O sofista e a quebra de paradigmas
Quase todas as culturas contam apenas a história dos vencedores. Digo quase todas, porque eu não conheço todas as culturas e nem poderia conhecer, são muitas, então seria temerário e excludente a afirmação: "todas as culturas contam apenas a história dos vencedores". Mas a cultura que conhecemos, tratam de reproduzir, senão a historia dos vencedores, pelo menos aquela sob ótica típica dos vencedores. Aliás, é o direito do vencedor, como se fosse espólio de guerra, contar a história como ele quiser e o perdedor que se cale e remoa suas dores. É assim em relações ás guerras, no esporte, na política, nos embates das grandes corporações e em qualquer outra área, na filosofia principalmente. A teoria que prevalece é aquele cujo autor foi o vencedor levando em conta vários fatores, entre eles a Marinha Mercante com seus canhões. Corre a boca pequena uma história que, contemporâneo a Newton , pesquisadores alemães,mais precisamente Leibniz e o cálculo infinitesimal, fizeram várias descoberta no campo da Física, mas as pesquisas do inglês ganharam notoriedade porque ele tinha a seu favor a Marinha Mercante. Nietzsche também diz que uma idéia ou teoria subsiste ao tempo não pela sua robustez, mas pela sorte, estar guardado em lugar seguro, caiu nas mãos de livreiro hábil e tudo é puramente casual. Ao passo que uma teoria bem mais charmosa e convincente pode não ter a mesma sorte e desaparece no pó do mundo ficando submerso para sempre . Foi assim com os sofistas, hábeis oradores, foram sepultados pela teoria socrática e viraram sinônimos pejorativos para retóricos falaciosos. Basta ouvir um bom orador fazer uso do psicologismo correntes no discurso e já o rotulamos de "sofismático".
Mas nem sempre foi assim. Os sofistas inseriram uma importante reflexão no seio da culta comunidade grega, possibilitando o surgimento da democracia. A reflexão antropológica inaugurada pelos sofistas foi capaz de responder aos questionamentos que a cosmologia dos fisiocratas já não dava mais conta. E também, de certa forma popularizaram a educação, outrora privilégio apenas da aristocracia.
Na Grécia antiga as virtudes mais valorizadas eram a força e coragem. Uma dessas virtudes dissociada da outra era praticamente inútil. De que vale um homem forte se não tivesse coragem na refrega do campo de batalha e a coragem destituída da força era considerada temeridade, ou seja, o outro lado da moeda era a covardia. Esse tipo de atitude não era incentivada, visto que os gregos prezavam pelo meio termo, a mediania, a justa medida. Então tínhamos que se a coragem estava ausente a covardia prevalecia e isso se constituía em mal a ser evitado. Se tivesse coragem em excesso era um mal maior até mesmo que a covardia, pois o agir temerário nunca dera bons resultados. A coragem devia ser bem dosada e em conjunção com a força tínhamos um guerreiro ideal. O mais alto, mais forte e mais rápido. Outros fatores influenciavam, tal como o auxilio dos deuses, mas isso não vem ao caso agora.
Então os novos tempos inseriram mais um quesito para que o guerreiro fosse completo: a persuasão. Não bastava apenas ser o mais alto, o mais forte e o mais rápido, o guerreiro deveria também dominar a arte do discurso para com isso agregar companheiros entusiasmados para as suas empreitadas. É ai que entra os sofistas e também está lançado o primeiro germe da democracia que se concretizou posteriormente nas praças públicas.
Os sofistas foram grandes quebradores de paradigmas, bons oradores, conturbadores da ordem instaurada, defensores democracia, mas passaram para a história como vilões. Sócrates nasceu sofistas, ou pelo menos tinha o mesmo estilo dos sofistas ao sair ás ruas indagando as pessoas sobre o que é verdade ou justiça? Sua forma de argumentação que consistia apenas em explorar os possíveis caminhos a seguir diante de uma determinada situação é típica dos sofistas. Ele apenas lançava veneno na discussão e agia como se não soubesse a resposta obrigando o interlocutor a rever seus conceitos. A maiêutica era prática comum entre os sofistas, mas Sócrates o personagem de Platão deu a ela uma nova dimensão.
É claro que os sofistas -entre os quais podemos destacar Protágoras de Abdera, cuja máxima "o homem é a medida de todas as coisas" superou a grandeza do seu próprio nome, -não trabalhavam sem ouvir o tilintar da moeda, mas não era só isso. Havia uma nova classe emergente que aspirava um quinhão do poder que estava nas mãos dos aristocratas e a única forma dos comerciantes ascenderem ao poder era configurando uma nova ordenação política que não fosse fundada na areté, mas na forma do discurso, no logos, palavra. É ai que entra a importância dos sofistas na instauração da nova ordem. Ninguém seria ingênuo de pensar que eles fizeram isso motivado por um sentimento nobre, não claro que não. Foi pensando no interesse de classes, a nova classe emergente dos comerciantes enriquecidos sedentos de poder.
A democracia se consolidou em grande parte porque os sofistas açularam a discussão em praça pública, os debates se tornaram mais interessantes justamente porque esse grupo de oradores era especialista na arte de argumentar, ainda que fosse discurso sem conteúdo (logomaquia). Em se tratando de educação os sofistas promoveram uma revolução na sociedade grega quebrando o círculo tradicional de privilégios que os aristocratas detinham e ao promoverem o embate em praça estava inaugurada uma nova forma de pensar. Aqui já não era mais o mundo eu precisava ser desvendado, mas o homem. Qual o seu lugar no mundo? Qual o sentido de sua existência? Seria o homem destinado grandes feitos ou era apenas um joguete nas mãos dos deuses?
Ou mesmo deveriam se perguntar se o homem nasceu apenas para se nutrir, crescer, procriar e morrer? Se fosse apenas isso pouco ou nada ele se diferia dos animais. Pois estes também nascem, crescem, nutrem, reproduzem e finalmente morrem. Se o homem nascesse apenas para isso seria muito pouco. O sofista lançou a nova reflexão que possibilitava o homem a alçar novos vôos. O homem nasceu para viver em sociedade e se relacionar uns com os outros, mesmo que essa relação seja conflituosa é melhor que relação nenhuma. Com o florescimento das grandes aglomerações populacionais que se tornaram urbanas surge então a "polis" a cidade grega. Nesse contexto o homem passa a se dedicar aos debates em praça pública visando o bem comum e está delineado a democracia, onde prevalece o discurso e tudo isso é obra do sofista. Ele não surgiu com o advento da democracia, pelo contrário, forma a condição de possibilidade da democracia. Não é sem motivo que Platão considera a democracia como inadequada para governo de um estado.
Sofistas: vilões ou quebradores de paradigmas? Devemos teme-los, odiá-los ou tecer-lhes loas pelo serviços prestados a humanidade?