Célio Egidio* 

1. Apresentação 

O Eminente Professor Clóvis Beviláqua define Direito das Coisas como “um complexo de normas reguladoras das relações jurídicas referentes às coisas”, lembrando que coisas o ilustre autor define como gênero, da qual a espécie é o bem, algo de interesse do homem e, por conseguinte de interesse relevante para o direito.

Afirmamos, então, que Direito das Coisas é o conjunto normativo que rege as relações jurídicas que envolvem os bens que são de interesse das pessoas, quer tangíveis ou intangíveis.

O Código Civil Brasileiro utiliza o título “Direito das Coisas” pela influência da lei germânica e também do Código Napoleônico (de 1804) principalmente no que diz respeito aos direitos que possuem a coisa como objeto imediato.

Também são utilizados os termos Direito Reais, mas estes estão inseridos especificamente pela norma e são numerus clausus.

Nesse contexto é que se apresenta a Posse, fenômeno jurídico de difícil definição que se insere no Direito das Coisas, pois afinal se encontra na relação jurídica, pessoa – coisa, ou bem.

É neste viés de compreensão das relações possessórias que delineamos o conteúdo que se apresenta, neste breve comentário.

Inúmeras são as dificuldades que aparecem no estudo da posse, muita doutrina já foi elaborada, mas embora os pesquisadores da ciência jurídica tenham se debruçado ao redor do tema, ainda permanecem vários pontos controvertidos e nebulosos.

O nosso direito protege não só a posse da mesma forma que protege a propriedade e outros direitos reais, mas a posse em virtude de suas caraterísticas especiais figura de forma autônoma na topografia do Código Civil (artigos 1.196 e seguintes).

O professor Oliveira Ascenção, da Universidade de Lisboa, afirma que a posse é uma das grandes manifestações do direito, ou seja, o catedrático dissertava e alertava para a singularidade da relação existente no jus possessionis.

Então, se alguém exercer poderes sobre uma coisa exteriorizando a titularidade de um direito, a ordem jurídica permite que sobre esse simples fato continue a exercê-lo, sem exigir maior justificação.

O que se entende se é titular, ou se apresenta como tal, permanecerá titular, sem a necessidade de se provar a titularidade.

É a exteriorização de dono como posse, ou seja, apresenta-me como dono e assim sou considerado.

Óbvio que em dado momento lhe será cobrado como foi a assunção como dono, sua legitimidade, a anterioridade do possuidor, entre outros, mas é controvérsia para outra aula.

Neste momento, depreendemos que a o direito de posse, existe no qual o fato estriba o direito.  A posse é protegida para evitar a violência e assegurar a paz social, porque a situação de fato aparenta ser uma situação de direito, ou seja, é uma situação de fato protegida pelo direito.

A compreensão do instituto posse não poderia de afastar do conteúdo geral do novo Código Civil e sua composição de atendimento ao fim social, a socialidade, como toda propriedade deve buscar seu fim social e econômico, não seria diversa com relação a posse, que contém, além assegurar a paz social, mas também atingir o interesse social da comunidade conforme preconiza os primados que envolvem o direito privado, após a vigência do novo Código Civil, em total consonância com a Constituição Federal.

Não estamos distantes das demais legislações possessórias, pois O Código Civil Suíço assim apresenta o instituto posse Besitz, em seu art. 919 que “Aquele que tem o poder efetivo sobre uma coisa é seu possuidor".

Também o artigo 920, numa clara demonstração de que a posse no sistema de direito positivo suíço é passível de desdobramento e, portanto, conferindo a condição de possuidor também àquele que não seja proprietário, distingue a posse originária, que é a posse do proprietário, da posse derivada, que é a posse do "não proprietário".

Então, o instituto posse recebe tratamento similar em legislações estrangeiras, sempre com o intuito de proteção e preservação da exteriorização do poder sobre algum bem.

2. A Posse, seu histórico.

 

O homem, desde o seu surgimento, não foi diferente com a relação ao ato volitivo de possuir coisas. Jamais saberemos quando e como surgiu a noção de posse, que em sua concepção primitiva é um vínculo estabelecido entre um indivíduo ou um grupo e um determinado bem da vida.

 Este vínculo pode ter um caráter exclusivamente individual, através do qual um indivíduo se reconhece com senhorio sobre um bem, ou pode apresentar a sua institucionalização, vale dizer, reconhecimento por terceiros.

A própria noção de Direito é variável na história. Mas utilizando a atual visão que temos do Direito, podemos afirmar que, certamente, a posse esteve presente desde as mais primitivas formas de organização humana.

