"Se os actores estão em cena desempenhando o seu papel e um deles tenta arrancar as máscaras para mostrar ao público a sua verdadeira face, conseguirá apenas perturbar toda a representação e deveria ser expulso do teatro como louco. Pois a donzela da peça surgiria aos vossos olhos como um homem: o jovem transformar-se-ia num velho; o rei num escravo e o deus num miserável humano. Destruída toda a ilusão, a obra destrói-se. Era o travesti e o disfarce que atraíam o espectador. O mesmo acontece na vida, que não passa duma comédia, em que cada qual representa o seu papel, conforme a máscara que usa, até que o contra-regra o faz sair de cena."(ROTTERDAM,1973:53)

A Loucura possui, bem como foram-lhe atribuídas, diversas facetas, inclusive com análise aprofundada sobre sua percepção, como foi o caso da "História da Loucura" de Foucault, mas o fato é que desde tempos remotos é intrigante, inclusive tendo um arcano próprio no Tarô, para demonstrar sua abrangência.
Aqui tratarei a partir de um outro viéis, pois por mais que se tenha falado a respeito, o tema demnonstra uma inesgotabilidade interpretativa.
A Loucura, conforme a descrição de Erasmo de Rotterdam, tem como característica, apresentar a verdade, dismistificando e demonstrando sua versatilidade.
A Loucura (e escrevo de forma maiúscula, não por atribuir a ela um sentido de nome próprio para igualá-la a outras personagens, conforme fez Erasmo de Rotterdam, mas sim para que seja dada ênfase a uma não logicidade dentro de uma lógica demonstrada, ou se preferirem, uma certa "liberdade" epistemológica) nos demonstra uma percepção que foge a logicidade racional, pois manifesta a contrapartida da razão, uma antítese.
Quando construímos toda uma lógica racional, e nesse sentido penso no conceito de formação epistêmica de Foucaut, imaginando o processo cognitivo como algo construtivo, temos a Loucura como um descontruir, criando a fuga do "real" e a dissolução da "verdade". A partir dessa perspectiva, temos a Loucura enquanto contrário ao ato inteligível, criando os "espaços" abstracionais no processo de construção do conhecimento, possibilitando inclusive, projetar-se em uma abstração que foge a concretude da experiência e cair na produção de um "universo paralelo", ou seja, um mundo abstrato que se alimenta apenas de abstrações, procurando inteligir-se e converter a realidade à sua ilogicidade.
Mas o que apresenta Erasmo de Rotterdam é uma inversão da "lógica da Loucura", pois demonstra uma realidade disfarçada e a Loucura como responsável por trazer à tona o que se esconde pelo disfarce.
A Loucura demonstrando-se como antítese da razão, tem como funcionalidade negar o racional, o que faz com que, tendo esse racionalismo pervertido, seria análogo a um enlouquecer, que permitiria escapar da simulação apresentada, através de um desvelar-se, pois se a falta de razão lhe faz ocultar a realidade, quando o real já se apresenta oculto, é justamente sua perversão que fará com que se exponha.
A Loucura é ousadia, ela nos permite ir além, fazendo com que a realidade se torne não uma meta, mas um simples envolver-se em uma "outra realidade", fazendo com que aqui sejamos lançados ao platonismo, sendo que no exemplo de Rotterdam, seria a Loucura que assumiria o papel de resgatar-nos da caverna de uma realidade ilusória.
O que desejo aqui chamar a atenção é que em um processo dialético hegeliano, a antítese possui a mesma importância da tese, pois são duas partes que são necessárias na composição da síntese.
Perscrutando o desvelar da Loucura, temos no teatro o esfacelamento da persona e apresentação do mistério, (seguindo a definição apresentada por Hegel de que mistério significaria revelação, daí a necessidade de conhecê-lo) como podemos evidenciar no homem que se travesti de mulher e demonstra tanto a não-participação da mulher na apresentação pública, conforme bem expôs Foucaut em sua "História da Sexualidade - Livro II", assim como o desejo desse mesmo homem em expor sua feminilidade restringinda (aqui sob uma perspectiva psicanalítica do reconhecimento de um fator andrógeno), indo além, temos o velho que busca seu mito da vontade na juventude ao incorporar a personagem jovial, tendo também o escravo que vê alimentada, mesmo de forma representativa, a sua ira de ressentimento (sob uma perspectiva nitezschiana acerca do ressentimento como ira contra aquele que considera responsável por sua condição degenerada), pois ao se travestir de rei, afronta o monarca com uma sutileza irônica e ao mesmo tempo evidente que chegaria a extasiar Maquiavel, e por fim, temos a representação mística, que desnudada, transmite a idéia nietzschiana de "morte de deus".
A partir dessa complexidade, conseguimos demonstrar o ato desconcertante da Loucura, que nos remete ao estado diferente daquele ao qual nos encontramos, tornando-nos flexíveis ao estar e transmutados em uma percepção desejosa de porvir.
Seguindo as palavras de Rotterdam, sobre a vida ser uma comédia, compartilho do mesmo pensamento, visto que por mais que levemos a sério, no fim ela se desmancha como um boneco de neve no verão e se liquefaz, não por completo, mas conforme Sartre expõe, gelatinosa, algo entre o rígido e o líquido, nos transmitindo essa sensação de ter e escapar a todo instante, além da comédia possuir uma complexidade que abarca inclusive a seriedade, mas sem o rigorismo limitante de um estilo, apenas deslizando entre vários, e ao fazê-lo, destrói e constrói como uma representação de Sheeva, bailando como Zaratustra e zombando do rigorismo e da falta dele.

Referência Bibliográfica:

ROTTERDAM, Erasmo. Elogio da Loucura. Tradução, prefácio e notas: Maria Isabel Gonçalves Tomás. São Paulo: Publicações Europa-América, 1973.