltiplas e inumeráveis vias. Somos instados, principalmente, a aprender a lidar com tanta informação, com tantos convites, apelos e injunções várias, estabelecendo objetivos, definindo rumos, estabelecendo metas. "Com efeito, essa interconexão favorece os processos de inteligência coletiva nas comunidades virtuais graças a que o indíviduo vê-se menos desprovido frente ao caos informacional".(LÉVY, 2005)
O aprendizado se torna disciplinador, uma disciplina que implica em abandonar as velhas posições do comando, do autoritarismo, da chefia, do centramento, pois o espaço é permeado pelo diálogo, pela troca, e não pelo monólogo engessador, como ressalta Freire, citado por Lima (2001), ao evidenciar o diálogo como princípio de uma mudança revolucionária. A coletividade, sem que se apague o indivíduo, se impõe como uma forma de construir em conjunto, de contribuir, de colaborar, pois, como destaca Spinoza (2006) em sua visão ética, "dois indivíduos inteiramente da mesma natureza se aliam um ao outro, formam um indivíduo duas vezes mais poderoso do que cada um deles tomado separadamente". Na comunidade virtual, esse número de indivíduos pode chegar ao inumerável, com todas as conseqüências dessa amplitude.
Nesse ambiente, a aprendizagem se constrói a partir do eixo da intersubjetividade, não bancária, não reprodutivista, mas construtiva, coletiva, incidindo na autoformação (GALVANI, 2002), estabelecendo nexos entre a prática, o símbolo e a episteme. A aprendizagem, como ressalta o autor, "na alteridade, no inserir-se nos espaços, sem perder o Si (autoformação), os outros (heteroformação) e o ambiente ? as coisas (ecoformação)".

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas comunidades virtuais se estabelece não apenas uma forma de agir, mas, sobretudo, uma forma de ser, possibilitando a emergência de múltiplas subjetividades. Impõe-se também o que dizer e como dizer, formas de comunicação adequadas às necessidades e aos objetivos da esfera de relações que a comunidade cria. Assim, ser e dizer se retroalimentam, formando um ser de discurso(s), o qual, ao tempo que se expressa, o faz estabelecendo uma identidade que o liga aos demais. Nessas trocas, ocorrem as aprendizagens, de tal modo que "se aprendemos algo lendo as trocas de mensagens, é preciso também expressar o conhecimento que temos quando uma situação problema ou questionamento for formulado." (SAMPAIO-RALHA, 2010).


[Obs.: as citações diretas sem indicação de página são provenientes de textos publicados na internet, sem essa indicação]

REFERÊNCIAS

BELLONI, Maria Luiza. Educação a distância. 5. ed. São Paulo: Autores Associados, 2009.
CARVALHO, Jaciara de Sá. Redes e comunidades virtuais de aprendizagem: elementos para uma distinção. Dissertação. 196f. (Mestrado - Programa de Pós-Graduação em
Educação) - Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2009.

FRANCISCO, Deise Juliana; MACHADO, Glaucio José Couri; AXT, Margarete. Ambientes Virtuais de Aprendizagem: Diálogo e Processos de Subjetivação. Disponível em http://www.anped.org.br/reunioes/27/gt16/t164.pdf. Acesso em: 13/07/2010.

GALVANI, Pascal. A Autoformaçao, uma perspectiva transpessoal, transdisciplinar e
transcultural. In: Educação e Transdisciplinaridade II. São Paulo: Triom, 2002.

GUATTARI, Félix. Caosmose; um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 1992.

LEMOS, André. Ciber-cultura-remix. In: ARAÚJO, Denize Correa (org.). Imagem (Ir) realidade: comunicação e cibermídia. Porto Alegre: Sulina, 2006. p. 52-65. Disponível em: http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/andrelemos/remix.pdf

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999.
______. Educação e cibercultura, 2005. Disponível em <http:www.educação e cybercultura - LEVY, P_ Portal dos Fóruns de Educação de Jovens e Adultos.mht>. Acesso em 15/08/2010.
LIMA, Venício A. de. Mídia: teoria e prática.2. ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.
MANTA, André, SENA, Luis Henrique. As afinidades virtuais: a socialidade no
vídeopapo. Disponível em:
[http://www.cfh.ufsc.br/~cso5421/bibliografias/videopap.html] acesso em: 09/10/2010.

NEDER, Ricardo T. A teoria crítica de Andrew Feenberg: racionalização democrática,poder e tecnologia. Cadernos Primeira Versão - Construção Social da Tecnologia número 3, 2010.

SAMPAIO-RALHA, Comunidades Virtuais: definições, origens e aplicações. Disponível em http://www.revista.art.br. Acesso em 05/09/2010.
SARTORI, Ademilde Silveira; ROESLER, Jucimara Comunidades virtuais de aprendizagem: espaços de desenvolvimento de socialidades, comunicação e cultura. In: II SIMPÓSIO E-AGOR@, PROFESSOR? PARA ONDE VAMOS?
COMFIL-PUC-SP/COGEAE, 7 a 8 de novembro de 2003.

SPINOZA, B. Ethics. Disponível em <http:www.mtsuphylosophywebwork> Hypertext Edition, 1997. Acesso em 03/08/2010.