Outras descobertas arqueológicas ainda muito mais antigas, que remontam a períodos de dezenas de milhares de anos revelam a existência de uma relação de posse de indivíduos ou grupos em relação a objetos ou áreas.

Ainda mesmo no Direito Romano é preciso termos cuidado já que sob esta categoria pode ser descrito o Direito de um período de aproximadamente 12 séculos.

Podemos afirmar que a propriedade inicialmente era das gens, surgindo, posteriormente a propriedade do Estado.

Com a propriedade estatal, surgiu o dominium, poder conferido pelo Estado aos particulares sobre as terras, o qual tomava a forma de concessões que se faziam através de um dos seguintes instrumentos: assinationes viritanae, por solicitação dos cidadãos; assignationes coloniae, visando à fundação de uma nova colônia; ou pelas agri questorii, através de venda em leilões pelos "questores".

A posse sobre a terra era exercida, assim, por três formas. Pelo exercício do dominium pela ocupação de terras devolutas e por concessões que asseguravam a mera fruição, sem transferência do domínio, sendo esta última forma a agri occupatori, mediante o pagamento de uma "pensão", denominada vectigal, paga ao Estado.

A posse na Idade Média (Europa) possui sua maior expressão com a figura do feudo principal como unidade econômica, que se dividia em três partes: a propriedade privada do senhor, chamada de domínio ou manso senhorial, no interior da qual havia geralmente um castelo fortificado; o manso servil, ou seja, a porção de terras arrendadas aos camponeses e que eram divididos em lotes, chamados de tenências; e o manso comunal, terras coletivas (pastos e bosques) usadas tanto pelo senhor como pelos servos, ou seja, a posse era primazia do senhor feudal e concedida aos seus servos.

Com a Revolução Francesa, um novo conceito de posse se instala na Europa, pois, com a abolição do regime feudal que foi um dos grandes “motes” para a nova sociedade por consequência na relação possessória.

Com o Código Civil Francês, publicado em 1804, consolidou esta situação, priorizando uma visão privatista da propriedade e da posse. Na esteira do Código Napoleônico, surgiram os códigos: austríaco (1811), neoirlandês (1838), saxão (1863), italiano (1865).

Na mesma esteira a Constituição Americana apresenta o direito da propriedade e por consequência a liberdade no efeito posse.

No Brasil, o Código Civil de 1916, de concepção liberal europeia não ficou imune à discussão doutrinária ocorrida nesse percurso histórico que se deu, especialmente, a partir da segunda metade do século XIX no Brasil, e que acabou estabelecendo um eixo de análise para a posse, embora não exclusivo, em torno das ideias de Savigny e Ihering, além de certa influência de autores portugueses do final do século XVIII e do século XIX.

Para os doutrinadores no início do Século XX, posse traduzindo em a posse constitui a condição de fato da utilização econômica da propriedade, sendo assim o direito de possuir é um elemento indispensável da propriedade.  A posse é a porta que dá acesso à propriedade e por decorrência a proteção possessória apresenta-se como posição defensiva do proprietário, traçando os primeiros rumos da posse na era moderna, posição esta defendida até os dias atuais por alguns autores.

O Código Civil de 2002, inovador e distante de um conceito liberal, definido por Ricardo Fiuza e Miguel Reale apresentam a posse com instituto de relação de fato, não a definindo, mas apresentando quais os atributos de sua apresentação, ou melhor, de sua exteriorização perante os demais para se configure a condição de futuro proprietário.

            “Considera-se possuidor, todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de alguns dos poderes inerentes à propriedade” (artigo 1.196 - Código Civil Brasileiro).

 

3. Teorias sobre a Posse

 

 

Após um breve relato sobre a posse, retornamos as grandes distinções que envolvem as diversas classes de direitos intrínsecos no Direito Privado, mais precisamente no Direito Civil, já preparando o aluno para as demais disciplinas que envolverão necessariamente o tema.

O Direito das Coisas é o ramo do Direito Civil que regula as relações jurídicas reais, entendidas estas como as que se estabelecem entre o titular de uma coisa e a sociedade em geral (os não titulares do bem). 

 

                    pessoa                                bem                                 outras pessoas

   (titular)                                                                       (sem direito ao bem)

 

 

 

           

O homem, na busca de satisfazer suas necessidades, procura apropriar-se das coisas que encontra na natureza, porém, não as que se apresentam de forma abundante, mesmo considerando sua enorme utilidade, como a água potável, o ar atmosférico, entre outros; somente quando as coisas são úteis e raras, quando passam a constituir bens, é que se tornam objeto de apropriação, estabelecendo entre elas e os homens um vínculo jurídico, o domínio.

