"Memórias de Minhas Putas Tristes" perseguiu-me por tres aeroportos. No penúltimo deles, já após uma cirurgia cardíaca, pouco podia caminhar - se decidisse seguir as orientações dos médicos, deveria estar em uma cadeira de rodas. Não o fiz. Tentei me locomover lentamente. Por incrível que possa parecer, só havia alguma melhora se me punha de pé, mas as pernas já estavam exaustas. O sacrifício das quatro horas do voo anterior já fora quase insuportável. Felicidade que existe diazepan. Ainda assim, caminho e, ouço o primeiro latido. Viro-me e ele está lá: com ar de cachorro em pet-shop implorando para ser levado para casa. Seu pelo lilás me encanta e seu olhar me diz "leve-me, serei um bom companheiro; terei histórias que te farão compreender o amor. Este mesmo que sentes ainda hoje por Abi, que tão cedo partiu, deixando este incompreensível vazio". Ele age de forma covarde, não havia porque lembrá-lo neste instante e, por alguns momentos, vejo o pelo lilás tornar-se ruivo como o cabelo de Abi. Resisto à tentação, não há porque levar um cachorro para casa. Ele dá trabalho; banho, alimentação, passeios, educação, controle por conta das visitas. Não, ele deve permanecer onde está. Sinto muito! Continuo a lenta jornada, vejo uns óculos que custam 3 mil reais, me encanto com umas caixas de som que seriam benvindas no ipod, uma jaqueta imitando couro... resisto ao consumismo. Quero estar em casa. Cheguei no aeroporto às 4 da tarde e o próximo voo só sairá às 9 da noite, se nenhum deputado ou senador resolver que não deve cumprir o horário também. Novo latido. Cometo o erro de acariciar o pelo lilás. Ele possui uma coleira com o nome "Gabriel". Será o dono ou o seu próprio nome? Não importa, ele quer seguir-me. Lança-me novamente aquele olhar de misericórdia. Não há mais resistência em mim. Dirijo-me à vendedora: "quero esse cachorro". "Não é nosso, senhor". Ela me chama de senhor. Fiquei velho ou é uma forma de marketing? Não, sou um ancião, por isto o cão me deseja. Também ele o é. Acaricio novamente o pelo lilás e ele se abre "no dia do meu nonagésimo aniversário..." Não há mais o que fazer. Ele agora dormita em minha porta e se alimenta de minha solidão, lambe-me as feridas e ri-se da minha incapacidade de compreender o tempo passando.