 

Entre titulares e não-titulares surgem direito e deveres. Os deveres, chamados obrigações reais, traduzem-se na abstenção de qualquer ato prejudicial ao direito do titular.

 

 Em correspondência, existem os direitos do titular, tidos como direitos reais.

 

Neste diapasão, temos que o Direito das Obrigações tem como objeto os direitos creditícios, enquanto que o Direito das Coisas, os Direitos Reais.

 

3.1  Distinção entre Direitos Reais e Obrigacionais.

 

3.1.1   Teoria Clássica ou Realista

Os direitos reais seriam o poder imediato sobre uma coisa; os obrigacionais, o poder de exigir que se dê, faça ou não se faça algo.

A distinção dos mesmos é feita de acordo com vários referenciais.

a)        Quanto aos elementos constitutivos: os direitos reais possuem dois (titular e objeto), já os obrigacionais três (sujeito ativo, passivo e objeto).

b)        Quanto às vantagens: nos direitos reais há poder de sequela (direito de sequela), de seguir a coisa onde quer que ela vá, direito de dono. Nos obrigacionais, nenhuma.

c)         Quanto à sanção: os direitos reais são oponíveis erga omnes, contra todos. Os obrigacionais contra pessoas certas, determinada, o devedor, que é a única pessoa da qual o credor pode exigir o crédito.

d)        Quanto aos modos extintivos: os reais não têm prazo para extinguir, podendo ser perpétuos. Enquanto os obrigacionais duram até o pagamento.

e)        Quanto aos modos de aquisição: os direitos reais têm modos peculiares de aquisição; assim, a propriedade, por exemplo, adquire-se pelo registro ou tradição, pela acessão e pela usucapião. Os direitos de crédito se adquirem pela ocorrência de fato, como um contrato ou ato ilícito.

f)         Quanto à posse: somente uma coisa pode ser possuída, por ser a posse o elemento externo da propriedade. Já para um direito obrigacional isso não é possível.

g)        Quanto aos caracteres gerais: os efeitos dos direitos reais são expressamente regulados em lei e estes se adquirem de uma só vez. Dos direito de crédito podem ser estipulados em convenção e podem ser adquiridos em prestações.

 

3.1.2   Personalistas

 

As teorias personalistas negam a possibilidade de haver uma relação jurídica entre um titular e um bem, defendendo que estas só existem entre pessoas. As teorias personalistas enxergam que a distinção entre direitos reais e obrigacionais são ora em função do sujeito passivo, ora em função do objeto, ora em função do vínculo. Vejamos:

a)        Primeira teoria personalista (Windscheid, Roguin e Planiol): tanto os direitos reais como os de crédito decorrem de relações obrigacionais entre pessoas. Diferença: sujeito passivo; nos reais é universal, toda a sociedade, e nos de crédito, uma ou várias pessoas determinadas, os devedores.

b)        Segunda teoria personalista (Michas e Quéru): a diferença existe em função do objeto, que no direito real é um bem, e no obrigacional, uma prestação.

c)         Terceira teoria personalista (Démogue): nenhuma das diferenças apresentadas é importante, o que existem são direitos fortes (reais) e fracos (creditórios). A diferença mais importante é a intensidade do vínculo jurídico.

d)        Quarta teoria personalista (Thon e Schlobman): os direitos de crédito são subjetivos, ao passo que os direitos reais são de necessidade social. 

3.1.3. Teoria da Instituição

Os direitos reais teriam sua fonte na própria instituição social, e não nas relações pessoais ente os indivíduos. A coletividade organizada institucionaliza, cria seus mecanismos de defesa dos direitos dos indivíduos sobre suas coisas.

4. Conclusão 

Vimos que a posse é uma relação de estado entre pessoa-bem-pessoa e que de alguma forma foi se apresentando no contexto histórico na humanidade como forma de exteriorização da condição de dono.

Observa-se também que a posse é protegida pelo ordenamento, própria das relações entre bens, não nas relações creditícios, como apresentamos, em algumas de suas correntes.

Também não se insere no campo dos Direitos Reais, “numerus clausus” em que a lei nomina os existentes, mas se insere a posse, em âmbito maior de proteção de estrutura de ordem pública onde somente o “animus” já lhe apropria a condição de dono. Somente alguns comentários para que o pesquisador continue seus trabalhos de pesquisa em assunto que é milenar e continuará o ser, precipuamente no universo virtual que se apresenta diariamente.